Abílio e Prudêncio foram levados apasear e não voltaram

Os portugueses radicados na Galiza não escaparam às brutais perseguições que fizeram milhares de vítimas em toda a Espanha. Há 74 anos dois deles foram assassinados e deixados na berma de uma estrada. As famílias só conseguiram recuperar os seus mortos no Verão passado. Por Carlos Pessoa (textos) e Paulo Pimenta (fotografia)

A estrada, sinuosa mas aprazível, estende-se ao longo da costa, entalada entre a serra próxima e o mar de águas frias e revoltas, mesmo ao lado. Ligando A Guarda e Baiona, mais a norte, são uns 30 quilómetros fáceis de percorrer, num cenário natural belo e acolhedor, muito agradável quando há bom tempo e sol, como é o caso. Mas os sentidos podem ser enganados, pois este troço em terras da Galiza, pouco acima da foz do Minho, esconde memórias de terríveis acontecimentos. Isto pode surpreender, pois nada à volta o indica ou faz suspeitar que assim tenha sido. Porém, quem conhece a história local sabe que este é um caminho saturado de sangue, pelo menos na lembrança dos que viram ali sofrer e tombar assassinados os seus familiares.

Na sua esmagadora maioria, as vítimas foram galegos, mas começa agora a descobrir-se que também há um número significativo de portugueses entre os que caíram às mãos dos franquistas (ver caixa). "Tecnicamente, foi um genocídio político", afirma Xosé Vilar, arqueólogo e membro do Instituto de Estudos Miñoranos (IEM), uma instituição sem fins lucrativos que desde 1999 estuda e divulga a cultura galega nos concelhos de Baiona, Gondomar e Nigrán. "São escassos os casos motivados por incompatibilidades pessoais. Foi tudo organizado meticulosamente para eliminar toda a gente que fosse politicamente diferente ou hostil."

Logo a partir de 17 de Julho de 1936, dia em que foi desencadeado o golpe militar de direita que levou à guerra civil e à posterior instauração do regime franquista, a Galiza ficou praticamente nas mãos dos insurrectos. Aqui, não chegou a haver guerra civil, se excluirmos os episódios breves de resistência armada por parte dos sindicatos e partidos de esquerda e dos poucos militares que permaneceram fiéis à República. Houve repressão, brutal e avassaladora, sobretudo no primeiro ano a seguir ao golpe, visando paralisar os adversários políticos e garantir a colaboração (ou, pelo menos, a neutralidade) das populações. São os vestígios e sinais dessa acção no território, envolvendo também portugueses, que Xosé Vilar se empenha em mostrar-nos.

Em A Guarda, o edifício do colégio dos jesuítas foi transformado em campo de concentração nos anos de 1936-37, tendo por ali passado centenas de pessoas. No cemitério local estão enterrados cerca de 70 corpos, na sua maioria de asturianos e leoneses, vítimas dos julgamentos sumários ou da acção de grupos paralegais falangistas.

Já na estrada, um sinal indica o desvio para o Mosteiro de Oia. Fronteira a uma pequena enseada, resiste à degradação a única construção cisterciense do género junto ao mar, informa um cartaz numa parede. O mosteiro, hoje propriedade privada, está fechado e fala-se de um projecto turístico de grande envergadura para o local. A povoação cresceu mesmo ao lado, mas há 74 anos havia apenas três ou quatro casas - o sítio ideal, pois, para instalar um campo de concentração nos edifícios e terrenos anexos à construção monástica. Por ali passou um número incontável de presos, muitos deles vitimados pelos maus tratos, doença e alimentação insuficiente. Os mais velhos recordam que os detidos, na maioria catalães, eram por vezes autorizados a ir até à água, enquadrados por um cordão de guardas.

Prosseguindo o caminho para norte, num belíssimo palco natural, nas rochas sobranceiras ao mar encontra-se a dada altura uma singela escultura em bronze. Lembra a quem passa outro episódio sangrento daqueles anos, conhecido pela "Volta dos 9": como retaliação pela morte de um direitista durante a captura e morte de dois irmãos de esquerda em Baiona, um grupo de falangistas, chefiados pelo cabo da Guardia Civil Manuel Pena, retirou da cadeia de Vigo nove homens na noite de 15 de Outubro de 1936. Foram transportados de camioneta até à Enseada da Bombardeira, no quilómetro 58 da estrada Pontevedra-Camposancos, mortos um a um e exibidos depois publicamente pelas ruas de Baiona. Os seus nomes estão gravados numa lápide junto à escultura.

