Homem de palavra

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Nas diz que o hip-hop morreu com Tupac Shakur e Notorious B.I.G., e que o que lhe sobreviveu não tem a mesma energia

Nas, o homem que diz ter visto o hip-hop morrer, toca na próxima quinta-feira com o jamaicano Damian Marley no Pavilhão Atlântico. Gonçalo Frota

Não foram precisos mais de seis meses para que o hip-hop morresse. Aquilo que anda por aí, em discos concertos e videoclips, diz-nos Nas, é apenas o espírito de uma música que foi morta com duas pancadas secas. Primeiro, a 7 de Setembro de 1996; depois, a 9 de Março de 1997. Para quem não frequenta assiduamente o mundo do hip-hop, estas duas datas correspondem aos assassinatos a papel químico de Tupac Shakur e Notorious B.I.G.: semáforo com luz vermelha a cair, carro a travar, "rapper" no banco da frente, os assentos restantes cheios do séquito e dos guarda-costas; outro carro pára ao lado, janelas para baixo, armas para fora, uma rajada de disparos, os pneus guincham, o vermelho ainda caído lá em cima, e já a escorrer cá em baixo. Tupac e B.I.G. morreram assim, a seis meses e 380 quilómetros de distância (Las Vegas-Los Angeles, voos desde 47 euros).

Em 2006, quando lançou o álbum "Hip Hop Is Dead", Nas teve de se explicar repetidamente. Afinal, que profeta vindo do próprio meio era este que se atrevia a passar a certidão de óbito à sua arte? O que ele quer dizer é apenas isto: "O hip-hop não é igual ao que foi em tempos. Há muitas pessoas talentosas que podem manter o espírito vivo na música que fazem, e muita da música de hoje tem pedaços de hip-hop. Por isso, o espírito está vivo". As mortes de Tupac e B.I.G., acrescenta, foram os últimos estertores de uma sequência que começou "quando o hip-hop se tornou um negócio" e começou a premiar "os artistas errados", os mais "comerciais".

Um dos problemas actuais é não ser facilmente discernível o que é bom hip-hop, coisa genuína, feita com a mão a treinar rimas e não assinaturas em cheques, da mera cópia interesseira. "Com o jazz ou com a música clássica e Beethoven e assim", diz ele, "sabe-se o que é verdadeira música clássica, o que é um bom violinista, a diferença entre quem parodia e faz uma versão comercial só para ganhar dinheiro". Quando, em seguida, nomeia "Public Enemy, Afrika Bambataa, De La Soul, Erik B. and Rakim", há um silvo a acompanhar-lhe as palavras, como uma confissão derrotada de quem sabe intimamente que não haverá outros deste calibre. Hoje, não há senão deslavadas versões IKEA desta gente - são todos iguais e qualquer um monta em casa.

Para África

Morto o hip-hop, Nas resolveu mudar temporariamente as suas energias para outros lados. Em 2008 lançou o álbum homónimo que se deveria ter chamado "Nigger" - a sua língua afiada acabaria por cortar umas quantas sensibilidades pelo caminho, e do reverendo Al Sharpton a 50 Cent não faltou quem se mostrasse ofendido pelo nome proposto -, mas depois virou-se para a colaboração com o jamaicano Damian Marley - filho do Bob, não o construtor, mas o outro, do reggae. A razão de terem trabalhado juntos e parido a meias "Distant Relatives", o disco lançado no ano passado, é tão simples quanto a menos inesperada história de amor: cruzaram-se, trocaram palavras durante umas horas, gostaram um do outro, e acharam que a coisa não podia ficar por ali. Mas em vez de lançarem as roupas ao chão e de se abandonarem num acto sexual furioso, despiram os egos e as lógicas carreiristas dos seus percursos e perceberam a dois qual era o caminho que podiam fazer juntos. Como seria de esperar, o disco acabou por soar a hip-hop + reggae, ainda que sem se comportarem como água e azeite - fundiram-se a sério.

Os parentes afastados a que o título alude são tanto os dois homens como os dois géneros que representam. Em comum, assinala Nas, havia uma "atitude na música" e um interesse específico pelos males de África. Não há letra no disco que não aluda aos problemas específicos do continente. Com a colaboração de K"Naan, por exemplo, apelam a um despertar do povo africano. Pouco surpreendentemente, Nas diz que se entusiasmou com as notícias que lhe foram chegando da Tunísia, do Egipto ou mesmo da Líbia. "As pessoas querem liberdade, querem parar a pobreza e a corrupção, e a revolução no Egipto começou tudo. É disso que falamos no disco: de despertar, de contrariar a corrupção, do valor histórico de sabermos quem somos. Acho simplesmente que devia ser feita alguma coisa para evitar as mortes".

No entanto, mesmo tendo em conta a forma como Nas tradicionalmente usa a palavra, está longe de condenar música que não reclame a mudança. "Música é música, acho bem que haja quem escreva sobre divertir-se; se a música puder ser mais do que isso e ainda assim soar muito bem, então óptimo. Por muito que algumas músicas não sejam sobre nada, passam-nos um "feeling", e esse "feeling" faz muito por nós - excita-nos, faz-nos avançar. Não diria a ninguém para mudar a sua música. Nem tudo tem de ser sobre o fim do mundo ou sobre política. Pode fazer-se uma revolução com uma canção sobre o amor".

No caso de Nas, o seu mundo mudou com duas canções: "Living for the City", de Stevie Wonder, e "I Want You", de Marvin Gaye. E é também isso que, modestamente, ele vai tentando fazer rima a rima.

Ver agenda de concertos na pág. 39 e segs.

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