Os fracassos da social-democraciaEntrevista Wolfgang Merkel

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Wolfgang Merkel foi consultor dos governos de Zapatero, Schroeder e Blair Nuno Ferreira Santos

Há um futuro para a social-democracia europeia? Há, mas não é muito promissor. Os partidos de centro-esquerda vêem-se desafiados pelos ecologistas e pela nova tendência populista de direita radical. Talvez só lhes reste uma "política do medo", diz Wolfgang Merkel, 58 anos, académico alemão, citando Tony Judt.

É investigador no Centro de Investigação em Ciências Sociais de Berlim e passou os últimos anos a estudar a social-democracia. Foi consultor de Tony Blair, Gerhard Schroeder e Rodriguez Zapatero, quando chefiavam os governos de Londres, Berlim e Madrid. Veio a Lisboa falar do futuro da esquerda democrática europeia a convite das fundações Ebert e Res Publica. Um futuro que não vê como muito promissor. Os velhos partidos sociais-democratas e socialistas não souberam encontrar uma resposta para os que ficaram do lado dos perdedores da globalização.

Há dez anos, a maioria dos governos europeus era liderada por sociais-democratas e a Terceira Via estava na moda. Hoje são apenas três, por sinal, estão todos a atravessar momentos muito difíceis e a ter de aplicar programas de austeridade assente em agendas liberais. O que aconteceu?

A social-democracia está com problemas e disso hoje ninguém tem a menor dúvida. Mas não é de agora. Se olharmos para os últimos 30 anos, o fim ou o declínio da social-democracia foi sempre um tema recorrente. Nos anos de 1980, o famoso sociólogo já falecido Ralf Dahrendorf escreveu o livro After Social-Democracy onde anunciava que o século social-democrata estava acabado. Desde então o tema mantém-se actual. Mas, como mencionou, 20 anos depois voltou a haver um pico do domínio social-democrata, com 12 dos 15 países da União Europeia (UE) liderados por partidos sociais-democratas. Isso faz-nos lembrar que não devemos aceitar facilmente a ideia de declínio imparável da social-democracia ou das famílias políticas, em geral.

Mas há uma perda?

Há dois anos, o historiador Tony Judt escreveu sobre a mesma questão. Disse que a social-democracia só teria futuro, se se tornasse na "social-democracia do medo". Se fosse capaz de convencer os cidadãos de que todas as conquistas da última metade do século XX desapareceriam, se não continuassem a ter uma forte influência política. Mas isso não representa uma inovação, apenas a defesa do passado.

Mesmo pensando em ciclos, o que podemos verificar é que há um declínio efectivo em termos de resultados eleitorais. Os estudos demonstram claramente que, desde os anos de 1980, estão a perder votantes, mas isso também está a acontecer com todos os partidos que designamos por catch-all parties, aqueles partidos que atraem votantes das diferentes camadas sociais. Os partidos democratas-cristãos e os conservadores estão a sofrer a mesma erosão, mesmo que as perdas dos sociais-democratas sejam mais rápidas.

A Terceira Via parecia ser a resposta da social-democracia à globalização. O seu sucesso também acabou. Essa corrente ainda contém elementos para essa resposta do centro-esquerda à globalização?

Enquanto metáfora, acabou. Quanto aos seus elementos constitutivos, há um legado negativo e outro positivo, especialmente quando pensamos em políticos como Tony Blair, Gerhard Schroeder ou os trabalhistas holandeses.

Deixe-me citar primeiro dois ou três fracassos. Um dos maiores foi aquilo a que eu chamo o "Estado dos impostos". Eles não pensaram realmente que a social-democracia precisa de um Estado forte e que este tem de ser capaz de cobrar impostos a todas as classes da sociedade. E o que fizeram foi reduzir os impostos às empresas, às corporações, aos altos rendimentos. Isso abriu as portas àquilo a que o grande economista Douglass North chama "caminho da dependência". Passou a ser extremamente difícil voltar atrás, porque qualquer força política que o fizesse seria logo acusada pelos adversários de querer aumentar os impostos e isto faz perder eleições em quase todos os países europeus. O enfraquecimento do "Estado dos impostos" foi certamente um dos principais fracassos.

O segundo foi terem sobrevalorizado os efeitos positivos da globalização, levando-os ao credo na desregulação financeira. Foi um erro. Não viram que o impacto da globalização, que se traduziu num aumento de bem-estar geral, deixou de fora o terço mais pobre das nossas sociedades, que se dividiram entre os ganhadores e os perdedores da globalização.

