A geração do petróleo está a mudar o Guardião de Ormuz

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Página anterior, nuvens de fumo das torres da indústria petrolífera George Hammerstein/Corbis

Omã não quer ter arranha-céus futuristas, mas quer ter um futuro para lá do petróleo. A revolta democrática no mundo árabe obriga o sultanato a abrir o regime e a tomar medidas inéditas. Sem violência.

A noite chega a Mascate e o clarão da torre de queima da refinaria é, às vezes, tão intenso e alto que deixa ver a zona industrial e o bairro residencial contíguo. São domínios da mais poderosa empresa de Omã, a PDO, onde vivem e trabalham os seus quadros e funcionários. Nas chamadas "colinas da PDO", a luz da tocha gigante já não chega para iluminar nem o campo de golfe nem o discreto bairro da elite económica, mas estão perto. À noite, o petróleo, o trabalho e o poder convivem tranquilamente. Mas quando o dia nasce, a boa vizinhança estremece em Omã com o eco da mudança no mundo árabe.

Os trabalhadores da PDO, da Telecom Omantel, da Oman Air, do hotel Intercontinental, do Banco Internacional de Omã, da Companhia Financeira e de Investimento, do Banco Muscat e até da segurança privada do aeroporto da capital realizaram nas últimas semanas paralisações inéditas neste país do golfo Pérsico. Recorrem à greve para serem ouvidos, em curtos protestos pacíficos mas que se sucedem em corrente há cerca de um mês por várias cidades do Sultanato.

A greve na petrolífera ocorreu em zonas do interior, onde as populações se queixam de discriminação nos rendimentos. No Intercontinental, hotel com gestão pública, foi o ministro do Trabalho quem apareceu para falar com os trabalhadores. O Banco Internacional é o quinto maior do país, por activos, o Banco Muscat é o maior. Reclamaram e conseguiram melhores condições salariais.

A PDO, detida pelo Estado em 60 por cento e que representa quatro quintos do petróleo e gás natural de Omã, juntou ao acordo a promessa de programas de formação e criação de emprego. A Partex, petrolífera da Fundação Gulbenkian e accionista com dois por cento, diz dar "todo o apoio" à ideia.

A poucas dezenas de quilómetros, os intelectuais não arredam da porta do al-Shura, uma versão de parlamento constituído por membros eleitos e ouvidos pelo sultão, Qaboos bin Said, mas sem poderes efectivos. Dormem em tendas de campismo, lêem, protestam, fazem chá, ouvem música, protestam de novo, falam com amigos. Há dias em que são 50, outros 100, nos dias de descanso são mais. Trouxeram cadeiras desmontáveis e tapetes, sentam-se no chão, preparam os cartazes. Aparecem em Mascate, Salalah e Sohar, as três grandes cidades do Guardião de Ormuz, e são sempre jovens.

A lista de reivindicações tem medidas muito concretas, como exigir à autoridade policial do país que investigue e leve a tribunal os ministros sob suspeita de corrupção. Camionistas, funcionários de grupos de construção, engenheiros desempregados, funcionários públicos, empregados de empresas de automóveis e de supermercados são alguns dos resistentes e caras de um movimento que não tem data para levantar a tenda. Pedem melhores condições de vida, mais emprego para os locais e, sobretudo, reformas constitucionais. Vão agradecendo ao monarca as medidas que vão saindo, mas não desarmam nas reivindicações ainda não satisfeitas. Querem, entre outras coisas, auditoria externa aos processos de atribuição de terras, mandatos ministeriais com prazo e julgamentos em tribunal para os ministros sob suspeita.

O momento mais crítico desta fricção social não vai desaparecer tão cedo da memória. A 2 de Março passado, em Sohar, a maior cidade industrial do país, perto de três centenas de jovens bloquearam o trânsito. Um jovem morreu nos confrontos com a polícia na versão oficial, dois segundo as agências, e a imprensa revelou no dia seguinte um país chocado consigo próprio. As contramanifestações não violentas de apoio ao regime, com outras centenas de jovens, foram depois para a rua.

Marc Valeri, professor da Universidade de Exeter e autor de Política e Sociedade no Estado de Qaboos, diz-se surpreendido não com os protestos mas com o momento de violência. Apesar do clima de desafio generalizado aos regimes árabes, o que se passa em Omã "é também muito um assunto doméstico", pela tradição de "exigências populares", que nunca foi violenta.

