Um cisne fora de palco

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Maria José Fazenda, antropóloga, professora na Escola Superior de Dança e ex-bailarina, assistiu a Cisne Negro e escreveu sobre a relação de proximidade ou de distância que o filme estabelece com a realidade do ballet e com a vivência de uma bailarina numa companhia de dança e enquanto intérprete de O Lago dos Cisnes

O ballet é um mundo constituído por especificidades, quando comparado com outros mundos da dança e da não dança. A organização hierárquica interna dos profissionais, o domínio de técnicas de movimento extremamente virtuosas, por parte dos bailarinos, carreiras profissionais que começam cedo e acabam cedo, regras que definem deveres e direitos de cada elemento no interior de uma companhia e de ocupação dos vários espaços de trabalho, procedimentos para cuidar da indumentária, um reportório que, na actualidade, concilia obras clássicas com outras contemporâneas - as quais, sublinhe-se, frequentemente desconstroem as posições entre bailarinos - são aspectos que definem este universo particular.

Algumas destas facetas aparecem no Cisne Negro, de Darren Aronofsky, como as aulas de dança clássica, as bailarinas cumprindo o ritual de coser as fitas às sapatilhas de pontas, a distinção dos bailarinos pela posição que ocupam e as personagens de O Lago dos Cisnes em acção. São, contudo, imagens frequentemente fragmentadas, distorcidas, exageradas. Mas é a colagem da vida de duas personagens, Odette/Odile, que em si são já uma fantasia sem correspondência na vida real, à vida de uma bailarina que, no filme, pode induzir ao equívoco de se acreditar que se está perante algo baseado em situações efectivamente experienciadas pelas bailarinas nos dias de hoje numa companhia de ballet, em vez de um produto da actividade ficcional dos seus autores.

Espírito de classe

Admitamos que alguns bailarinos possam identificar situações realmente vividas de entre o conjunto das que são representadas no filme, como a ansiedade resultante da pressão sentida pelas exigências artísticas ou interpretativas colocadas por um coreógrafo ou mestre de bailado particulares, ou da competição entre pares, ou ainda os eventuais comportamentos abusivos que ameaçam a integridade do sujeito. Estas podem, no entanto, ser situações eventualmente vivenciáveis em qualquer mundo profissional competitivo e hierarquizado e não exclusivamente no mundo do ballet.

Os universos profissionais competitivos e socialmente hierarquizados, em que as posições dos indivíduos são, ao nível das relações de poder, assimétricas, favorecem os comportamentos egocêntricos, narcisistas e abusivos. Nas sociedades democráticas, contudo, espera-se que os dispositivos de detecção de tais abusos funcionem em permanência e que os mecanismos de punição dos agressores sejam imediatamente accionados. O que também se espera que aconteça, sem hesitações, no mundo de uma companhia de ballet, nos dias de hoje, na Europa ou nos Estados Unidos da América (referem-se estes contextos por serem os que melhor conhecemos e por ser o contexto norte-americano aquele a que o filme se refere). São, por isso, surpreendentes os abusos que ficam impunes na versão do mundo de Aronofsky, sobretudo os de índole sexual exercidos por Thomas (coreógrafo/professor) sobre Nina (a jovem bailarina protagonista). Que bailarina se sujeitaria, nos dias de hoje, a tais ofensas no seu local de trabalho? Que coreógrafo ou mestre de bailado conseguiria, nos dias de hoje, manter a sua posição, cometendo tais injúrias?

Num depoimento sobre o Cisne Negro, dado à revista Danser (edição de Fevereiro), Élisabeth Platel, ex-bailarina étoile do Ballet de L"Opéra de Paris - posição mais alta na hierarquia social entre os bailarinos nesta companhia -, exprime a sua estranheza perante a figura do mestre de bailado representada no filme: "(...) A época dos directores de companhias a importunar as jovens bailarinas terminou e parece-me ainda mais espantoso ver isso num filme americano."

Também num interessante trabalho sobre o modo de construção das carreiras e sobre as relações profissionais em quatro importantes companhias de ballet, Ballet across Borders: Career and Culture in the World of Dancers (1998), as observações da autora, a antropóloga Helena Wulff, contrariam até a convicção de senso comum da existência, na actualidade, de comportamentos opressivos de coreógrafos ou ensaiadores para com bailarinos. Pelo contrário, Wulff regista que estes afirmam frequentemente os seus eventuais desconfortos perante algo que lhes é exigido fisicamente e a que não estão em condições de responder, ou recusam-se a fazê-lo, ou sugerem mudanças. A determinação, por parte dos bailarinos, na defesa dos seus direitos e da sua integridade física é um aspecto que um outro filme, A Dança - O Ballet de L" Opéra de Paris, de Frederick Wiseman, que esteve recentemente nas salas de cinema portuguesas, também documenta.

