As primeiras- -damas árabes já não são rosas do deserto

O mundo caiu em cima da Vogue americana quando, no início das revoluções árabes, Asma al-Assad, da Síria, foi elogiada como "magnética primeira-dama". Na Jordânia, a rainha Rania está sob ataque das tribos pelo seu luxo ostensivo. Em Marrocos e no Qatar, as princesas consortes contam com maior benevolência, mas todas começam a ser tratadas por "Marias Antonietas do Médio Oriente".

Asma al-Assad estava no lugar certo no momento errado. O que a atingiu não a feriu só a ela. Apanhou outras mulheres bonitas, bem cuidadas, bem vestidas e casadas com homens que mandam no Médio Oriente. Subitamente, a opinião pública ocidental deixou de as tratar por rosas do deserto, raios de luz, elementos de modernidade. Agora, são símbolos da extravagância e do nepotismo. Autênticas "Marias Antonietas" árabes, como cunhou a revista online Slate.

Será justo?

Não, responde Joshua Landis, director do centro de estudos do Médio Oriente da Universidade de Oklahoma. Pelo menos no caso de Asma, a primeira-dama da Síria. "Asma al-Assad está a fazer muitas coisas boas na Síria", escreveu Landis no seu influente blogue, Syria Comment, quando a contestação começou, com a publicação de um extenso perfil da mulher do Presidente na edição americana da Vogue. Quando se é bonita, bem vestida e poderosa, é normal a Vogue interessar-se por nós. O problema foi o timing - a eclosão das revoltas não foi o momento adequado para lhe chamar "rosa do deserto", dizer que é "a mais fresca e magnética das primeiras-damas" e que está a criar "um farol de cultura e secularismo numa região-chave".

Olhando bem para as palavras, não há nada de errado na descrição de Asma al-Assad. Está tudo certo. E o artigo foi "apenas o retrato de uma primeira-dama", na explicação pós-embaraço da Vogue. Mas deve um texto sobre uma mulher que só é notícia por causa do marido omitir o que ele representa? Essa é a polémica. E o pecado da revista americana foi não ter olhado para a manchinha impregnada na pele de Asma, mulher de um senhor que foi eleito com uns "fabulosos" 97 por cento num país-"chave" onde "o poder é hereditário" - palavras da Vogue.

A Síria é, de facto, um país estratégico numa região turbulenta. Ao longo da segunda metade do século passado, funcionou como um travão face a Israel e, por isso, o regime totalitário e opressor dos Assad foi tolerado e até legitimado por esse papel de tampão. Em nome dele, veio a ditadura, a ausência de liberdade política e de expressão, as pressões arbitrárias e a repressão sangrenta.

Em 2000, quando morreu Hafez al-Assad, o patriarca, o poder passou para o filho Bashar, depois de o primogénito e herdeiro designado, Basil, ter morrido num misterioso acidente de viação em 1989, na estrada Damasco-Beirute. Bashar já chefiava o Estado quando se casou com a namorada que conheceu em Londres. Ela, engenheira de computação prestes a entrar em Harvard, trabalhava no banco de investimentos JP Morgan; ele estudava oftalmologia. Escolheu-a por amor - segundo uns - ou por necessidade - segundo outros.

A união de Bashar e Asma pretendia simbolizar a unidade de um país de diferentes confissões religiosas, dos drusos aos curdos. Ele pertence à minoria alauita; ela à maioria sunita - mas à elite, que é aliada do regime, não à Irmandade Muçulmana, que é inimiga e quase exterminada, em 1982. Foi neste ano que Hafez al-Assad, depois de sobreviver a várias tentativas de assassínio mandou arrasar Hama, a cidade-bastião dos Irmãos Muçulmanos. Foram mortas entre 30 mil e 50 mil pessoas, segundo a Amnistia Internacional.

Nas revoltas populares que começaram na Tunísia e têm vindo a contagiar todo o mundo árabe, a Síria não foi excepção - e o que fez o pai, fez o filho. Bashar ordenou que polícia antimotim e o exército disparassem sobre manifestantes que, em várias cidades, pedem mudanças democráticas. Asma é a mulher deste homem. Então pergunta-se: devemos falar nela?, e que papel representa no regime?

"O país tem sentimentos contraditórios em relação a Asma. Há um sentimento de orgulho, penso, por terem esta primeira-dama bonita, ocidentalizada e muito britânica. Mas, ao mesmo tempo, os sírios sentem que ela desempenha um papel que é dar uma imagem suave, amigável e humana a um regime que é tudo menos isso", disse Soumaya Ghannoushi, investigadora da School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres e colunista do jornal The Guardian (a quem fez esta declaração) e da televisão Al-Jazira. Elas, que não usam véu, funcionam como uma cortina sobre a realidade.

