Peixe-porco

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Nunca imaginei que um dia viesse a agradecer ao aquecimento global. Tampouco podia supor que, tratando-se aqui de matéria alusiva ao prato, o objecto da satisfação fosse um membro esquisito da ictiofauna, ainda por cima de nome suinícola: o peixe-porco.

Encontrei-o pela primeira vez, há uns anos, na bancada da peixeira que habitualmente me abastece de fontes de proteína com baixo colesterol. Apresentava-se com péssimo aspecto. A pele tinha sido retirada previamente, de modo que todos os exemplares se mostravam inteiros e em carne viva, uma cena que ninguém gosta de ver antes de comer um animal. Até hoje não sei porque é que as peixeiras pelam certas espécies - o cação também é uma delas - antes de as comporem geometricamente sobre o gelo, para a subsequente transacção comercial.

Mas lá estavam eles, com a sua forma arredondada e os dentes a extravasarem grotescamente da boca pequena.

- Que peixe é esse? - perguntei à senhora.

- É peixe-porco, amor - respondeu-me ela, que aparentemente ama todos os clientes. - Não há coisa melhor do que isso.

Perguntei-lhe pela serventia comestível do bicho e fui informado de que em filetes eram uma maravilha, mas melhor ainda era temperá-los com sal, pimenta, alho e sumo de limão, levando os lombos ao forno, envolvidos em papel de alumínio.

Comprei três, a sete euros o quilo. E tornei-me fã incondicional do peixe-porco. Cada exemplar dá quatro filetes altos, de carne alva e rija, em lascas generosas. São a parte menor do indivíduo, cuja cabeça prepondera triunfalmente sobre o tronco. Não é coisa que se despreze. A macrocefalia do animal dá uma excelente sopa, generosa e carnuda.

À descoberta no mercado associei os ensinamentos académicos de amigos - que aqui identifico como "fontes próximas da investigação oceânica", em reverência ao jornalismo anónimo, um género fácil que cada vez mais se pratica por aí - amigos, dizia eu, que estudam há anos o que se está a passar nos nossos mares, longe da vista desarmada de leigos como eu. E concluí que, se o peixe-porco agora está frequentemente na panela lá em casa, é porque, com a subida recente do termómetro global, o mar português está mais quente, atraindo espécies que vivem mais perto da linha do Equador.

A índole tropical da personagem foi atestada pela felicidade com que uma conterrânea brasileira se dirigiu à peixeira, no outro dia, ao ver o dito peixe-porco em meio a salmonetes, chocos, safios e corvinas.

- Sabe como se chama este peixe na minha terra? É peroá - disse ela e arrecadou quatro, sem amanhar.

O peixe-porco passa assim a integrar a lista dos sintomas culinários do aquecimento global. Mesmo que sigamos à risca a cartilha do bom samaritano climático, um mundo mais quente no futuro é inevitável e o melhor a fazer é começar o processo de adaptação gastronómica desde já. No que toca à representação marinha, podemos contar com mais peixes-porcos ou polvos, mas menos carapaus e pescadas. Não é nada do outro mundo, basta alterar a ementa.

Inconscientemente - e muito motivado pelo preço, este inigualável indutor do comportamento humano -, já pus em marcha a minha estratégia de adaptação. O peixe-porco reina lá em casa, para gáudio dos fins-de-semana em família.

Do ponto de vista gustativo, é um sinal positivo, um modesto contrapeso à desgraça que se anuncia sempre que o termo "alterações climáticas" é invocado. Entre cheias hediondas, secas angustiantes, extinções em massa e demais motivos de legítima inquietação, o calor ao menos trouxe-nos um peixe que dá uns excelentes filetes com arroz de grelos. Perdoem-me a heresia, mas, nesta matéria em particular, bendito seja o aquecimento global.

Jornalista rgarcia@publico.pt

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