O sultão tem tentado conter a insatisfação com uma série de medidas sociais e políticas. Em menos de um mês demitiu 12 ministros, alguns dos quais acusados de corrupção pelos manifestantes; anunciou aumentos de salários e benefícios sociais que abrangem especialmente a função pública; prometeu empregos para os jovens; e, por fim, deu o que é considerado até agora o passo mais significativo de resposta à pressão para uma maior abertura política do regime: o Conselho de Omã vai passar a ter uma parte do poder legislativo, prerrogativa detida até agora pelo próprio Qaboos e pelo seu gabinete. O Conselho tem duas câmaras, a senatorial, de 57 membros designados pelo sultão, e outra de 83 membros eleitos pelo povo e que constitui o al-Shura.

O decreto, emitido logo que a onda de protesto chegou ao sector privado, dá um mês para definir a alteração constitucional necessária. Os jovens que protestam à porta do al-Shura gostaram da decisão que vai ao encontro da sua lista de reivindicações, mas esperam para ver a medida final e se então valerá ou não a pena aplaudi-la. É também do al-Shura que vêm cinco dos novos ministros escolhidos pelo monarca absoluto, numa outra decisão inédita desde a sua chegada ao poder. "Se o al-Shura tiver poderes reais sobre o Governo, então, sim, celebraremos", disse um jovem.

Comparando estas remodelações com as do passado, Valeri admite que esta última vaga (três em menos de um mês) foi "muito invulgar", mas acredita que os manifestantes continuarão a exigir a saída do ministro do Palácio e medidas que provem que chegam às "poderosas famílias de interesses que são ao mesmo tempo decisores políticos e homens de negócios".

No poder desde 1970, Qaboos bin Said não foi até agora visado pelos protestos - um ponto ressaltado pelos observadores. Isso joga a seu favor frente ao movimento de mudança democrática que chegou ao país, mas não impede o Conselho de Ministros de pedir calma e o fim das acções, aludindo a um "fenómeno nunca testemunhado pela sociedade omanita", mesmo em protesto pacífico.

Também o ministro da Informação, Hamed al-Rashdi, pedia calma, dias antes, alegando que a democracia tem, antes, de ser "ensinada". "Temos de ensinar às pessoas o que significa a democracia e as instituições eleitas. Não é só o povo que teve a oportunidade de ter educação mais cedo, mas a maioria tem de saber o que está a fazer", porque "não se pode mudar tudo de um momento para o outro. Isto é um país". Al-Rashdi, há quase uma década a controlar a comunicação social, é um dos visados pelos manifestantes. Pedem a sua demissão, responsabilizando-o pela falta de liberdade de imprensa e, com isso, impedir notícias sobre os ministros corruptos.

Direcção para a democracia

Céptico quanto ao efeito das últimas decisões do monarca, Marc Valeri abre uma excepção quanto à promessa de poderes legislativos para o al-Shura, mas que terão de ser "efectivos". Por aí, sim, diz, haverá uma "direcção para a democracia".

Também para Denis Bauchard, especialista em Médio Oriente no Instituto Francês de Relações Internacionais, a abertura política terá de começar "pela concessão de poderes ao parlamento". "É a primeira etapa, mas a marcha será muito longa e difícil", acrescenta.

Zubair Iqbal, que esteve ligado ao departamento para o desenvolvimento do Médio Oriente e Ásia Central do Fundo Monetário Internacional, considera que Omã, face aos seus vizinhos, "continua a beneficiar de um ambiente sócio-político relativamente aberto com um caminho sustentado de redução da sua dependência económica em relação ao petróleo que o tornam mais dócil a uma mudança ordeira".

Com todas as incertezas do contágio da revolta democrática ao mundo árabe, Iqbal antevê que a transição "será aos solavancos" e estes "dependerão do nível de preparação das suas instituições e elites para suportarem as novas responsabilidades".

