A importância de se chamar Ernesto

Foto

Segundo o STA os magistrados têm poderes secretos contra as investidas das "Mata-Haris" dos bares de alterne!

O dr. Ernesto, procurador adjunto no Funchal, era frequentador do Fugitivo, um reputado bar de alterne local, onde era conhecido como um cliente especial, a quem não se cobravam despesas com bebidas ou prostitutas, dado o seu estatuto profissional. De resto, não era o único frequentador "especial" daquele antro cultural: pelo menos, outro procurador adjunto também era, bem como alguns agentes de autoridade.

O "regabofe" corria alegremente sem quaisquer problemas, beneficiando o magistrado desse "complemento remuneratório" decorrente do seu estatuto, que lhe permitia, certamente, enfrentar as agruras da profissão com outra disposição. É certo que havia comentários, o meio é pequeno e no Funchal tudo se sabe, mas o problema só surgiu porque, numa inspecção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ao Fugitivo, o nome do procurador adjunto foi referido pelas meninas que aí trabalhavam, não só como um frequentador especial com direito a tratamentos gratuitos mas também, segundo uma delas, como fornecedor de informações sobre um processo que corria no tribunal contra um dos responsáveis do bar. Verdade seja dita que, no tribunal, corriam cerca de uma dúzia de processos contra responsáveis do bar mas em nenhum deles o dr. Ernesto era o magistrado titular.

Aberto o processo disciplinar, foram ouvidas as diversas meninas de nacionalidade brasileira que trabalhavam no bar, a "madame" das meninas e ainda outras pessoas, tendo o reputado magistrado tido a possibilidade de se defender, apresentando as suas testemunhas. No final, o Conselho Superior do Ministério Público puniu o dr. Ernesto com uma pena de suspensão de exercício de funções por 210 dias, acrescida de transferência para tribunal no continente, mas situado dentro do Distrito Judicial de Lisboa.

A injustiça era gritante, pondo em causa uma carreira que se anunciava brilhante, pelo que o dr. Ernesto não se ficou: recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, invocando sete nulidades processuais, e quanto ao "fundo" da questão, alegou que a decisão da sua punição enfermava de juízos errados sobre a prova, dava um relevo abusivo a uma mera "suspeição" quanto à sua imparcialidade, desrespeitava a intimidade da sua vida privada, escolhia mal a moldura disciplinar que lhe seria aplicável, e alegava ainda que a sua punição ofendia o princípio da igualdade, já que um outro procurador que costumava acompanhá-lo nas deslocações ao Fugitivo tinha visto o seu processo disciplinar ser arquivado.

O STA, analisando todo o processo, concluiu que, contrariamente ao que alegava o dr. Ernesto, era verdade que tinha frequentado o bar, que a sua condição de magistrado era aí conhecida e que ela lhe tinha trazido favores, o que, no entender do STA, punha em causa "o decoro e a dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções", previsto no Estatuto dos Magistrados do Ministério Público. A sua frequência do Fugitivo excedera os limites do que é inviolavelmente privado e tinha afectado a sua "vida pública", desprestigiando o cargo e a função. Concluiu, assim, o STA que tais comportamentos do dr. Ernesto constituíam infracção disciplinar.

Mas entendeu também o STA que a punição tinha de ser anulada. E porquê? Porque na decisão de punição se fazia referência a visitas ao bar desde 2003, mas, em virtude da prescrição, apenas podiam ter sido referidas as visitas entre 15 de Outubro de 2004 e 13 de Outubro de 2006.

Em abono da verdade, acrescente-se que só os juízes conselheiros Madeira dos Santos e Pais Borges aderiram a esta tese. O terceiro conselheiro que integrava o colectivo, Rui Botelho, no seu voto de vencido, explicou que a referência à frequência do bar anteriormente a Outubro de 2004 não visou punir o dr. Ernesto "pelos factos anteriores a essa data mas tão-só e apenas fazer o historial do seu passado conhecido de frequentador do bar. Nada mais". E acrescentou lapidarmente: "Por outro lado, qualquer frequência do bar naquelas concretas circunstâncias era suficiente para preencher a infracção (não é o número de vezes que releva mas as circunstâncias)". E, por isso mesmo, manteria a condenação. O STA anulou a punição e aguarda-se agora que o Conselho Superior do Ministério Público profira uma nova decisão em que afaste expressamente os períodos de "fugitivo convívio" anteriores a Outubro de 2004.

Um pouco mais de jurisprudência: uma das meninas referiu que a "madame" lhe tinha dito para ter relações sexuais gratuitas com o dr. Ernesto a fim de obter informações sobre um processo que corria contra um dos responsáveis do bar, mas o STA desconsiderou tal depoimento, não só porque a menina tinha tido uma relacionamento íntimo com o dr. Ernesto, que terminara e quereria, com essas afirmações, comprometê-lo, como também pelo facto de o dr. Ernesto não ser titular de qualquer processo contra os responsáveis do bar e, ainda, acrescentou o STA, "por não se acreditar que a rapariga estivesse à altura de, com êxito, extrair de um magistrado informações secretas".

Para o STA, o facto de um magistrado não ser o titular de um processo que corre no tribunal onde está colocado torna inverosímil que se obtenham, através dele, informações sobre esse processo. Mas, melhor ainda, segundo o STA os magistrados têm poderes secretos contra as investidas das "Mata-Haris" dos bares de alterne! Estamos sempre a aprender. Advogado (ftmota@netcabo.pt)

Sugerir correcção