O Portugal católico da I República é um mitoEntrevista Luís Salgado de Matos

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Nuno Ferreira Santos

Não houve perseguição da I República à Igreja Católica. Essa foi uma ideia construída pela máquina de propaganda do Estado Novo e de Afonso Costa. Na véspera do início do congresso internacional sobre os 100 anos da Lei de Separação, Luís Salgado de Matos publica um livro onde desmonta esse e outros mitos acerca da questão religiosa na I República

O Portugal católico da época da I República é um mito, diz o historiador e investigador Luís Salgado de Matos ao P2, na véspera de um congresso internacional que, na Universidade Católica, em Lisboa, irá abordar até sábado os 100 anos de separação da Igreja e do Estado, que se assinalam no próximo dia 20.

Autor de A Separação do Estado e da Igreja (Dom Quixote), que será apresentado na próxima semana em Lisboa e no Porto, Salgado de Matos refere os vários mitos que é preciso desmontar quando se fala do tema: não houve perseguição da I República à Igreja; catolicismo e republicanismo não eram blocos monolíticos e antagónicos; Afonso Costa queria negociar com os bispos o regime de separação e foi só quando se sentiu humilhado que decidiu avançar com uma lei.

Na I República, bispos portugueses e Vaticano estão em posições opostas sobre vários temas, as irmandades católicas aceitam as cultuais [associações criadas pela Lei da Separação para organizar o culto católico nas paróquias] ao contrário dos bispos, vários padres apoiam os republicanos. A Igreja não era um bloco?

Não. O Partido Nacionalista [PN] era o partido dos jesuítas, [representava] uma parte dos católicos e ele próprio não era homogéneo: havia monárquicos e outros que queriam estabelecer um regime moderno onde os católicos tivessem um papel importante ou preponderante. Depois, havia os monárquicos do constitucionalismo. E havia os católicos republicanos, que a historiografia posterior abafou.

Porquê?

Porque era, em larga medida, dominada pelo afonsismo e pelo Estado Novo, dois irmãos inimigos. Nenhum deles tem conveniência em que haja católicos republicanos. Os afonsistas diziam: os católicos eram monárquicos e conspiravam contra a República. O Estado Novo preferia dizer que a República perseguia os católicos - havendo católicos republicanos, a tese era duvidosa.

A residência dos jesuítas no Quelhas [Lisboa] iria ser fechada por uma portaria de 3 de Outubro de 1910. Os jesuítas seriam sempre expulsos. É normal que haja divergências políticas entre católicos. A unidade política do catolicismo é uma fantasia.

Falamos de pluralismo católico ou das elites católicas?

Os estudos que fiz têm mais a ver com o comportamento da elite do que com o do conjunto da população.

Sabemos que o Portugal católico é um mito. O padre José Agostinho Macedo, na Besta Esfolada, declara que teve que andar a fugir de multidões anticatólicas em 1820. Em 1857, quando a cólera mata D. Pedro V, o Governo, para animar a população, resolve expulsar as Irmãs de Caridade, freiras francesas que estavam no único hospital de Lisboa. Não havia enfermeiras que as pudessem substituir, mas a população rejubilou com a expulsão das freiras. Preferiam não ter assistência a terem freiras.

O cardeal D. José [Neto] ia uma vez numa procissão com o ostensório e teve que fugir porque ia ser atacado. Viram aquilo que brilhava, foram lá buscar. Teve sorte em não ser morto.

Como definiria a população?

Uma parte, provavelmente desde as Invasões Francesas, ficou profundamente descristianizada. Nós subestimamos a influência ideológica simbólica das Invasões Francesas. Na elite, a mesma coisa: a maior parte não era católica.

Talvez o sinal máximo da divisão seja o episódio da condenação de A Voz de Santo António [revista dos franciscanos portugueses], imposta pela Santa Sé e em relação à qual o então arcebispo de Braga não manifesta entusiasmo. Pelo que é sucessivamente desautorizado pela Santa Sé, com a bula, e pelo Governo, que o condena por ele ter dado seguimento à bula da Santa Sé.

Diz que venceu a tese de que tivemos uma I República violenta e opressora dos católicos. Não é por acaso que, depois do 25 de Abril de 1974, se fala de não repetir os erros da I República...