Tal como os seus vizinhos do Golfo, Omã é uma monarquia absoluta suportada por uma grande receita do petróleo, embora de muito menor dimensão, não chegando aos 900 mil barris anuais. Não está sentado em cima de reservas sequer comparáveis: fica abaixo de um por cento da fasquia do total mundial, em produção e reservas de petróleo e gás natural. É o único produtor do Golfo que não pertence à OPEP e não quis também pertencer à união monetária da região, sob o chapéu do Conselho do Golfo, projecto que dificilmente assim algum dia arrancará. É um dos países onde o peso dos expatriados é menos relevante, não chegando a 30 por cento do total da população, contra mais de 80 por cento no Qatar, por exemplo. Outra diferença menos visível: os omanitas citam singularmente o tempo em que o país tinha apenas "10 quilómetros de estrada alcatroada, três escolas e dois pequenos hospitais", quando o sultão Qaboos destituiu o pai, em 1970.

Em 2011, 41 anos depois e com a ajuda do petróleo, os omanitas são jovens e escolarizados como nunca, sobretudo as mulheres, a abertura social integrou-as no mercado de trabalho e na política, a economia cresce também com o petróleo, com a diversificação económica e com o investimento estrangeiro. O país fechou o ultimo plano quinquenal com uma taxa de crescimento da economia de 6,3 por cento ao ano, a preços constantes e, no rescaldo da crise financeira internacional, viu as agências de rating melhorarem a sua notação e a inflação controlada entre os três e quatro por cento.

Mesmo assim, a caminhada de prosperidade não foi suficiente para evitar ter uma "geração à rasca", como o mundo árabe tem e a Europa também, em especial no Sul. Na cidade mais cara do país, Mascate, um salário de 700 a 800 euros não chega para sustentar uma família com dois filhos, mesmo com a gasolina a custar 25 cêntimos o litro.

Sessenta e sete por cento da população de Omã tem menos de 40 anos. A ONU calcula que 62 por cento tem menos de 30, o valor mais representativo entre os países da região. Após 12 anos de escolaridade obrigatória, 52 por cento dos que a terminam ingressam no ensino superior ou técnico, sendo este maioritário. As universidades têm parcerias com uma dezena e meia de instituições estrangeiras desde a Austrália à Alemanha.

Desemprego entre 10 e 15%

O boom do ensino superior - académico e vocacional - confirmou-se nos últimos cinco anos. O número de alunos matriculados passou de 68 mil para 99 mil. É também um dos países árabes com maior percentagem de mulheres escolarizadas e no mercado de trabalho. O investimento na educação das mulheres nas últimas décadas fez também com que estas representem hoje 57 por cento da população universitária - Qaboos defende que um país não pode desperdiçar 50 por cento dos seus recursos humanos.

Não há números oficiais que mostrem o universo de omanitas sem trabalho. No Governo, as estimativas andam entre os 10 e 15 por cento, mas admite-se que seja superior. Alega-se que serão os próximos censos a desfazer a dúvida. Entre as medidas que tomou nas últimas semanas para estancar o descontentamento dos jovens, Qaboos prometeu 50 mil empregos a encontrar entre o sector público e privado, este ano, mais 300 euros mensais de subsídio de desemprego durante seis meses. Nos dias, seguintes, os jovens entupiram os serviços do Ministério do Trabalho que tratam das candidaturas. Eram contabilistas, electricistas, técnicos, empregados de supermercado, administrativos e profissionais de turismo, todos à procura de uma oportunidade.

"Passaram na escola, querem um emprego e têm esse direito", diz Anwar al-Rawas, professor de Comunicação Social na Universidade Estatal Sultão Qaboos. Admite que "o modelo de educação falhou", mas que o erro não é de Omã, é internacional. "É um problema em todo o mundo e nós somos parte deste mundo."

Defende uma avaliação que abranja professores, alunos e a própria sociedade. Identifica vários "erros": jovens a correrem apenas por um canudo, "sem saberem o que querem" e sem motivação real de aprender e um sistema de aprovações pouco exigente. "Vencemos a falta de educação mas agora os jovens andam pelas ruas, este é o assunto que o país tem de discutir", no resumo de al-Rawas.

Denis Bauchard defende também o direito dos jovens ao desapontamento, mas sublinha que as situações são diferentes entre os vários países. "É normal que os jovens que estudaram se sintam traídos por não conseguirem emprego", embora considere incomparável a situação entre um país como Omã ou Marrocos e aqueles onde se vive uma situação "caótica onde não há esperança" como o Iraque, Líbano, ou a Palestina.

