O exemplo do procurador-geral da República

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Até nos regozijaremos por contribuir para a reforma de Pinto Monteiro e para o prestígio e credibilização da Justiça

O procurador-geral da República (PGR) decidiu dar o exemplo em prol do prestígio e credibilização da Justiça Portuguesa e, ao mesmo tempo, arranjar um complemento de reforma. O PGR enveredou pelo árduo caminho dos tribunais ao intentar uma acção contra os jornalistas Ana Paula Azevedo, Felícia Cabrita e José António Saraiva e a sociedade proprietária do jornal Sol em que lhes pede uma indemnização de ? 360.000 pelo facto de terem publicado uma notícia onde, afirma, "vem implicado" o seu nome "na fuga de informação e aviso aos arguidos escutados" no processo Face Oculta (declaração de interesses: sou advogado das jornalistas num processo-crime por violação do segredo de justiça respeitante às referidas escutas) .

Numa altura em que a sociedade portuguesa precisa de exemplos que a motivem, que pela positiva despertem em nós a capacidade de nos superarmos, esta figura do topo da nossa Justiça sacrifica-se, assim, para nos dar o exemplo. Saliente-se que não recorreu o PGR aos tribunais criminais para obter a condenação dos jornalistas, certamente porque pessoas mal intencionadas - que sempre as há - poderiam dizer que, sendo ele o chefe máximo do Ministério Público, o desenrolar do processo poderia ser, de alguma forma, influenciado por tal facto.

Não. Pinto Monteiro optou por recorrer a um advogado que se prestou a colaborar nesta defesa da sua honra, apresentando o modesto pedido de ? 360.000 num tribunal cível, respeitando, assim, o decoro que é próprio do lugar que ocupa e demonstrando o seu elevado sentido de Estado. Só temos que lhe agradecer.

Um recente acórdão proferido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Homem (TEDH) no caso Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa contra Portugal debruça-se sobre este singular tema que é o de magistrados recorrerem aos tribunais pedindo indemnizações pelo que dizem deles, como passamos a relatar:

Em 1996, foram instaurados procedimentos criminais contra um solicitador e uma juíza, suspeitos de corrupção num processo civil, no qual os advogados Gouveia Fernandes e Freitas e Costa representavam uma das partes. No âmbito do processo de inquérito, estes advogados colaboraram com a Polícia Judiciária, ao abrigo da legislação anticorrupção. Os processos correram em separado e enquanto a juíza em causa veio a ver arquivado o inquérito que corria contra si, o solicitador foi condenado por tentativa de corrupção activa, tendo os referidos advogados sido testemunhas no processo.

Em Outubro de 1998, um familiar da juíza em causa publicou no jornal Diário de Notícias um artigo de opinião em que saudava a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que confirmava o arquivamento do inquérito contra a juíza e criticava aqueles que acusava de a perseguirem, nomeadamente "... os ministros António Costa e Vera Jardim, que meteram as cunhas necessárias na Polícia Judiciária em favor dos advogados e amigos Gouveia Fernandes e Freitas Costa que queriam envolver a juíza nas burlas do solicitador". Os advogados responderam num artigo que saiu no PÚBLICO e em que, entre outras coisas, afirmavam: "... enquanto o solicitador vai ser julgado pelo crime de corrupção activa, a juíza foi acusada de crime de corrupção passiva, mas acabou por não ser pronunciada. A juíza não vai ser julgada, apesar de se tratar do mesmo crime que é imputado ao solicitador que, por seu turno, vai a julgamento orgulhosamente só. No entanto, do ponto de vista processual, se os dois processos já tiveram desenvolvimentos diferentes e é provável que possam vir a ter fins antagónicos, do ponto de vista dos princípios mais elementares da Moral e da Justiça, não é possível que o julgamento e eventual condenação do solicitador não signifique também, naquele plano, o julgamento e eventual condenação da juíza, à sua revelia".

A juíza não gostou e recorreu aos tribunais cíveis pedindo uma indemnização pela ofensa à sua reputação. O tribunal de 1.ª instância condenou os advogados a pagarem-lhe ? 15.000 e o Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou as opiniões dos advogados "inadequadas" e "contrárias à verdade jurídica", subiu a indemnização para ? 25.000.

Os advogados pagaram, mas, através da advogada Sofia Mendes Martins, queixaram-se no TEDH e este, no passado dia 29 de Março, considerou que tal condenação violava o direito à liberdade de expressão consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e que a verba de ? 25.000 constituía "um montante demasiado elevado e de natureza a dissuadir os interessados de contribuir para a discussão pública de questões que relevam para a vida em comunidade". E , declarando Portugal culpado de tal violação, condenou o nosso país a pagar aos referidos advogados os ? 25.000 que tinham pago à juíza bem como as custas judiciais que tinham suportado e ainda ? 3000 a título de indemnização pelos danos morais.

Poderá esta jurisprudência do TEDH vir um dia a afectar a decisão que venha a ser proferida na acção do PGR? É uma hipótese, naturalmente. Não sabemos sequer se os jornalistas serão condenados, mas uma coisa é certa: nunca Pinto Monteiro deixará de ficar com a eventual verba que lhe venha a ser atribuída pelos tribunais nacionais mesmo que o TEDH venha um dia a reconhecer que tal indemnização violou a lei. A única consequência seria o Estado Português, isto é, todos nós, termos de pagar aos jornalistas as verbas que eles tivessem pago ao actual PGR acrescidas das custas judiciais.

Mas estou certo de que não nos importaremos com esse facto e, de alguma forma, até nos regozijaremos com essa possibilidade de contribuirmos para a reforma de Pinto Monteiro e para o prestígio e credibilização da Justiça Portuguesa. Advogado (ftmota@netcabo.pt)

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