Torne-se perito

Um patriarca da estabilidade, intelectual reconhecido, um homem cansado do cargo

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D. José Policarpo já apresentou ao Papa o pedido de resignação rui gaudêncio

Todos lhe reconhecem um perfil de pensador e de referência na Igreja e no país, por entre críticas a algum esmorecimento da sua acção nos últimos anos. Aos 75 anos, idade-limite para os bispos, é tempo de balanço

Ninguém poupa elogios. Alguns apontam críticas e dizem que deixou arrefecer o entusiasmo inicial. Todos reconhecem o perfil de intelectual que, desde a posse do cargo de patriarca de Lisboa, em 1998, o destaca como referência da Igreja Católica em Portugal - e do próprio país. Identificado com um estilo afável e apaziguador, de discurso fluente e civilizado, foi sempre chamado a resolver crises. Acabou por ser o patriarca da estabilidade, pragmático, mas também - notam alguns - não arriscou demasiado. E que por vezes aparenta cansaço do cargo, mesmo estando "bem de saúde".

Aos 75 anos, feitos ontem, D. José Policarpo goza, como poucos, de uma imagem positiva na sociedade. Já na Igreja, algumas das suas opções (ou a falta delas) são criticadas.

Nascido em Alvorninha (Caldas da Rainha), a 26 de Fevereiro de 1936, José da Cruz Policarpo foi ordenado em Agosto de 1961 - os 50 anos são assinalados, até Outubro, com várias iniciativas. Aos 75 anos, a regra obriga a apresentar ao Papa o pedido de resignação - o que fez dia 18.

O patriarca chegou e venceu: está à vontade em público, por contraste com o antecessor, o cardeal António Ribeiro; dá entrevistas a meios de comunicação - ainda no último Natal foi entrevistado por quatro meios diferentes; chama para chefe de gabinete o padre Agostinho Jardim Gonçalves, antes afastado; preside ao casamento dos padres Felicidade Alves e Abílio Cardoso, que tinham saído em litígio com o cardeal Cerejeira.

Ao mesmo tempo, D. José promove uma série de encontros com políticos, economistas, ambientalistas, editores e especialistas em imigração. Troca cartas no Diário de Notícias com Eduardo Prado Coelho, editadas em Diálogos Sobre a Fé. Mantém um programa na Rádio Renascença com Jorge Sampaio e Pinto Balsemão.

No seu mandato de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) negoceia-se a nova Concordata entre Portugal e a Santa Sé. Como patriarca, é um dos líderes do ICNE, o Congresso Internacional para a Nova Evangelização (com os cardeais de Paris, Bruxelas, Budapeste e Viena). Convida a Comunidade de Santo Egídio a promover em 2000 o seu encontro anual inter-religioso em Lisboa; e, em 2004, a comunidade monástica de Taizé (França) é convidada a promover na capital o seu encontro europeu de jovens.

O vulto de pensador destaca-se, mesmo entre a maior parte dos bispos: "Chega a patriarca depois de um currículo académico notável", diz o cónego Carlos Paes, de 72 anos, pároco de São João de Deus, em Lisboa, uma das duas dezenas de pessoas com quem o PÚBLICO falou para este balanço sobre a acção de D. José.

Mas não só. Peter Stilwell, director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (FT/UCP) recorda as crises que Policarpo, ainda padre e, depois, já bispo auxiliar de Lisboa, foi chamado a resolver. A primeira foi em 1972, como reitor do Seminário dos Olivais, depois de vários padres da anterior direcção terem abandonado o sacerdócio - o seminário ficara reduzido a 11 alunos.

Entre 1974 e 1980 e de novo entre 1985 e 1988 foi director da Faculdade de Teologia. Depois, já bispo auxiliar, foi reitor da UCP e, ainda, presidente da TVI, para o projecto da "televisão da Igreja" - mas pelo menos este último, dizem vozes mais críticas, correu mal: D. José não tinha muita disponibilidade para a gestão económica de instituições. Mesmo assim, ganhou o seu "estilo apaziguador, fluente, civilizado", como define Peter Stilwell.

Falta criatividade

Vem dessa falta de gosto para finanças outra observação que alguns fazem sobre o actual momento: muitas decisões são entregues ao ecónomo do patriarcado. Mas este, o padre Álvaro Bizarro, critica, por exemplo, gastos com iniciativas no campo da cultura e comunicação social, duas opções de D. José. O ecónomo também não gostou que o patriarca inaugurasse o monumento (pago pelo patriarcado), no Largo de São Domingos, evocativo do massacre dos judeus em 1506. Críticas feitas pelo menos numa reunião com muitos padres e o próprio patriarca, mas que este não contestou. O PÚBLICO procurou várias vezes falar com o cónego Bizarro, sem sucesso.