Chegam anualmente ao mercado de trabalho cerca de 50 mil a 55 mil jovens, número semelhante aos novos empregos previstos. No desencontro entre o que os jovens estudaram e o que o mercado precisa, está, entre outras razões, a "fuga" para os cursos técnicos, com pouca qualificação, mas que prometiam mais saída no mercado. Prometiam sem cumprir. Abdulah al-Sarmi, secretário de Estado do Ensino Superior, defende que é preciso "melhorar o alinhamento entre os programas das universidades e o que o mercado de trabalho precisa".

"Somos um país com uma grande população jovem e não é fácil criar anualmente o volume de emprego adequado", disse. Gostava que as empresas conseguissem antecipar as suas necessidades de médio prazo para os programas do ensino superior reflectirem isso. "Sabem o que precisam agora, mas é difícil dizerem o que precisarão dentro de cinco anos."

Nos próximos cinco anos, quer incentivar licenciaturas em áreas científicas, sobretudo engenharia, medicina e economia, através de 200 milhões de euros para bolsas de pós-graduação no estrangeiro nas duas áreas e espera atrair estudantes que depois voltem ao país ou sigam para os países vizinhos com o mesmo problema.

Para Abdulmalik al-Hinai, economista doutorado pela London School of Economics e conselheiro das Finanças, é "preciso mais tempo, porque o nível de desenvolvimento exigido também está a aumentar".

Ao problema de escassez de mão-de-obra adequada, sobretudo na engenharia, as economias do Golfo juntam o impacto dos expatriados, nome pelo qual são tratados os estrangeiros mais qualificados e melhor pagos bem como os imigrantes indiferenciados normalmente de origem asiática do sector da construção. Estima-se que vivam actualmente 10 milhões de expatriados em toda a Península Arábica. No meio, está a "omanização", preceito político pouco eficaz segundo o qual os locais deverão ter preferência sobre os estrangeiros no mercado de trabalho, quando a realidade mostra o contrário. Eram cerca de 20 por cento da população e são quase um terço agora, ainda que seja um dos números mais equilibrados da região.

Apesar dos níveis obrigatórios de integração de nacionais nas empresas estrangeiras, que diferem consoante os sectores, os gestores tendem a recrutar expatriados para a gestão intermédia e de topo. "Vemos pessoas a chegar de fora. Ficam com os melhores salários e os melhores cargos", queixa-se Salah Mohammed Ali, um dos mais antigos trabalhadores do Intercontinental, referindo que os funcionários omanitas são excluídos dos aumentos salariais, dos benefícios sociais e dos programas de formação.

É o ministro da Informação al-Rashdi quem defende que há mais uma face neste problema: "Há trabalho, mas os omanitas querem é um certo tipo de trabalho, no Governo", responde. "O assunto não é fácil e todos são responsáveis por ele, Governo, sector privado e sociedade em geral."

Marc Valeri, que estuda há vários anos o país e é autor de dois livros sobre o tema, constata dois problemas com a omanização. Um foi não ter sido levada a sério desde a década de 2000 pelas famílias no poder. "Como membros do Governo tinham de implementar a omanização, como homens de negócios não tinham interesse porque lhes saía mais caro." Ganhou a segunda até agora. Todavia, Qaboos retomou o assunto e "voltou a dizer que é importante". O segundo problema, acrescenta, é que "a omanização tem sido dirigida para baixas qualificações e não funciona assim. Não é uma questão de falta de trabalho".

Al-Sarmi, incumbido de arranjar soluções para o tal alinhamento entre a oferta e a procura de emprego, quer, para já, propor um centro que congregue informação sobre tendências de empregabilidade, a partir de informação de todos os sectores económicos e das agências governamentais e civis. "[No Ministério do Ensino Superior] não sabemos o que se passa no turismo, na indústria..." Cabe a este ministério, agora ocupado por uma mulher, dar as primeiras respostas.

No plano quinquenal de desenvolvimento, a vigorar até 2015, prevê-se a criação de 200 mil a 275 mil novos empregos impulsionados pelo sector da construção como foram os 177 mil registados no plano anterior, um crescimento económico anual de seis por cento, uma taxa de inflação de quatro por cento e um crescimento das actividades não petrolíferas de 10 por cento. No papel, os números são optimistas.

lurdes.ferreira@publico.pt

A jornalista viajou a convite do Governo de Omã

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