Hasankeyf, antes que seja tarde demais

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John Wreford / Demotix

É um local gasto pelo tempo e ameaçado pelo futuro, cujas ruas são tomadas pelos risos e brincadeiras infantis. Um local no qual o ar se enche, ora com a solenidade do chamamento para a oração, ora com a leveza da campainha escolar, que, por estes lados, é uma reprodução de Für Elise de Beethoven.

Sair da rua principal, ladeada de lojas pensadas para os turistas, com quinquilharias locais, ou, muitas vezes, vindas do lado de lá das planícies da Mesopotâmia, da vizinha Síria, de restaurantes pensados para turistas, com vistas para o Tigre em cujas margens homens de calças arregaçadas até aos joelhos retiram linhas invisíveis com o peixe que salta directamente para o balik kebap (um prato local), é dar de caras com a mesma paisagem com que nos deparamos quando viajamos pelas áreas rurais do Sudeste da Anatólia.

A curiosidade despertada é retribuída por quem espreita dos terraços das casas rústicas, por quem segundos antes brincava distraidamente nos campos sob o olhar universal das mães, tias e avós, aqui sentadas de cócoras, com as cabeças cobertas por lenços lavanda, e calças harém às florezinhas coloridas.

É um local velho. Há quem diga que é habitado há dez mil anos. Mas são as crianças que nos levam quase pela mão a descobrir os seus recantos, até porque aceder a muitos deles requer bastante juvenilidade.

Conheci o Ahmed, e os seus cinco irmãos e amigos. Um rapaz de onze anos com um nome comum e a simpatia comum por estes lados. Uma simpatia quase esmagadora na sua honestidade, que os estrangeiros confundem vezes de mais com interesse, e sempre surpreendentemente agradável, por muito que se esteja habituado a ela.

O Ahmed foi o nosso guia em Hasankeyf, Turquia.

Sem ele nunca teria escalado pelas escadas íngremes e rudimentares que levam ao cimo de uma das cavernas pré-históricas deste berço civilizacional. No meu turco elementar tentei perceber se ainda alguém habita estas cavernas. "Bir adam", "um homem", explicou Ahmed apontando com ironia para uma habitação primitiva ligada aos postes de electricidade da vila por um fio e com uma antena parabólica à entrada.

Sem ele também não teria subido pela escuridão vertiginosa que leva ao topo do minarete no meio das ruínas arqueológicas, e apreciado, junto aos megafones dispostos à sua volta, a paisagem montanhosa, o que resta dos imponentes pilares que já seguraram uma ponte medieval, um outro minarete, cujo topo agora acolhe um ninho de cegonhas, ou a colina com o castelo histórico, fechado aos visitantes devido ao seu estado de debilidade.

Depois de ter a certeza de que não havia mais nada para ver na sua vila natal, Ahmed fez questão de nos levar à paragem do dolmu§ (minibus) de volta para a cidade de Midyat. Com o olhar envergonhado fixo nos próprios pés que pontapeavam pequenas pedrinhas no chão, depois de muito insistirmos em oferecer-lhe alguma coisa como agradecimento pela visita personalizada, balbuciou "top", que, segundo o dicionário Turco-Inglês que eu tinha no bolso de fora da mochila, singifica "Ball". Comprámo-la, pelo equivalente a cerca de um euro e meio, na loja que Ahmed timidamente nos indicou e ele lá seguiu com a bola de futebol recém-conquistada debaixo do braço, em direcção aos campos onde os amigos o esperavam.

Mais tarde aprendi que, ou o Ahmed, ou outras crianças de Hasankeyf, acompanham todos os estrangeiros de mochila às costas que fazem um esforço de troca de palavras. Talvez na esperança de que ainda se consiga inverter o futuro desastroso que se prevê para este lugar.

Na Turquia, toda a gente nos apressa a visitar Hasankeyf, "antes que seja tarde demais". Em 2013 estará construída a barragem Ilisu. O reservatório de água que vai causar condena à submersão este museu ao ar livre. E, um dia, tal como aconteceu em cidades como Halfeti, Hasankeyf vai ter meios minaretes a espreitar das águas do Tigre e ruínas milenares transformadas em destroços de naufrágios.

E o Ahmed, a Cibelle e os outros miúdos locais vão ser realojados nalguma Yeni (nova) Hasankeyf, em edifícios modernos construídos em altura, iguais aos que nascem todos os dias por estes lados, de onde shuttles vão levar turistas e saudosistas a visitar o que resta da Eski (antiga), mas inesquecível, Hasankeyf.

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