A tese não era só católica... Oliveira Marques, historiador de muitos méritos, que não era católico, dizia que Afonso Costa perseguiu a Igreja. E os republicanos de direita faziam seu o discurso da perseguição.

Acrescenta que venceram os extremistas dos dois lados. Cem anos depois, conseguiu-se uma forma de entendimento?

Já na altura, com excepção de casos marginais, havia entendimento. Em 1921 ou 1922, o culto é livre em todo o país, mas há uns tarados que põem uma bomba na Capelinha das Aparições [Fátima]. É essa bomba que enche a imaginação. Mais do que isso, é o facto de as pessoas que puseram a bomba não serem presas - facto interpretado como conivência das autoridades. Havia liberdade de culto, mas havia receio, insegurança. De um lado e do outro...

Da República também?

Os republicanos tinham medo da Igreja e por isso fazem acordos.

Não sei se este modus vivendi é sustentável. Logo a seguir ao 25 de Abril, no Mercado do Povo, um grupo de teatro representava uma peça em que o cardeal Cerejeira era apresentado como nazi. Quando entramos no delírio, podemos ir onde quisermos. Continua a haver extremistas de um lado e de outro.

Isso não tem a ver com o anticlericalismo da população?

A palavra anticlericalismo é muito ambígua: todos nós achamos que o clero não deve reger o Estado. Os católicos não são, nesse sentido, menos anticlericais que os não-católicos. Outro sentido é criticar os membros do clero. O anticlericalismo é muito frequente nos próprios meios católicos.

Não devemos ocultar que há uma minoria ínfima que acha que a religião é um mal e deve ser perseguida. Vivemos numa sociedade hipertolerante, mas em que subsistem manchas de intolerância, que não são capazes de se confessar como tal.

Falamos de minorias mas há fotografias de manifestações com largos milhares de pessoas contra a Igreja...

Lisboa e o Sul do país não tinham, maioritariamente, prática dominical católica. Há um esboço de sondagens que diz que, na segunda metade do século XIX, em percentagem, há menos gente a ir à missa em Lisboa do que em Paris.

Um recenseamento republicano, pouco conhecido, mostra que a percentagem de não-católicos, em Lisboa, é elevadíssima. Portugal católico, com 99 por cento de católicos, é um mito. É uma caricatura da propaganda do Estado Novo, que convinha à propaganda de Afonso Costa e tornou-se um dogma historiográfico.

O clero estava subjugado pelo regime?

Na literatura do tempo, é perfeitamente claro como o liberalismo maneja o clero. O cardeal Mendes Belo, patriarca durante toda a I República, tinha a reputação de ter sido feito cardeal por João Franco, porque a este lhe convinha ter mais um voto na Câmara dos Pares. Mendes Belo era considerado pelas suas qualidades intelectuais, mas tinha esse labéu.

O cardeal Cerejeira chamou ao regalismo a gaiola dourada - era uma maneira de ter a Igreja presa.

Que implicava o registo e todas as tarefas civis...

E que legitimava o pagamento dos padres, que prestavam um serviço à população, não apenas religioso, mas também civil. A Igreja mantinha em funcionamento boa parte do ensino, fazia o registo civil, prestava numerosos serviços estranhos ao que já na altura era religião...

Por via disto, e de muitos republicanos estarem convencidos que a Igreja era legitimista e queria o regresso ao passado e o regime de autoridade, pensavam que, se acabassem com o poder do Estado sobre a Igreja, esta ficaria ao serviço da reacção.

É nessa base que Afonso Costa começa a negociar com os bispos e que estes querem negociar com ele. Afonso Costa foi derrotado pelo Papa Pio X no episódio da Pastoral [do episcopado, de Fevereiro de 1911]. Afonso Costa quis proibi-la e, pelas minhas contas, ela foi lida a três quartos da população portuguesa. Foi uma derrota.

Que leva Afonso Costa a decidir avançar com a lei?

É isso que o leva a avançar, a querer humilhar e criar um clima de conflitos com a Igreja. Ele não queria a perseguição, queria a ameaça da perseguição. Afonso Costa só muda de política quando é publicamente humilhado pelos bispos. Muda radicalmente. Conserva a tentativa de regalismo mas percebe que não a vai conseguir e cria uma máquina para assustar a Igreja.

