O estrangeirado

Foi conde, marquês e, finalmente, duque de Palmela. Pedro de Sousa Holstein percebeu o seu lugar na História - e o da sua família - e por isso escreveu umas memórias

Sorte não é palavra de duque. Melhor é o termo providência, e foi ela que tornou Memórias do Duque de Palmela (ed. D. Quixote) um livro saboroso de ler do princípio ao fim. Goste-se mais ou menos de História. Acontece que a saga de Palmela começa com um casamento cheio de intriga política e acaba com outro repleto de intriga social. O primeiro no Portugal pombalino do século XVIII, outro quase a meio do XIX. Entre a primeira e a última linhas das suas memórias - ou entre um e outro casamento -, o duque está num país irreconhecível.

Para começarmos pelo princípio, há que perguntar por que escreveu Pedro de Sousa Holstein umas memórias. "Palmela" - responde Maria de Fátima Bonifácio, a historiadora que transcreveu, editou e prefaciou o manuscrito - "recusava um destino obscuro, aspirava à fama e à glória e desejava ser lembrado não apenas pelos seus descendentes, mas também pela História." E porque as memórias servem sempre para justificar actos e opções e corrigir versões, o relato do primeiro casamento, o do seu pai, marca o tom: os Palmela eram uma família do lado certo, mesmo quando o lado certo era o perdedor.

Gente extraordinária

Sem título mas aristocrata, Manuel de Sousa (dos Sousa do Calhariz), casado com a princesa Leopoldina d"Holstein Beck, foi mandado prender pelo marquês de Pombal, acusado, ele e três filhos, de participarem na conspiração de 1758 para matar o Rei que levaria aos calabouços e à morte os Távora e outras figuras da nobreza da corte de D. José. Manuel de Sousa morreu na prisão, dois dos filhos saíram muito debilitados e o outro não chegou a ser preso, mas não teve descendência. Pelo que o protagonismo dos Sousa do Calhariz prossegue com um dos restantes filhos, D. Alexandre, que se tomou de amores por Isabel Juliana de Sousa Coutinho, que Pombal tinha debaixo de olho para o seu filho "imbecil" (palavras do duque), José Francisco. O casamento fez-se, com a rapariga de 14 anos a convencer o marido a dormir fora da cama. O marquês pediu a anulação do casamento e a rapariga foi enviada para um convento até conseguir sair e casar-se com Alexandre. O casal foi de imediato enviado para Turim, e lá nasceu Pedro de Sousa Holstein, a 8 de Maio de 1781. "Parecerá impossível - escreve nas Memórias - que uma senhora de catorze anos, educada quase num retiro completo, vivendo em Portugal numa época em que ninguém se lembrava sequer de respirar contra a prepotência do marquês de Pombal, tomasse a resolução de lhe resistir."

Gente extraordinária gerou, portanto, gente extraordinária. O próprio duque conta que se destacava: "Ainda hoje me admira, quando penso no prazer que eu tinha naqueles anos da minha infância em ouvir a conversação de meus pais e das pessoas instruídas que frequentavam a casa."

Nos salões do pai embaixador (Copenhaga, Berlim, Roma), Pedro ouviu aventuras de guerra, histórias de espionagem, episódios de diplomacia e alguns segredos. Acompanhou o pai em algumas missões, que eram tão díspares como tratar de assuntos de Estado ou comprar, a pedido do Museu de Lisboa ou da Universidade de Coimbra (o duque não se lembra), colecções de insectos e plantas na Suécia. E movia-se com facilidade entre a alta sociedade das cortes onde o pai estava colocado, socializando com as figuras da cultura e do pensamento - as memórias são um desfiar de nomes.

"Ele destacava-se por ser um homem cosmopolita. Não havia em Portugal ninguém com a sua sofisticação, a aristocracia portuguesa era bastante bisonha e rústica", explica ao P2 Maria de Fátima Bonifácio.

Com educação e sabedoria de vida, tornou-se "num dos principais estadistas" da primeira metade do século XIX português e seguramente "num dos dois ou três maiores diplomatas que Portugal teve", sublinha a historiadora. Foi várias vezes ministro e primeiro-ministro, foi presidente vitalício da Câmara dos Pares e teve uma enorme influência no curso da História de Portugal num período de muitas convulsões e revoluções.