Um dos padres diz, sem referir nomes concretos: "O patriarca deixou-se rodear por colaboradores mais executivos que pastorais. Na cúria, falta criatividade e há muitos traços de carreirismo. Alguns dos mais válidos não estão nos serviços centrais."

Várias pessoas apontam um facto para o início do esmorecimento: em 2005, a Conferência Episcopal Portuguesa votava um novo presidente. D. José completara o segundo mandato no cargo, mas defendia que a CEP alterasse os estatutos para permitir um terceiro triénio. Os bispos rejeitaram a ideia e escolheram o arcebispo de Braga. O facto marcou negativamente o ânimo de D. José, observam.

No final desse ano, o patriarca presidiu à etapa de Lisboa do ICNE. Mas a iniciativa, que propunha dinamizar novas formas de presença da Igreja na cidade, ficou marcada pela mais tradicional procissão com a imagem da Virgem de Fátima. "O ICNE teve um grande entusiasmo de muitos leigos, mas não se conseguiu igual entusiasmo do clero, a começar pelo seminário", aponta Carlos Paes, responsável do congresso.

O cónego João Carlos Rocha, pároco de Santa Joana Princesa, diz que o ICNE manifestou o empenhamento do patriarca na reflexão sobre o tema. "Os frutos ainda não são sensíveis, estas coisas maturam lentamente." Este padre pensa mesmo que a iniciativa de Lisboa e das outras quatro cidades talvez tenham levado o Papa a criar o recente Conselho Pontifício para a Nova Evangelização.

Carlos Paes tem outra questão: "Na Igreja, os últimos tempos estão marcados por um revivalismo mais preocupado com a ortodoxia do que com a paixão pela evangelização e pela criatividade." Por vezes, diz, "é difícil perceber que paixão anima os novos padres, que se deixam domesticar pelo conservadorismo." Estes problemas não existem por causa do cardeal, acrescenta. Antes, este foi vítima do "défice de toda a geração de padres que abandonou o ministério a seguir ao Concílio Vaticano II".

Carlos Azevedo, de 42 anos, padre há 16, capelão no Hospital D. Estefânia, destaca o perfil de intelectual do patriarca, um pragmático na hora de tomar decisões. A incapacidade de a Igreja ser mais consequente, por exemplo no distanciamento em relação ao poder político, deixou a figura do patriarca também presa desse limite. "Não somos capazes de avaliar e dar consistência ao que queremos, é uma característica portuguesa."

Para lá das questões internas da Igreja, é mesmo o perfil de pensador que se destaca. Guilherme d"Oliveira Martins, presidente do Centro de Reflexão Cristã, diz que admira "a relação" do patriarca com os intelectuais. "O diálogo publicado com Eduardo Prado Coelho foi muito importante. D. José é um homem de inteligência rara e grande coragem, com a preocupação de garantir a inserção positiva da Igreja na sociedade portuguesa."

Cristina Sá Carvalho, responsável do Secretariado Nacional da Educação Cristã e professora na Universidade Católica, destaca a figura de "grande referência". E recorda que o patriarca foi "das primeiras vozes a alertar para a necessidade de uma reflexão centrada na pessoa e na coisa pública".

Esta atitude foi notória em debates como os do referendo sobre o aborto ou o casamento de pessoas do mesmo sexo. Reafirmando os princípios da tradição católica, o patriarca nunca recusou que o Estado poderia ter uma posição diferente da Igreja. Tal posição valeu-lhe a crítica em surdina de sectores católicos mais à direita do espectro político, que o consideram pouco combativo. O padre Paulo Malícia, de 44 anos, responsável do Departamento de Catequese do patriarcado, diz que D. José "não cortou as pernas a ninguém, a diocese de Lisboa é plural".

A pintora Emília Nadal, envolvida em várias iniciativas culturais do patriarcado, recorda os encontros do cardeal com artistas. "Tudo o que não é clássico na evangelização não é valorizado. Muitas vezes continua a achar-se que a cultura é a cereja em cima do bolo, mas o patriarca fez dela uma opção."

Mais genericamente, observa que D. José "nunca fez separações maniqueístas entre Igreja e sociedade, teve sempre um sentido de humor muito sadio, procurou o diálogo e o entendimento com outras religiões" - deve-se ao cardeal a criação de um departamento para o diálogo inter-religioso, dirigido por Stilwell. Cristina Sá Carvalho, professora na UCP

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