A partir do momento em que ele é humilhado publicamente...

Pelos bispos...

Pelo Papa. Os bispos não estavam de acordo com a estratégia do Papa. A Pastoral é difundida pelo D. Manuel Vieira de Matos, bispo da Guarda, mas é o Vaticano e o núncio que tratam disso.

É o Vaticano que está na origem dessa desobediência.

Sim. Sabemos que o texto da Pastoral não é de 24 de Dezembro, porque nessa data ainda não era certo que houvesse Lei de Separação. Os republicanos que queriam a separação à brasileira, entre os quais estava António José de Almeida, não queriam nenhuma lei.

Quando diz que este modelo não foi desejado e ultrapassou o Estado e os bispos, falamos dos episódios mais violentos ou do modelo de separação?

Falamos, em primeiro lugar, da Lei de Separação tal como foi aprovada. A maior parte dos republicanos não queria agredir a Igreja. Perfilhava a teoria dos três Estados e achava que o catolicismo era uma coisa própria de crianças...

Em duas gerações, acabaria, como dizia Afonso Costa...

Essa frase de Afonso Costa tem um lado de puro positivismo. Havia um lado napoleónico atribuído a essas declarações. Dava a impressão que os portugueses, quisessem ou não, deixariam de ser católicos. É assim que a frase é ouvida e é por isso que provoca a estupefacção.

Referiu o modelo brasileiro, que, nessa altura, foi rejeitado. Mas ele acaba por triunfar...

Mesmo ainda na I República. Havia um sistema generalizado, que se manteve durante o Estado Novo, de "homens de palha" do bispo ou do pároco, que fazem negócios em nome da Igreja - muitas vezes chamados "comissões fabriqueiras" ou "comissão da Igreja" -, são pessoas que fazem negócios jurídicos simulados. Com o fim da Igreja de Estado, ela perde personalidade jurídica. A solução brasileira era aceitar o princípio de uma associação de facto, desde que cumprisse a lei. Ora, como nem Afonso Costa conseguiu impor as cultuais, o que realmente funcionava era a separação à brasileira, com um bocadinho de hipocrisia.

Mas nunca a República perseguiu os "homens de palha" dos padres e dos bispos. Sabia-se onde é que eram compradas as hóstias e o vinho para as missas, era a coisa mais fácil. Mas nunca a República tentou fazer isso, não há um único caso.

É também alguma imprensa católica que mais reage contra o início do fenómeno de Fátima...

Porque a elite católica, no princípio do século XX, com excepção da minoria legitimista ou tradicionalista, é uma elite liberal, perfilha as ideias dominantes. Tal como hoje. Pertencemos a uma sociedade em que maioria de um grupo social como a Igreja Católica perfilha as ideias dominantes.

Fátima era um fenómeno alheio ao racionalismo que dominara o século XIX católico. A elite católica, quando vê aparecer Fátima, tem a mesma reacção do conjunto da elite: "Ensandeceram, é o povo."

Porque se construiu, ao longo de 100 anos, este conjunto de mitos de dois blocos antagónicos, da perseguição à Igreja, de uma República violenta que oprimia?

Houve violências na República. Como houve no PREC [Processo Revolucionário Em Curso, de 1975]. Freiras perseguidas, igrejas assaltadas, conventos violados - há muitos. Só que, como no PREC a Igreja tinha confiança no dr. Mário Soares, sabia que aquilo ia ser afogado. Na I República, não havia nenhum dirigente republicano com a capacidade e o carisma do dr. Mário Soares que metesse os extremistas laicistas na ordem.

Houve violência e ficou na memória. Embora houvesse uma Concordata oficiosa, desde Sidónio Pais; embora os democráticos, na fase final, estivessem de acordo com o Vaticano. Nas vésperas do 28 de Maio [de 1926], o Centro Católico vota a favor do Governo e os monárquicos votam contra. A Igreja terá de esconder isso, porque era suspeita de ter apoiado o Partido Democrático antes do 28 de Maio e tem que se limpar dessa suspeita.

A segunda razão é que a máquina de propaganda afonsista era muito poderosa. Oferece um esquema explicativo relativamente claro e agradável para o laicismo português. Como uma parte dos meus amigos, que me trata como diminuído quando sabe que sou católico...

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