Outros pontos da estrada, sem mais identificação que a trazida pela memória das gentes, foram palco de actos violentos. "Nesta estrada mataram várias pessoas em quatro sítios", diz Xosé Vilar, enumerando, profissões, origens e nomes - mas nem sempre, pois ficaram muitos por identificar. Surpreende um pouco que os carrascos se dessem ao trabalho de percorrer distâncias por vezes longas - eram conhecidas como as "voltas dos mortos" - para eliminarem republicanos, socialistas, anarquistas ou comunistas, numa altura em que os meios de transporte e as vias de comunicação não eram grande coisa. Mas sabe-se por que razão deixavam muitas vezes os corpos por enterrar, na berma das estradas ou junto aos cemitérios. "Era para serem vistos pela população e dominar pelo medo", explica o arqueólogo galego.

Resistentes ao golpe

Uma das histórias contadas por esta estrada tem portugueses dentro. A meio de uma recta, ladeada por pinheiros, fica o desvio à direita para a aldeia de San Xián, no concelho do Rosal. Foi ali, às primeiras luzes de 11 de Fevereiro de 1937, no sítio conhecido por Carrascal, que foram encontrados dois corpos por gente da aldeia que ia ao sargaço - o de Abílio Barbosa, 36 anos, natural da freguesia de Rubiães (Paredes de Coura), antigo trabalhador em obras públicas como jornaleiro, emigrante no Uruguai e regressado com a proclamação da II República, em 1931, ocupando-se à data da morte das terras da família em Chaín, a três quilómetros da vila galega de Gondomar; e o de Manuel Prudêncio, 33 anos, natural de Santarém, jornaleiro e trabalhador na agricultura e também residente em Chaín.

Ambos apresentavam sinais de agressão violenta e feridas de bala no corpo e na cabeça, que lhes provocaram a morte. Foram enterrados no pequeno cemitério de San Xián, onde permaneceram até Abril de 2009, data da sua exumação.

O destino de Abílio Araújo e Manuel Prudêncio, membros do Sindicato da Construção e Ofícios Vários de Gondomar, foi o de muitos outros portugueses com filiação política ou sindical e um envolvimento declarado na vida social do país de acolhimento. "Alguns tiveram mesmo uma participação importante", afirma o historiador galego Dionisio Pereira. "No Sul de Pontevedra, por exemplo, há trabalhadores portugueses que morrem nos primeiros confrontos bélicos. São resistentes e a partir desse momento não há qualquer contemplação com eles. Todas as formas de repressão sofridas pelos galegos foram igualmente sofridas pelos portugueses: assassinatos por paseo [expressão para designar os fuzilamentos efectuados por grupos paralegais de falangistas], conselhos de guerra, mortes nas prisões devido às más condições, expropriação de bens quando os havia, expulsão para Portugal, onde são recebidos pela polícia política, etc."

Sobrevivência "difícil"

A recuperação da memória histórica da guerra civil é uma das actividades desenvolvidas pelo IEM desde 2004. Foi nesse âmbito que se procedeu à abertura da vala comum de San Xián, em estreita colaboração com os familiares das vítimas. "Estamos contra o papel excessivamente secundário que as famílias desempenham na maior parte das operações levadas a cabo em Espanha", diz Carlos Méixome, professor do ensino secundário e director do IEM. "Não queremos abrir valas só por abrir." No caso dos dois portugueses, o instituto agiu a pedido de Álvaro Araújo, 83 anos, filho mais velho de Abílio Araújo. "Foi ele quem nos manifestou o desejo de dar enterro condigno ao pai e ficar em paz", acrescenta.

Tudo começou uns anos antes, quando Álvaro Araújo contou a Carlos Méixome o que se lembrava da morte do pai e também do seu vizinho e amigo Manuel Prudêncio. Sabia vagamente onde os tinham morto, algures para os lados de Oia, nos primeiros dias de Fevereiro, mas nem sequer tinha a certeza do ano.