O relato de Palmela - raro em Portugal, um país sem tradições memorialistas; há duas importantes para o mesmo período, as do marquês de Fronteira e Alorna e as do conde do Lavradio, diz Bonifácio - é uma mistura de história pessoal e de histórias políticas escrito na primeira pessoa e com um estilo limpo e elegante. E só não é mais elegante, considera a historiadora, por ser muito provável que o duque nunca tenha revisto as suas memórias. A historiadora está convencida de que o manuscrito que transcreveu foi escrito em dois meses, na Madeira, num momento doloroso, quando a mulher estava à beira da morte.

A história de Palmela é sobejamente conhecida, mas um relato na primeira pessoa ajuda a perceber um homem que teve uma vida vitoriosa, mas que foi um fracasso como político, como diz a historiadora. O retrato de Portugal não é o melhor: quando chega ao seu país, aos 14 anos, aborrece-se com o ócio e a falta de estímulo intelectual; depois referirá que a corte está cheia de "ignorantes" com uma "ambição servil". A carreira diplomática salva-o da pasmaceira e devolve-o às grandes capitais europeias e, em concreto, a Madrid, onde começa a sua ascensão e a sua transformação em conde, marquês e finalmente duque de Palmela. Participou na guerra contra a invasão francesa, foi ao Brasil ser nomeado ministro depois do "triste espectáculo" da fuga da família real, tentou levar o monarca a outorgar uma Carta Constitucional, em Londres foi o "chefe e centro do partido da Senhora D. Maria II na Europa".

Em Londres, onde chegara aos 34 anos, fizera a aprendizagem de um modelo político que considerava perfeito e que desejou para Portugal, sobretudo depois da restauração definitiva da monarquia constitucional. "Ele não sabia fazer política facciosa e o que havia em Portugal eram facções ou partidos com comportamentos facciosos. Ele está mais próximo do Rodrigo da Fonseca [Maria de Fátima Bonifácio está neste momento a começar a trabalhar as memórias desta figura do liberalismo]. Tinha propensão para moderar e equilibrar, mas o tempo em que viveu não se prestava a isso", diz Fátima Bonifácio. E, por isso, este estrangeirado "falhou como político".

O segundo casamento que Palmela lembra nas Memórias é o do seu filho D. Domingos com a herdeira mais rica de Portugal, a filha do conde da Póvoa. O que o duque conta é a história de um rapto. Foi por intervenção da providência - uma palavra cara a Palmela, e a que dá muito uso nas Memórias -, relata, que salvou in extremis o casamento, contestado pelos parentes da rapariga, órfã, que viam a fortuna sair da família e engrandecer o já grande Palmela. O lado de lá mobilizou influências e conseguiu o apoio da justiça para levar Maria Luísa, que o duque educava em sua casa. Palmela activou a sua rede, mas prefere não dar pormenores do que fez: "Não saberei eu mesmo agora explicar em termos próprios os passos que se deram." O resultado foi Maria Luísa desaparecer da face da terra durante cinco semanas e só reaparecer para o casamento.

Como um deles

Desta união dependia a "prosperidade e o futuro da família, cujos pergaminhos aristocráticos, em meados do século XIX, já não bastavam para assegurar uma proeminência social indisputada", escreve a historiadora no prefácio.

O que explica que o duque coloque no mesmo patamar de importância este casamento e a "luta pela restauração da rainha". E esta foi a parte mais surpreendente das Memórias para Maria de Fátima Bonifácio: "Ele foi ministro do D. João VI, sob o absolutismo. Foi ministro na monarquia constitucional, atravessou diferentes épocas e em todas elas teve um papel relevante. A causa liberal teria levado muito mais tempo a triunfar, se Palmela não tivesse tido o papel que teve em Londres. Para nós pode ser chocante que ele ponha em paralelo um assunto da vida privada com um período em que teve uma vida pública intensa e importante." Mas o duque era um homem de duas costelas: figura da modernidade, era também um representante do Antigo Regime, que lhe dizia que "era obrigação de qualquer aristocrata não só conservar como aumentar a sua casa", explica Bonifácio.

Conseguiu. Na Europa, diz a historiadora, Palmela era olhado "como um deus". "Não havia mais ninguém em Portugal assim. Pela sua origem, relações e fortuna, tinha uma projecção que superava os outros. Estaria a par do duque da Terceira, mas para lá de Badajoz ninguém sabia quem era o duque da Terceira."

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