O terceiro erro eu diria que foi terem deixado de fora o espaço da UE como espaço de acção política. Estes três erros acabaram por acelerar os problemas da social-democracia.

As coisas boas?

Não são tão fáceis de enunciar. Uma delas foi a importância que deram à sociedade civil, dizendo que o Estado não pode fazer tudo pelas pessoas. E, pelo menos em teoria, a ênfase que colocaram na educação, educação, educação.

Não crê que eles trouxeram uma forma menos conservadora de olhar para o Estado social?

Sem dúvida. Esse Estado social mais conservador, mais conforme como a visão democrata-cristã, realmente não ajudou muito a abrir novas possibilidades às pessoas para singrar na vida, porque só funcionava a posteriori, quando estavam desempregadas ou doentes. O Estado social tem de intervir muito mais cedo na vida dos indivíduos e aqui regressamos à educação, que tem de interferir muito cedo, para garantir a igualdade de oportunidades. Amartya Sen insiste muito nesta linha, argumentado que tem de se fornecer capacidades às pessoas, que depois devem decidir, elas próprias, o que fazer com elas.

Foram as políticas neoliberais que nos trouxeram até esta gigantesca crise financeira. No entanto, isso não se traduziu numa nova oportunidade para a social-democracia. As políticas predominantes são a mesmas. Como explica isto?

Houve uma oportunidade que se perdeu. Esse "consenso de Washington" que predominou sobretudo desde os anos de 1990, se não foi produto da social-democracia, também não teve a sua oposição. A social-democracia não conseguiu travar a crescente desigualdade, nem impedir que o terço mais baixo das nossas sociedades saísse do consenso social. Creio que, para o futuro, as nossas democracias serão muito afectadas por esse terço de drop-outs, para o qual a social-democracia não tem tido resposta.

Mas o que estes últimos 20 anos também trouxeram foi a estagnação dos rendimentos das classes médias, apenas compensados pelo acesso barato ao crédito, que agora acabou. Isso também não exigiria uma resposta do centro-esquerda?

Em primeiro lugar, houve realmente uma polarização entre as classes com rendimentos mais altos e as de rendimentos mais baixos. O que vimos foi que os cinco por cento de cima viram os seus rendimentos aumentar extraordinariamente e de forma muito rápida. O que diz das classes médias é verdade, na maioria das sociedades desenvolvidas, mas talvez não nas sociedades do Sul da Europa, como a Espanha, onde conseguiram ganhos acentuados...

E em Portugal...

E na Grécia ou na Irlanda, mas que vêem agora esses ganhos postos em causa pelas consequências da crise financeira. O que me parece mais interessante é que estamos agora a assistir, na Europa, à emergência de uma nova clivagem que é uma consequência da globalização. Verifica-se entre uma camada cosmopolita de pessoas muito educadas, que são os vencedores da globalização, os "viajantes frequentes", que são a favor de maior globalização, maior europeização, que não vêem mal nas migrações; e, do outro lado, aqueles a quem podemos chamar "comunitários nacionais", que são a favor do proteccionismo, contra os imigrantes, contra a Europa, que são contra a solidariedade europeia, como pode ver agora claramente nos países ricos da Europa perante as crises da Grécia, da Irlanda e de Portugal.

Esta divisão é muito forte e está a fazer emergir uma nova força política - os populistas de direita. Não na Europa do Sul, mas no Norte, e não muito na Alemanha apenas por causa do nosso passado. E o problema, para os sociais-democratas, é que estão a ver as camadas de trabalhadores mudar-se directamente para esses partidos. Os partidos sociais-democratas vêem-se dilacerados entre estes dois pólos. De um lado, os cosmopolitas bem-educados, do outro as classes mais baixas.

Falta-lhes uma nova narrativa política que faça sentido para as pessoas?

Provavelmente, neste início do século XXI, o tempo para as grandes narrativas acabou. A sociedade tornou-se muito mais fragmentada e individualizada. É muito difícil, por isso, encontrar uma nova narrativa comum que faça sentido. Claro que podem sempre continuar a dizer que queremos ter uma sociedade socialmente mais justa, o que já é alguma coisa e a social-democracia tem de fazer campanha com isso.

