Trindade: o segredo está no molho ou no espaço?

A Cervejaria Trindade é a mais antiga do país, obra de um galego que legou a Lisboa um edifício histórico que impressiona pelo estilo e grandiosidade. No último ano, por ali passaram 193 mil amantes de uma menos santa trindade, a cerveja, o bife e o convívio. Por Carlos Filipe (textos) e Rui Gaudêncio (fotos)

a Há quem diga que o segredo está no molho, que pode ser confeccionado com manteiga, leite, café (diz-se que de cevada), mostarda e uma pitada de farinha (talvez, até, Maizena). Assim, simplesmente, tal foi o resultado de uma busca instantânea na Internet que descreve o molho à Trindade (ou à Portugália) como uma cama fofa para os bifes de alcatra, vazia e lombo, estes feitos sela para o ovo estrelado, tendo as batatas fritas como acólitos de guarnição. É descrito como se fosse de ciência certa. Mas, também, se é sabido que há segredos que se fecham em cofre como o dos pastéis de Belém, outros há que, ao longo de tantos anos, poderão ter ficado mal guardados. Assegurando que mantém a coisa oculta, a Trindade, cervejaria mais antiga do país - que completou 175 anos no dia 8 deste mês - desde sempre teve por ofício servir aos lisboetas a sua boémia e aos forasteiros uma outra trindade menos religiosa que o antigo convento que a abriga, mas igual e seguramente de agrado dos conventuais: cerveja, bife e convívio.

Diz-se, também, que o segredo da muito concorrida instituição lisboeta, que já alargou o menu bem para lá dos mariscos e bifes - e que até o pequeno almoço já serve a grupos de turistas sedentos de calorias para demandarem o Bairro Alto - serão as características físicas do espaço que ocupa, da arquitectura das várias salas, das alegorias decorativas, da simbologia maçónica (o seu fundador, Manuel Moreira Garcia, era maçon), do trabalho artístico dos azulejos, do "Ferreira das tabuletas", que foi director artístico da Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, e dos painéis naturalistas em calçada portuguesa, de Maria Keil, embutidos nas paredes, que continuam a cativar a clientela nacional e a deslumbrar os visitantes estrangeiros.

400 convivas, uma cerveja

A vozearia ao repasto, amplificada pelo invulgarmente alto pé-direito dos salões, cria uma ambiência muito própria, especialmente à noite, o momento ideal para reuniões mais lúdicas, familiares, de convívio laboral, estudantil, de pequenas tertúlias. Até para descompressão de actividades político-partidárias. Podem os cinco espaços de refeição (a esplanada, no jardim, só abre no Verão) acolher 400 convivas. O serviço é prestado por 62 colaboradores. A cerveja fornecida aos comensais é só uma: Sagres. Uma opção discutível, alvo de críticas e dos apreciadores da bebida.

A Trindade produziu cerveja, a Portugália (outra instituição lisboeta da restauração "bifeira") também. Em tempos, estiveram sob a asa empresarial da Sociedade Central de Cervejas. A Portugália, com 85 anos, seguiu caminho próprio como grupo de restauração e trilhou um caminho de expansão sem par no ramo em Portugal. E, em 2007, adquiriu os dois restaurantes Trindade (há outro no Campo Pequeno, em Lisboa, no edifício da Praça de Touros). E também a cervejaria Ribadouro, na Avenida de Liberdade, e os quatro restaurantes La Brasserie de L"Entrecôte. Já são mais de 40 os restaurantes, alguns deles na versão balcão (Portugália).

Francisco Carvalho Martins, administrador do grupo - sociedade detida pelas famílias Carvalho Martins e Carvalho Vinhas -, explica que "fazer mais não significa, necessariamente, fazer melhor", referindo-se à complicada gestão do grupo, pelas suas mais diversas vicissitudes, seja no capítulo dos recursos humanos, ou de âmbito de fornecimentos.

Negócio de quatro milhões

Mas o lançamento de franchising (o direito de uso de marca ou patente licenciada), se não está em cogitação, não está posto de lado. Maria Carvalho Martins, responsável pelo departamento de marketing do grupo, admite que há muitos interessados nessa oportunidade de negócio, razão pela qual a sociedade tem recebido variadas propostas.

A verdade é que o negócio não tem corrido mal. No caso da Trindade, segundo a administração, o volume de vendas ultrapassou, no último exercício, os quatro milhões de euros, gerados por 193 mil clientes. Mais seriam se todos quantos aguardam na fila, nas tórridas noites de Verão, conseguissem um lugar à mesa para jantar antes da hora do fecho de portas do estabelecimento, às 2h, muitas vezes uma antecâmara de outros convívios no Bairro Alto. Números grandes, mas ainda maiores quando analisados ao pormenor. Em 2010, os visitantes da cervejaria consumiram 21 toneladas de carne de vaca e a mesma quantidade de batata, duas toneladas de carne de porco, 60 mil ovos e 16 toneladas de marisco. Só na Trindade foram bebidos 93 mil litros de cerveja à pressão e seis mil garrafas daquele líquido.

O curioso é que os fornecedores nacionais não conseguem acompanhar aqueles níveis de consumo. Francisco Martins explica que "não há, em Portugal, quem consiga fornecer tanta quantidade [para todo o grupo], na qualidade e no corte, a carne limpa que satisfaça os nossos padrões. Consumimos carne portuguesa, mas também nos socorremos de fornecedores da Holanda, Brasil e Argentina". Já no que se refere à cerveja, esclarece que não subsistem ligações da antiga relação com a Sociedade Central de Cervejas para que ali só seja consumida a marca Sagres - da qual o grupo é a maior cliente de produto em barril. Porém, diz que uma abertura a outros fornecedores poderia prejudicar o negócio.

Séculos de história

Aproveita a cervejaria, sobre os mesmos caboucos, o que perdura dos traços e da história do Convento da Santíssima Trindade, fundado em 1294, à data um dos mais importantes de Lisboa, naquela que hoje é a Rua Nova da Trindade. Foi ali que Manuel Garcia, empresário galego, em 1836, decidiu construir a fábrica cervejeira, também da Trindade, aproveitando as ruínas da antiga casa dos religiosos, ditos Frades Trinos da Redenção dos Cativos, assim designados por ser sua vocação o misericordioso ofício de resgatar os prisioneiros aos mouros. Reconstruído o imóvel que o grande terramoto e dois incêndios derrubaram, mais tarde devoluto pela extinção das ordens religiosas em Portugal, Garcia fundou e legou a Lisboa a sua mais antiga cervejaria. Não há registo que aqueles monges lisboetas tenham dedicado parte do seu tempo ao fabrico de cerveja, embora muitas outras congregações religiosas europeias o tivessem feito com reconhecido mérito, mas dir-se-ia que todos lhe tomavam o gosto, ou não estivesse esse motivo igualmente bem retratado nos azulejos das paredes do fundo do refeitório e nas ementas do estabelecimento.

O primeiro sucesso chegou em 1840, pois o empresário abriria um balcão de venda directa ao público, logo então um local de grande algazarra e convívio, naquele que é hoje o átrio da cervejaria, de onde se acede ao que era o refeitório dos monges. Em breve receberia alvará de fornecedor à casa real.

A Trindade do Bairro Alto só bem mais recentemente recebeu honrarias municipais e estatais, classificada no património da cidade e agraciada com a medalha de mérito turístico.

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