Mesmo o espírito competitivo que Wulff descreve como sendo característico do mundo do ballet é, porém, segundo a antropóloga, amenizado e contrabalançado com a camaradagem e o espírito de grupo e de classe vivido entre os bailarinos. Por isso, não são menos estranhas, no filme, a violação que Nina comete sobre os bens de Beth e, sobretudo, a violência psicológica exercida por parte de Thomas e de todo o grupo ainda sobre Beth, a bailarina-estrela que vê a sua carreira chegar ao fim, e que, precisamente por isso, seria, no mundo real, digna do maior respeito e não de uma cruel desconsideração.

A carreira dos profissionais do ballet começa cedo e acaba cedo, é certo. A pressão do tempo para concretizarem os seus objectivos artísticos e se realizarem profissionalmente pode ser forte. Neste quadro, se o lado infantil da bailarina muito jovem pode corresponder a algo observado na realidade, como, aliás, reconhece também Platel, no mesmo depoimento citado atrás, pelo contrário, afirma a ex-bailarina étoile, a "forma como Nina se afunda na loucura, trabalhando no seu papel, releva da pura ficção".

O facto de uma bailarina se deixar envolver pelo papel que desempenha ao ponto de se confundir com ele é inverosímil, sobretudo, porque, por um lado, estão em causa personagens de uma narrativa fantástica e, por outro lado, porque o papel de Odette/Odile, tendo em consideração as suas exigências técnicas e interpretativas, é atribuído a bailarinas que revelem possuir uma maturidade que não é compatível com a criação de tal confusão entre a ficção e a realidade.

Desde a estreia de O Lago dos Cisnes, de Marius Petipa e de Lev Ivanov, em 1895, a partir da qual foram sendo produzidas muitas e relevantes versões, o papel de Odette/Odile tem sido interpretado por bailarinas seguras e muito competentes. A primeira foi Pierina Legnani, a italiana que executou os famosos 32 fouettés enquanto Odile, na coda do 3º acto, secção a que o filme de Aronofsky faz, aliás, uma sublinhada referência. Depois, refira-se Mathilde Kshessinska que, ao lado de Vaslav Nijinsky, interpretou a Odette/Odile da versão de Mikhail Fokine, para os Ballets Russes de Serge Diaghilev, faz agora 100 anos. Houve, e há, muitas e muitas outras, até à prodigiosa Sylvie Guillem, passando pela exímia Margot Fonteyn.

Mulher oitocentista

Ainda em relação à dimensão artística de O Lago dos Cisnes trazida para o filme, é desadequado que um coreógrafo evoque o "excesso de controlo", característica que Nina teria para interpretar o cisne branco, Odette, por oposição à necessidade de "deixar-se ir", característica que lhe faltaria para interpretar o cisne negro, Odile. São qualidades que não definem os caracteres destas duas personagens, as quais, grosso modo, se definem antes pela oposição benévola-malévola. E se alguma interpretação teria de exprimir mais controlo seria a da segunda e não a da primeira.

Ora, é precisamente desta oposição entre o "excesso de controlo" e o "deixar-se ir" que Aronofsky precisa para representar, no filme, a sua visão do género feminino. A distinção que parece interessar-lhe não é entre as qualidades de movimento que melhor exprimem as diferenças entre o cisne branco e o cisne negro, mas as que melhor traduzem uma representação do género feminino dualista que distingue a mulher controlada-ingénua-inexperiente e a mulher livre-sensual-madura. É como se a primeira fosse o ponto de partida e a segunda o ponto de chegada. Pelo meio há um ser em devir, uma personalidade hesitante, a perturbação psicológica, o delírio.

A visão da mulher e da bailarina representada no filme de Aronofsky é redutora e simplista. Trata-se, contudo, de uma visão que alguns ballets oitocentistas veicularam e que o filme reitera. No século XIX, o ballet acentuou no palco a divisão social entre homens e mulheres e transformou-se, segundo a historiadora Lynn Garafola, "numa arte sobre mulheres interpretada por mulheres para homens" (Rethinking the Sylph: New Perspectives on the Romantic Ballet, 1997).

Mas, nos dias de hoje, não é só o cisne de Darren Aronofsky que está fora de palco, é também a sua representação do género feminino que está fora de cena.

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