Dizem estudiosos da Síria que foi Bashar quem incentivou a mulher, educada na zona ocidental e chique de Londres, a cultivar a sua imagem de sofisticação. "É uma verdade universalmente aceite que um ditador que queira ser aceite pelo Ocidente deve procurar uma mulher charmosa e culta", segundo uma análise publicada pela Reuters no ano passado, quando os alunos árabes na Universidade de Harvard homenagearam Asma pelo seu trabalho na promoção de uma sociedade civil activa e outras acções sociais.

Um trabalho que marca pontos a favor desta mulher que tem casa própria (não vive no palácio presidencial) e cuida dos três filhos. Uma ocupação tradicional, portanto, apesar de cultivar o progressismo e a modernidade ocidental - tem página no Facebook, apesar de esta rede social ter estado durante bastante tempo banida na Síria.

Rania, a superlativa

Que a mulher se ocupasse da casa e das crianças ainda por nascer foi o primeiro desejo de Abdullah II da Jordânia. "Rania deixara o seu emprego na Apple. Inicialmente pensámos que ela se encarregaria de tratar da nossa casa e passaria algum tempo a habituar-se à vida como membro da família real. No entanto, ela era uma mulher de carreira com demasiada energia para se deixar ficar em casa o dia inteiro. Ser dona de casa não era o futuro que previra para si própria", escreveu o rei hashemita na recém-lançada biografia A Nossa Última Esperança (Civilização Editora).

Coroada rainha, Rania foi eleita a mulher mais bem vestida do mundo, a mais elegante do mundo, a mais bonita do mundo... Como Asma, gosta de roupas e de sapatos de marca (a primeira-dama síria é conhecida por ter quase sempre Louboutins nos pés). Tem um corpo impecável, apesar dos quatro filhos. E é uma das figuras favoritas da imprensa cor-de-rosa, que a mostra em Paris ou Nova Iorque nas compras; no Sul de França, a apanhar sol; em Espanha e na Inglaterra, a ver jogos de futebol. Cem mil euros do erário público - que alimenta os gastos da rainha - serviram recentemente para fretar o avião que levou Rania a um jogo de futebol. No Twitter, Rania escreveu que estava a adorar.

"Levanto-me de manhã e sinto-me uma pessoa normal. Vivemos a nossa vida em função do povo que representamos. É uma honra e um privilégio ter a oportunidade de fazer a diferença - uma diferença qualitativa na vida das pessoas", lê-se na página da rainha na Internet.

O problema, dizem os críticos, é que Rania não é uma pessoa normal e não representa o povo para quem trabalha. É certo que tem uma actividade humanitária intensa, que pôs em marcha um ambicioso plano para reabilitar as escolas da Jordânia (e da Palestina), que trabalha em nome da UNESCO, que luta pela saúde feminina e pela preservação do meio ambiente, para citar apenas alguns exemplos. Mas, sublinha a Slate, Rania não só não representa as mulheres jordanas, que vivem numa sociedade ainda fechada em relação ao papel da mulher, como se esquece, por vezes, das contradições entre a sua vida no palácio e a vida lá fora. O exemplo da Slate: quando fez 40 anos, a rainha fez uma festa e convidou 600 pessoas de todo o mundo. Um neón com um gigantesco número 40 brilhava na encosta de um monte em cujo sopé existem várias aldeias onde não há água nem electricidade. Acusação da Slate: Rania - que, como é permitido a qualquer jordana, diz o marido na biografia, optou por não usar o véu muçulmano - não faz em privado o que apregoa em público.

Pior, sendo uma mulher poderosíssima - está na lista da Forbes -, abriu caminho à família, cuja fortuna aumentou consideravelmente nos 11 anos de reinado de Abdullah. E nisto é igualada por Asma, que vive numa "corte" minada pela corrupção.

Abdullah, e isto é certo, casou por amor. À época da cerimónia, 1993, Abdullah não era sequer o príncipe herdeiro da coroa de Hassan. O casal conheceu-se num jantar de amigos. Abdullah e a rapariga de origem palestiniana (mas de uma família abastada, não de refugiados) que crescera no Kuwait namoraram discretamente, não em segredo absoluto, como Asma e Bashar. O defunto rei Hussein aprovou o enlace e, já no leito da morte, quando o nomeou sucessor (retirando a confiança ao irmão, Hassan, que fora durante décadas o príncipe herdeiro), criou a Abdullah II um embaraço. Sobretudo porque o processo de paz no Médio Oriente não aconteceu como o pai previa.

Tensão palestiniana

A rainha palestiniana cria fricções dentro da Jordânia e os seus gastos, forma de vestir e estilo de vida são só a ponta do icebergue da contestação. Trinta e seis líderes tribais, representando quase 40 por cento da população do Reino Hachemita (o nome deriva de Hashem, o clã de Maomé, profeta do islão - uma ascendência que legitima quem está no trono), enviaram há semanas uma carta sem precedentes ao rei, acusando Rania de "servir os seus próprios interesses, roubando o dinheiro do Tesouro e manipulando para promover a sua imagem pública".