Esta questão da narrativa remete-nos para a notícia que me mostrou, sobre as intenções de voto que as sondagens atribuem aos Verdes alemães. A ecologia tornou-se numa narrativa muito mais poderosa do que a questão da redistribuição dos rendimentos, pelo menos nos países mais ricos da Europa do Norte. Depois da catástrofe no Japão, tornou-se numa coisa com a qual as pessoas se podem facilmente identificar. A ecologia é algo que os partidos sociais-democratas podem integrar, mas que não pertence ao seu ADN. O que quer dizer que há, pelo menos, três novos competidores para esses partidos: os ecologistas, os populistas e, em alguns países, os socialistas radicais. O seu espaço político reduziu-se.

Mas continuam a ter a questão do Estado social. As pessoas, na Alemanha como em Portugal, não estão preparadas para abandonar facilmente o serviço nacional de saúde, a educação pública, as pensões. Não haverá aqui um espaço para os partidos sociais-democratas, enquanto defensores do modelo social europeu?

Em primeiro lugar, o modelo social europeu existe apenas em comparação com os EUA. Se olhar para a Europa, há diferenças enormes. Eu não compararia a Suécia com o Reino Unido ou a Grécia...

Mas todos esses países têm um serviço nacional de saúde, um sistema de pensões. Há uma forte base comum.

Tem toda a razão. Mas isso não é material para uma nova grande narrativa. É aquilo a que Tony Judt chamou "políticas do medo". E há um outro problema: as sociedades europeias estão a ficar cada vez mais velhas e isso significa que especialmente dois serviços públicos estão sob mira do eleitorado - a saúde e as pensões. As pensões não são um investimento no futuro. Representam, com a saúde, dois terços do orçamento social. Estamos, de algum modo, a investir no passado, mas os partidos políticos não se atrevem a cortar aí, porque, se o fizerem, de forma radical, serão punidos por um eleitorado que tem mais de 50 anos. Este é um limite democrático muito grande num investimento maior no nosso futuro. É também por isso que sou céptico sobre a possibilidade de o Estado social ser material para uma nova narrativa social-democrata.

No seu país, a questão que hoje se coloca é a de saber se os Verdes podem vir a liderar o próximo governo. As sondagens colocam-nos à frente do SPD de uma forma consistente. Podem ser a alternativa aos conservadores?

Não creio, porque não têm respostas adequadas para um dos maiores problemas: a desigualdade da distribuição da riqueza e de oportunidades. Os Verdes têm o eleitorado com maior nível de educação, mesmo mais alto do que os liberais do FDP [Partido dos Democratas Liberais]. Não são os porta-vozes das classes mais baixas. São, sem dúvida, um actor político de primeiro plano e continuarão a sê-lo, apesar de pensar que as sondagens não estão, neste momento, a reflectir a realidade, por causa do impacte da catástrofe nuclear no Japão. Creio que o potencial dos Verdes, nas próximas eleições, pode andar à volta dos 20 por cento, o que não chega para liderar uma coligação de governo Mas passou a ser um parceiro indispensável.

Curiosamente, algumas da reformas que permitiram à economia alemã comportar-se tão bem foram feitas pela anterior coligação entre os SPD e os Verdes.

É verdade. Isso aconteceu especialmente no segundo Governo de Schroeder, entre 2002 e 2005. Reformaram o mercado de trabalho, em certa medida, liberalizando-o. Reformaram o subsídio de desemprego, procurando um maior equilíbrio entre direitos e deveres. Criaram alguns programas para treino dos trabalhadores. Mas esta não é a história completa. Não sou um fã das políticas neoliberais, mas elas também pesaram. A Alemanha foi o país da OCDE onde houve a mais forte compressão dos salários reais nos últimos 20 anos. Não houve qualquer aumento e houve-os em Portugal, na Espanha, em quase todos os outros países da OCDE. Foi isso que levou a Alemanha a tornar-se mais competitiva, transformando-se numa máquina exportadora dentro da UE. A Alemanha é um dos principais beneficiários do mercado interno, sem qualquer dúvida. É por isso que é acusada, com razão, por países como Portugal e a Grécia, de os ter empurrado para fora dos mercados, graças a essa compressão dos salários.

Foi consultor de alguns governos de centro-esquerda europeu. Que conselho lhes daria agora?

Fui de Zapatero, de Schroeder e de Blair. Argumentaria que a social-democracia tem de redescobrir as políticas de redistribuição e que devia levar mais a sério a sua promessa de educação. Deveria ainda manter-se firme na defesa do Estado social e deveria utilizar o espaço político europeu para encontrar estratégias credíveis para aplicar impostos a todas as camadas da sociedade, incluindo taxar mais fortemente os rendimentos mais elevados. É difícil, mas é preciso explicar que o Estado tem de capacitar as pessoas e isso exige meios financeiros.

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