Gustav Mahler queria abarcar o mundo

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Entre a nostalgia da tradição e o fascínio por novos caminhos, Mahler realizou um percurso criativo marcado pela liberdade. Morreu faz hoje cem anos.

"Uma Sinfonia deve ser como o mundo, deve conter tudo." Esta forte convicção de Gustav Mahler (1860-1911) foi levada pelo compositor e maestro austríaco às últimas consequências, de tal forma que é difícil imaginar um legado sinfónico mais abrangente ou desenvolvimentos futuros que acrescentassem etapas a um caminho que tinha chegado ao auge. Quando faleceu a 18 de Maio de 1911, faz hoje um século, no Löw Sanatorium de Viena, vítima de uma infecção estreptocócica, Mahler contava com admiradores incondicionais (incluindo maestros como Bruno Walter e Willem Mengelberg que se tornariam referências na interpretação da sua obra), mas também com detractores. A crítica e o público da época nem sempre compreenderam devidamente uma linguagem que misturava elementos aparentemente antagónicos, que tanto podiam remeter para a esfera do sublime como para a vulgaridade terrena, ou os efeitos pouco convencionais em termos de orquestração, frequentemente objecto de caricatura na imprensa.

Não obstante o sucesso da Sinfonia nº8 na estreia em Munique em 1910, junto de uma audiência que incluía figuras tão ilustres como Richard Strauss, Schoenberg, Max Reinhardt e Thomas Mann, não era ainda completamente claro que Mahler viesse a adquirir um lugar proeminente na História da Música. O próprio compositor usava várias vezes a expressão "o meu tempo ainda está por chegar" e após a sua morte passaram várias décadas até à consagração definitiva na década de 1960 graças ao impulso dado por Leonard Bernstein na reabilitação do legado sinfónico mahleriano após a II Guerra Mundial. O sucesso do filme de Luchinho Visconti Morte em Veneza (1971), baseado na obra homónima de Thomas Mann e usando como banda sonora o belíssimo Adagietto da 5ª Sinfonia, ajudou a cimentar a celebridade de Mahler, atingindo um público bem mais amplo do que os habituais frequentadores das salas de concertos.

Na entrevista que concedeu ao Ípsilon em Abril de 2009 a propósito de um concerto com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, o maestro Michael Zilm definiu Mahler como "um compositor cuja música transmite todos os sentimentos da humanidade." A produção de Mahler tem sido central na carreira deste maestro alemão, convidado habitual das principais orquestras portuguesas e estudioso das partituras originais do compositor austríaco. "Atrai-me o gosto que Mahler tem pelos extremos, a sua mistura entre música popular e música elevada, entre melancolia e felicidade, ternura e a violência. Ele faz a ponte entre o século XIX (Bruckner, Brahms, Wagner) e o século XX (Schoenberg e a 2ª Escola de Viena). É todo um universo."

Compositor livre

É também essa combinação de mundos antagónicos que interessa a António Pinho Vargas no âmbito da produção de Mahler. "O que mais atrai é a sua invenção e a sua imaginação para além daquilo que era esperado, numa forma tão sofisticada e sacralizada como era a Sinfonia no seu tempo", explicou ao P2. "Impressiona-me aquilo que fez com que, na época, os requintados vienenses não gostassem muito da sua música e exprimissem sérias reservas, nomeadamente a combinação da grande forma sacralizada com elementos musicais provenientes de músicas populares ou da "baixa cultura"."

Por isso Pinho Vargas vê em Mahler "o movimento fulcral, impulsivo e livre, em que o artista sofre e cede à tentação de contrariar, na prática, uma qualquer ideia feita de outros sobre qual devia ser a música que devia fazer." Reconhece porém que estamos hoje impedidos de "ouvir o choque" tal como os vienenses do Império Austro-Húngaro o ouviam. "Podemos simplesmente imaginá-lo e aplicá-lo à nossa situação actual na qual, apesar da sua imensa diversidade, continua a haver defensores de uma maneira justa e única de compor." Para Pinho Vargas a composição é "um acto de liberdade poética tal como Mahler o encarava". "Mahler circulava e transgredia nos dois sentidos e, por isso, tinha à sua disposição o mundo na sua infinita diversidade."