"Eu só tinha nove anos e era o mais velho de cinco irmãos, todos vivos", diz Álvaro Araújo ao P2. "O que me lembro principalmente daquele tempo é o medo, nós tínhamos muito medo!" Acrescenta: "O meu pai levava-me com ele para o trabalho no campo e quando via chegar um carro ou uma camioneta escondia-se, pois não queria ser visto por recear que viessem para o matar."

Na manhã de 10 de Fevereiro de 1937 reclamaram a presença de Abílio Araújo no posto da Guardia Civil de Gondomar. Ficou detido e já não regressou a casa. No dia seguinte, quando ia levar-lhe o almoço, Esperanza, a sua mulher, ficou a saber por um vizinho, soldado da guarda civil, que o marido já estava morto.

Depois disso, a vida da família "foi muito difícil", conta Álvaro. "A minha mãe não teve outro remédio que não fosse enfrentar a vida. Tínhamos muitos bens e foi vendendo as terras para nos criar. Eu fazia as papas para os meus irmãos e dava-lhes de comer, enquanto a minha mãe andava a trabalhar." Não se lembra de maus tratos sobre a família: "Não nos aconteceu nada, os vizinhos sempre nos respeitaram, porque éramos dos mais ricos do povo e o meu avô chegou a oferecer um terreno para a obra de uma escola e pagou a construção."

Álvaro emigrou no começo dos anos 1960 para França, trabalhou sete anos na construção civil em vários pontos do país, onde se deu sempre bem com portugueses, e acabou por regressar, porque "um homem cansa-se de estar sozinho". "Regressei sem ter a casa acabada, que fui fazendo a pouco e pouco", diz com um sorriso, enquanto aponta para o imóvel onde vive.

Quando Abílio Araújo era vivo, os familiares portugueses vinham todos os anos no Verão até Chaín, onde passavam férias. Com a sua morte, isso acabou. Há poucos anos Álvaro viajou até Portugal. "Tinha gosto de conhecer os meus primos. Fui direito à casa paterna, mas não vivia lá ninguém. Ao lado havia outra casa com uma capela pequena, onde vivia um primo. Mas assim que viu chegar o carro, fugiu! Deve ter pensado que fui pela herança do meu pai. Não fiquei contente."

Angelina Prudêncio, 74 anos, tinha meses de vida quando o pai, Manuel Prudêncio, foi morto. Era a mais nova de sete filhos, quatro da relação com Lucinda e três de um casamento anterior. "Não o conheci e a minha mãe nunca nos contou nada. Soube pelos vizinhos que o meu pai era muito bonzinho e que andava comigo ao colo quando ia trabalhar."

Já era noite quando, no mesmo dia 10 de Fevereiro, dois homens armados chegaram à casa de Manuel e Lucinda, dizendo-lhe que tinha de os acompanhar a Gondomar para prestar declarações. Foi a última vez que a família o viu vivo. Seguiram-se tempos muito difíceis. "A minha mãe ficou de luto e nunca mais quis sair de casa. Sofreu muito!", diz Angelina ao P2. Ainda antes de Manuel ser morto, Lucinda já tinha sido sujeita a humilhações públicas e ao castigo de corte completo de cabelo, possivelmente por viver com o português sem estarem casados. Nos anos seguintes, sobreviveram todos graças à ajuda dos vizinhos, que "[lhes] davam pão de milho para comer", diz. Lucinda conseguiu arranjar trabalho numa padaria de Gondomar e com isso e a venda de peixe "foi criando [os filhos]", acrescenta.

O filho mais novo de Angelina, Eusebio, 41 anos, soma-se à conversa, travada junto ao gavetão de família no Cemitério de Santo Tomé de Freixedo (Vigo). "Eu pouco sabia e não se falava do que aconteceu entre a família. Nós também não perguntávamos nada à nossa avó, porque não queríamos que ela sofresse. Não era por medo que não se falava, mas sim por tristeza, pois todos diziam que ele era uma pessoa que não se metia com ninguém."

Identidades confirmadas

Ao longo de 2007, Carlos Méixome percorreu os registos civis dos concelhos do Sul da província de Pontevedra, na companhia de Xosé Vilar. Procuravam dados sobre naturais da bacia do rio Miñor assassinados após o golpe de 1936. Acabaram por encontrar as certidões de óbito de Abílio Araújo e Manuel Prudêncio no registo civil do Rosal, o que permitiu completar a escassa informação existente sobre os dois portugueses - as famílias não dispõem sequer de fotografias das vítimas - e também determinar onde os corpos tinham sido enterrados.

