Freira amiga dos pobres, que bateu o pé ao Governo e ao patriarca, é hoje beatificada

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A irmã Maria Clara morreu em 1899 dr

Enfrentou governos, teve problemas com o patriarca mas afirmou-se como mulher e líder. Quando morreu, deixou 140 instituições de apoio aos mais pobres do Portugal do século XIX

Eram tempos difíceis para a Igreja, para as mulheres e para as freiras. Maria Clara enfrentou tudo isso. Fundou uma congregação religiosa num tempo em que tal era proibido, não se subordinou a uma Igreja clerical e machista. Em menos de três décadas, fundou mais de 140 instituições sociais dedicadas aos mais pobres, aos quais designava como "a minha gente". E a sua proposta atraiu mais de um milhar de outras mulheres.

Quando morreu, em 1 de Dezembro de 1899, a irmã Maria Clara do Menino Jesus já era conhecida pelo povo como santa. "Está entre as pioneiras da acção social portuguesa", diz ao PÚBLICO a irmã Maria Amélia Carreira das Neves, que integra as Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição e que acaba de publicar um livro sobre a fundadora da congregação a que também pertence.

A Mãe Clara, como ficou conhecida, será beatificada esta manhã no Estádio do Restelo. A sua proclamação como nova beata acontece no início da missa presidida pelo patriarca de Lisboa, na qual participa também o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para a Causa dos Santos da Igreja Católica.

O século XIX português não era fácil para que uma mulher se atrevesse a fazer o que ela fez. Mas Libânia do Carmo Galvão Mexia de Moura Telles e Albuquerque, filha de nobres, órfã de mãe aos 13 e de pai aos 14 anos, tinha temperamento de líder. Posta no Asilo Real da Ajuda, cinco anos depois foi residir com os marqueses de Valada, ainda seus parentes. Outros cinco anos volvidos, decidiu consagrar-se à vida religiosa. E aos 26 anos resolveu integrar as freiras Capuchinhas de Nossa Senhora da Conceição.

Problema número um. Desde 1834, estavam proibidas novas profissões de consagração. Para o poder fazer, Maria Clara - nome que entretanto adoptara - foi para Calais (Norte de França), fazer o noviciado nas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras.

O padre Raimundo Beirão apoiava-a na sua decisão e a jovem freira professou em Calais, em Abril de 1871. Regressada a Portugal, fundou a 3 de Maio seguinte a nova congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras dos Pobres pelo Amor de Deus, que seria aprovada pelo Papa Pio IX em Março de 1876 (e que só em 1964 mudaria o nome para o actual).

Maria Clara decide consagrar-se aos mais pobres. "É nossa missão valer aos que sofrem, com sacrifício próprio; e, quando não podemos, é uma mágoa indefinível", escreve ela numa carta ao ministro da Marinha, em 1894. Ao fim de pouco tempo, já uma das obras por ela fundadas, a Cozinha Económica, servia 11 mil refeições diárias em todo o país.

Portugal vivia uma incipiente industrialização que já levava para as cidades uma cintura de proletários. "O povo vivia na miséria, e ela dizia "esta é a minha gente"", conta a irmã Amélia Carreira das Neves.

O fenómeno traduziu-se em números. Quando Maria Clara morreu, as Franciscanas Hospitaleiras estavam já a trabalhar em 140 instituições: 44 hospitais, 41 colégios e escolas, 17 asilos de infância, 18 asilos de inválidos, quatro creches, seis cozinhas económicas, nove casas de enfermagem ao domicílio, dois pensionatos, cinco conventos e dois noviciados. Além da presença em Angola, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Índia - onde as irmãs continuam presentes.

O mesmo acontecia com o número de mulheres que professavam a vida religiosa. Nas três décadas que durou o resto da vida da fundadora, professaram mais de 500, muitas trabalhando no interior do país.

Problema número dois. Uma expansão assim, mesmo sendo um trabalho social em condições difíceis, levantou questões políticas e eclesiais. Em 1891, no Convento das Trinas, morreu Sara Matos, órfã de 14 anos. A irmã Coleta, das Franciscanas Hospitaleiras, admitiu ter-se enganado num remédio que lhe dera.

O caso, esclarecido a favor das freiras, chega a ser utilizado por sectores anticatólicos para acusar a irmã Coleta de encobrir um crime de violação. E serve ao Governo para ordenar uma inspecção a todas as casas religiosas. Receoso de mais consequências negativas, o patriarca de Lisboa da época, José Sebastião Neto, expulsa também Maria Clara do Convento das Trinas por ter defendido a irmã Coleta.

Mas o patriarca não fica por aí. E por diversas vezes se intromete na vida interna da congregação, contrariando decisões da fundadora. "Havia um conceito altamente eclesiástico de que o padre é que tem a autoridade", explica a irmã Rosa Helena, que investigou o arquivo da congregação para o processo de beatificação.

Várias irmãs da própria congregação - problema número três - colocaram-se do lado do patriarca e dos clérigos que contestavam Maria Clara. Mas tudo acabou em bem, diz a irmã Rosa Helena. Pelo menos, quando Maria Clara morreu, o patriarca prestou-lhe homenagem.

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