Rania foi crucial para 73 mil dos seus compatriotas receberem a cidadania jordana nos últimos cinco anos. As tribos receiam que o reino onde mais de 50 por cento da população é de origem palestiniana se torne numa espécie de enclave palestiniano, reforçando os argumentos dos "falcões" em Israel que recusam uma retirada da Cisjordânia ocupada porque os palestinianos já têm um Estado: a Jordânia.

Os gastos, a ostentação de Rania serviram de lenha na fogueira das tribos, que a compararam à mulher do deposto Presidente tunisino Ben Ali, que se enriqueceu a si e a toda a sua família facilitando negócios, nomeando familiares para cargos e até dando terras. "Pedimos ao rei que devolva a terra e as propriedades dadas à família de Rania. A terra pertence ao povo jordano", diz a carta das tribos que, enviada no auge das revoltas árabes que também chegaram a Amã, adverte para os perigos que a coroa incorre se não forem aplicadas reformas económicas e sociais.

Se a carta refreou Rania, é o que falta ver. Mas a contestação pegou, com a blogger Sana Saeed a escrever que 25 por cento dos jordanos vivem na pobreza (o país não tem os recursos de outros Estados árabes) e, por isso, a rainha "não fala para quem diz representar, fala por cima" do povo.

O silêncio de Lalla Salma

É talvez por isso que outra consorte, a princesa Lalla Salma de Marrocos, fala tão pouco. Lalla é casada com Mohammed VI, o herdeiro do pai, Hassan II, e a sua existência representa, ela própria, uma mudança para as mulheres marroquinas. Foi a primeira mulher de um rei cuja identidade foi revelada, a primeira a obter o título de Alteza Real, a primeira a aparecer em público, a primeira que não ficou reclusa num harém - sistema abolido pelo actual monarca.

Como Raina e Asma, Lalla Salma (filha de um professor primário e de uma costureira), que estudou informática, gosta de se vestir bem, e acompanha o marido nas poucas visitas ao estrangeiro - mas opta muitas vezes pelo tradicional kafkan. A luta contra o cancro e a sida, em Marrocos e em toda a África, têm sido as suas bandeiras.

Laila deu à monarquia marroquina um ar de plebeia que matiza o carácter quase divino de um rei da linhagem de Maomé. Sai para jantar com o marido, é fotografada a brincar com os filhos... e mantém-se alheada das intrigas palacianas e da alegada corrupção na corte, não se sabendo o que pensa sobre as reformas que Mohammed VI anunciou há semanas e que advogam uma monarquia constitucional.

Com um trabalho mais para dentro do que exposto para fora de Marrocos, Laila tem um perfil mais próximo do da sheika Mozah do Qatar, do que dos de Asma al-Assad e Raina al-Abdullah.

Segunda mulher do emir Hamad bin Khalifa al-Thani - que pôs ordem nas finanças públicas criando um fundo soberano que administra as riquezas do pequeno mas riquíssimo país do Golfo Pérsico -, a sheika Mozah reparte o seu homem com outras mulheres mas é a mais poderosa delas. Conseguiu que o seu filho passasse de terceiro para primeiro na linha sucessória. É uma activista política que usou o seu poder e influência para revolucionar o sistema de ensino no Médio Oriente - foi ela quem atraiu todas as grandes universidades britânicas e americanas a criarem pólos no Qatar, o emirado onde nasceu a Al-Jazira (Mozah foi a impulsionadora da Al-Jazira infantil) e o grande projecto de diálogo intercultural Doha Debates, para o qual foi contratado o melhor entrevistador da BBC, Tim Sebastian.

"Ser mãe de sete filhos permite-me definir a importância da educação da nova geração e das gerações que hão-de vir. Acredito que a educação é a chave para todas as mudanças que queremos realizar na comunidade global. (...) Promovo a educação para homens, mulheres, jovens, mulheres jovens, especialmente na nossa região, onde o abandono escolar dos rapazes no nosso sistema de ensino é elevado", disse à Euronews.

Tem uma imagem icónica, com os seus variados e coloridos turbantes (não lenços) a cobrirem o cabelo. E, apesar de gostar de Dior, Chanel e Gaultier, criou um estilo "islão chique": escolhe modelos que não mostrem decote, braços ou muita perna. O povo gosta desta mulher que tem uma visão e que ajudou o emir a tornar o petróleo numa fonte de progresso num país que, há poucas décadas, não era mais do que "um entreposto de beduínos".

A modernidade - na educação, nos serviços públicos de saúde - e a prosperidade do Qatar impediram que as revoltas populares aqui chegassem. E é por isso que sheika Mozah só aparece na lista das "Marias Antonietas do Médio Oriente" por engano.

Como defende a revista Slate, só em países pobres como a Jordânia ou a Síria a imagem destas mulheres choca. A maior parte da população do Qatar é composta por imigrantes pobres da Índia e Bangladesh. Mas para os abastados qataris, a extravagância da sheika Mozah não é nada que incomode. Nem aos olhos, nem à alma.

agferreira@publico.pt

Sugerir correcção