O cruzamento da documentação e os testemunhos orais levaram-nos até San Xián, uma pequena aldeia a meio quilómetro de distância da estrada principal, na encosta pronunciada que desce da serra da Groba até ao mar. "Dois habitantes que na altura tinham sete anos lembravam-se de ver os corpos serem transportados pelos residentes para o cemitério numa padiola improvisada", conta Xosé Vilar, que dirigiu as escavações no local, desactivado como cemitério em 1971.

Ao abrigo de um convénio, assinado em Dezembro de 2008 entre o Governo da Galiza e a Universidade de Santiago de Compostela, foi realizada uma investigação antropológico-forense orientada por Fernando Serrulla (Instituto de Medicina Legal da Galiza), Xosé Vilar e Eduardo Mendez (coordenador de trabalhos), na qual participaram cerca de duas dezenas de voluntários.

As escavações nos dois talhões que ladeiam a pequena igreja tiveram início a 6 de Abril de 2009. Os familiares dos assassinados estiveram presentes. "Foi-lhes explicado como se iam realizar os trabalhos arqueológicos", conta Carlos Méixome. Tanto Angelina como Álvaro voltaram a estar presentes mais tarde, quando foram encontrados os corpos. O resultado da primeira sondagem, à altura da nave da igreja, foi negativa. As duas seguintes, ao nível do altar e de cada um dos lados do templo, deram com uma vala do lado esquerdo, contendo restos de botas e ossos da tíbia e perónio, a pouco mais de um metro de profundidade. Continuando a cavar, foram então encontrados três corpos, um deles descalço, todos enterrados sem caixão.

Na outra vala foi encontrado um corpo cuja identificação continua em processo de investigação. No entanto, tudo aponta para que se trate dos restos mortais de Joaquín de la Iglesia Portela, um carpinteiro galego de San Pedro da Ramallosa (Nigrán) morto no Rosal.

No dia 18 de Abril de 2009 foi realizado na sede do IEM, em Gondomar, novo encontro entre os familiares dos dois portugueses e os peritos para recolha de informação sobre as características físicas dos assassinados, e ainda saliva de Angelina e Álvaro para identificação posterior de ADN.

O relatório genético, produzido a 14 de Junho de 2010, confirma o que já se intuía: dois dos corpos eram de Álvaro Araújo e Manuel Prudêncio. O terceiro é de um homem conhecido como o palero (padeiro) da Laureana, até hoje não identificado de forma cabal.

Conta Carlos Méixome: "Quando me foi comunicado por telefone o resultado dos exames, informei de imediato Angelina, Álvaro e os seus irmãos. Pode imaginar a emoção do momento!"

A entrega dos restos mortais às família decorreu no dia 31 de Julho do ano passado em Gondomar, numa cerimónia muito emotiva, em que participaram todos os envolvidos no processo e as extensas famílias galegas dos dois portugueses.

"Agora estou tranquila"

O ataúde de Manuel Prudêncio está no Cemitério de Santo Tomé de Freixedo (Vigo), ao lado do corpo da mulher e do marido de Angelina, também português. "No dia do funeral", recorda esta última, "emocionei-me de uma maneira que nem conseguia falar, ao ouvir dizer que ele era um homem de bem e nunca se tinha metido com ninguém."

Quanto a Abílio Araújo, foi depositado no gavetão da família, no cemitério de Chaín, onde repousam também, por vontade de Álvaro Araújo, os despojos do palero da Laureana.

Agora que o processo foi concluído, é evidente o alívio de ambos. "Sim, agora estou tranquila. Antes não, não dormia nem me sentia bem", confessa Angelina. Álvaro, por seu lado, diz que sente e considera muito bem o que foi feito: "As cinzas do meu pai estavam enterradas lá longe e trazê-las para aqui não deve parecer mal a ninguém." Mas acrescenta: "Não sei se é pelos anos ou pela experiência da vida, mas sinto que há uma represália por parte dos espanhóis; ainda têm essa maldade no corpo, principalmente os da direita. Muita gente apoia [a recuperação da memória histórica], mas há gente que ainda dá patada contra isto."

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