A lua-de-mel que terminou com a beatificação de João Paulo II

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O Papa Ratzinger recordou a "força de um gigante" de João Paulo II Andrew/Medichini REUTERS

Bento XVI proclamou ontem o seu antecessor como novo beato, perante um milhão de pessoas, e admitiu uma "discreta celeridade" no processo

a É possível acabar uma lua-de-mel de sete meses numa missa de beatificação do Papa João Paulo II? E que essa viagem de núpcias seja um périplo à volta do mundo, terminando numa babel de línguas, cores e rostos?

Pelos vistos, sim, diz Rafael Walez, polaco, 34 anos. Traz duas grandes mochilas - uma às costas, outra à frente. E ainda um porta-fatos pendurado na mão. Para o calor que ontem voltou a aquecer Roma, não está mal. Rafael chegou no sábado à capital italiana. Mas, ao contrário dos seus compatriotas, não veio da Polónia: chegou directo de Banguecoque, na Tailândia, depois de visitar vários outros países.

Cabelo comprido, barba, Rafael é fotógrafo de profissão. A mulher é professora de Inglês. Casaram-se em Setembro e desde então estão em lua-de-mel. E porquê aterrar aqui no fim, na beatificação de João Paulo II? "A minha vida estava muito próxima dele. Foi eleito Papa quando eu tinha dois anos, mas lembro-me da alegria dos meus avós, dos meus tios, dos vizinhos, é algo que vou recordar para sempre."

Rafael já tinha vindo outras três vezes a Roma. Por causa de João Paulo II. A última delas foi no funeral do primeiro Papa polaco da história. "Tinha que cá vir agora. A sua mensagem era que tivéssemos o coração aberto a todos, que nos respeitássemos, fôssemos ricos ou pobres, crentes ou não-crentes. E que nos falou da liberdade, mas uma liberdade que começa no coração, para levarmos a paz aos outros."

Grande libertador. Do Líbano, esse é o cognome que Charbel Abi Nader, um engenheiro de 45 anos, dá ao Papa João Paulo - e por isso deu esse nome ao seu filho de três anos. "Foi ele que libertou o Líbano, mesmo os muçulmanos reconhecem isso. É o nosso pai espiritual", diz, ao sair da Basílica de S. Pedro, onde foi ver a urna com os restos mortais de João Paulo II. Ao lado, a mulher, Katherine, confirma: "Era um velhinho, com coração de criança."

No ecrã gigante colocado na Praça de S. Pedro, João Paulo II fala em português. São as imagens da homilia em Fátima, em 1982: "Do ódio e do aviltamento da dignidade dos filhos de Deus livrai-nos!"

Momentos depois, passa Joana Aguiar, bandeira portuguesa bem levantada. Com 32 anos, vem de Lisboa. "Este é o Papa da minha vida, foi eleito no ano em que nasci. Transmitiu amor a todo o mundo e esse amor é que nos traz cá."

Joana, terapeuta da fala, pode ficar sem palavras quando for, mais ao final do dia, à basílica, ver a urna de João Paulo II. "Não sei o que irei sentir. Acho que vou agradecer o facto de ele congregar velhos e novos, gente de todas as culturas, crentes e não-crentes. E levar todos os que trago no coração."

De França, Claire Hinault, 40 anos, funcionária pública, repete a mesma mensagem: "Não esqueceremos nunca este homem, que transmitiu muito amor aos outros pela sua presença neste mundo em guerra ou em crise financeira." E acrescenta: "É uma verdadeira esperança, que nos faz acreditar que o amor permanece o mais forte."

"A força de um gigante"

A Praça de S. Pedro vive um fim de festa. Mesmo assim, uma fila compacta dirige-se para a basílica. Dentro, funcionários do Vaticano tentam dar celeridade à homenagem, apressando as pessoas - que querem tirar mais uma foto, rezar mais uma oração ao novo beato.

Eram 10h38 de domingo em Roma (menos uma hora em Lisboa), quando Bento XVI proclamou beato o seu antecessor, facto que foi acolhido por um longo aplauso de oito minutos. Uma multidão que as autoridades civis de Roma dizem que era superior a um milhão de pessoas - e onde dominavam os polacos, conterrâneos de Wojtyla - participou na cerimónia.

Depois da leitura da biografia do novo beato João Paulo II, que iniciou o rito de beatificação e foi feita pelo cardeal Agostino Vallini, vigário do Papa para a diocese de Roma, Bento XVI pronunciou a fórmula de beatificação: "Acolhendo o desejo do nosso irmão cardeal Agostino Vallini, de muitos outros irmãos no episcopado e de muitos fiéis, depois do parecer da Congregação para a Causa dos Santos, com a nossa autoridade apostólica concedemos que o venerável servo de Deus João Paulo II, papa, de agora em diante seja chamado beato e que possa celebrar-se a sua festa nos lugares e segundo as regras estabelecidas pelo direito, cada ano a 22 de Outubro."

Na sua homilia, o papa Bento XVI afirmou que pretendeu dar uma "discreta celeridade" ao processo que culminou com a proclamação do seu antecessor como novo beato. Recordando a morte e o funeral de João Paulo II, há seis anos, o Papa afirmou que já naquele dia se sentia "pairar o perfume da sua santidade, tendo o povo de Deus manifestado de muitas maneiras a sua veneração" por Wojtyla. "Por isso, quis que a sua causa de beatificação pudesse, no devido respeito pelas normas da Igreja, prosseguir com discreta celeridade", justificou.

Vários grupos de católicos criticaram o que consideram a rapidez do processo, colocando reservas ao facto de ter decorrido tão pouco tempo entre a morte de Wojtyla, em Abril de 2005, e a sua beatificação, apenas seis anos depois - normalmente, um processo de beatificação só é iniciado cinco anos depois da morte do visado.

Na homilia, o papa Ratzinger recordou a "força de um gigante" de João Paulo II, que lhe permitiu inverter "uma tendência que parecia irreversível": com a sua acção, disse, ele "abriu a Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e económicos".

Foi com esta perspectiva que João Paulo II recuperou a "carga de esperança que de certo modo fora cedida ao marxismo e à ideologia do progresso". Wojtyla, afirmou o papa Ratzinger, "legitimamente reivindicou-a para o cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica da esperança, (...) orientada para Cristo, plenitude do homem e realização das suas expectativas de justiça e de paz".

Bento XVI, que sucedeu ao primeiro Papa polaco da história, recordou ainda os 23 anos em que, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, trabalhou directamente com o seu antecessor: "O meu serviço foi sustentado pela sua profundidade espiritual, pela riqueza das suas intuições. Sempre me impressionou e edificou o exemplo da sua oração."

Bento XVI definiu ainda a sua missão como a continuação da causa que animou João Paulo II: a de apelar à abertura dos corações a Cristo. E citou a frase que marcou a missa de início do pontificado de João Paulo II, em Outubro de 1978: "Não tenhais medo. Abri, antes escancarai, as portas a Cristo."

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