Alma, a bela

Apesar de ter nascido na pequena localidade de Kaliste, na Boémia, Gustav Mahler estudou no Conservatório de Viena e adoptou a capital austríaca como centro das suas actividades musicais. Intérprete talentoso, desenvolveu uma intensa carreira como maestro, que lhe condicionava bastante o tempo que podia dedicar à composição. Foi maestro dos teatros de ópera de Leipzig, Budapeste e Hamburgo antes de se tornar director da Ópera de Viena em 1897, onde permaneceu durante uma década, e realizou numerosas digressões na Europa e nos Estados Unidos.

Na viragem para o século XX, Viena era um centro de intensa actividade cultural e artística, albergando personalidades da estatura de Sigmund Freud, Otto Wagner, Gustav Klimt, Oskar Kokoschka, Arthur Schnitzler, Hugo von Hoffmannsthal, Karl Kraus ou Arnold Schoenberg. Foi num dos múltiplos serões intelectuais e artísticos vienenses que Mahler conheceu Alma Schindler, considerada a mulher mais bela de Viena e dotada de grande talento para as artes, com quem viria a casar-se em 1902. Alma também se dedicava à composição mas Mahler pressionou-a a abandonar a sua actividade criativa para se consagrar à dele, uma atitude da qual se arrependeria mais tarde, quando as relações do casal começaram a deteriorar-se e esta o trocou pelo jovem arquitecto Walter Gropius.

Mais do que qualquer outra cidade europeia, Viena condensava o passado e o futuro de uma maneira única, assumindo o papel contraditório de bastião da tradição e foco de inovação. Esta dualidade encontra também eco na música de Mahler. A sua produção revela tensões semelhantes, confrontando a nostalgia do passado com uma procura constante de novos meios de expressão. Ao mesmo tempo que era o último elo da grande cadeia austro-germânica de compositores sinfónicos, Mahler desenvolve uma concepção inovadora da forma musical, articulada numa sucessão de episódios individuais e pela justaposição de ideias e materiais contratantes. As suas Sinfonias são percorridas por música que evoca danças populares e canções folclóricas, fanfarras, marchas e paródias grotescas, mas também por momentos de sublime lirismo, que nos afastam da vida terrena e remetem para outra dimensão.

A produção de Mahler distribui-se por duas áreas principais que se contaminam mutuamente: a Sinfonia e o Lied, com acompanhamento orquestral. As canções compostas na juventude e os primeiros grandes ciclos escritos antes de 1901 - Lieder eines fahrenden Gesellen e Des Knaben Wunderhorn- têm uma profunda marca do universo literário de origem popular, ainda que filtrado pela tradição erudita na recolha de Arnim e Brentano que deu origem a esta última série. O uso da orquestra como um imenso reservatório de cores, ambientes e sugestões trouxe a estes textos uma poderosa e complexa carga expressiva. O Lied foi para Mahler uma espécie de laboratório sinfónico. Foi o principal fermento das primeiras quatro Sinfonias e não desapareceu totalmente das seguintes. Está presente na Quinta (Ich bin der Welt dos Rückert Lieder é citado no famoso Adagietto) e na Sexta (Revelge). A partir desta época, os alicerces criativos de Mahler tornam-se mais instrumentais do que vocais, mas a voz reaparece em grande pujança na Sinfonia nº8 (1906) e na Canção da Terra (1909), para contralto e tenor solistas, uma obra que realiza a fusão entre os dois géneros.

Os últimos anos de Mahler foram marcados pela angústia. Em 1907 abandonou o seu cargo na Ópera de Viena na sequência de uma campanha anti-semita desenvolvida pela imprensa e mudou-se para Nova Iorque a fim de ocupar o lugar de director musical da Metropolitan Opera. Pouco tempo depois morre a sua filha Ana, com apenas 4 anos, e o compositor descobre que sofre de uma grave doença cardíaca. A inquietante premonição das Kindertotenlieder (Canções das Crianças Mortas), compostas poucos anos antes, e da trágica Sinfonia nº6 converteu-se numa injusta realidade, agravada pela crise conjugal com Alma. Mahler morreu antes de terminar a sua Sinfonia nº10, mas as múltiplas dimensões da sua vida permanecem imortais numa música que pretendia abarcar o mundo. "As minhas Sinfonias tratam a fundo o conteúdo de toda a minha vida; dentro delas coloquei experiências e dores, verdade e fantasia", escreveu o compositor.

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