Neste quintal de Lisboa, as plantas nem notam que vivem na cidade

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Hélder Valente mudou-se para um apartamento com quintal há dois anos, para iniciar um projecto de permacultura urbana daniel rocha

A Toca do Rebento não é uma horta qualquer. São 90 metros quadrados entalados entre construções de vários andares e ruas movimentadas, onde os barulhos da cidade são pano de fundo para o cantar dos pássaros que se escondem nas árvores. Ouve-se o estalar dos caules de couves que um coelho trinca a tarde inteira, e ali, mesmo com a cidade tão perto, consegue-se uma boa produção.

Hélder Valente mudou-se há dois anos para um apartamento com quintal na Estefânia, Lisboa, precisamente para iniciar este projecto de permacultura urbana. Chama-lhe "laboratório" e foi aí que recebeu a Pública para falar sobre esta área da permacultura que, admite, ainda tem de evoluir muito. "Em permacultura urbana, uma área de 50m2 é suficiente para alimentar uma família de duas pessoas." Um permacultor urbano consegue produzir até dez vezes mais do que um agricultor convencional, sustenta. "Um dos objectivos é preencher o espaço em todos os níveis - chama-se estratificação. Na agricultura convencional, vê-se um campo de milho todo à mesma altura, todo no mesmo padrão. Em permacultura não. Tentamos fazer por vários níveis, com as árvores a um nível mais alto."

As árvores que já lá estavam quando se mudou - para além disso havia apenas relva - ficam mesmo junto à casa. O damasqueiro, diz, é uma árvore de que gosta muito porque no Verão protege a casa do sol e no Inverno, caídas as folhas, os raios entram e ajudam a aquecer a casa.

Esta horta nem está aproveitada ao máximo e mesmo assim Hélder não precisa de comprar fruta ou vegetais entre Fevereiro e Novembro. Até lhe sobra fruta: nêsperas, limões, alperces. O limoeiro está carregado e são bem amarelos. Muitas vezes tem de levar o que sobra à mercearia do bairro "para trocar por tomates ou por outra coisa qualquer". Nada se deve desperdiçar, regra de ouro de um permacultor.

No quintal há um muro divisor. Hélder começa pelo lado mais pequeno, que é quase um corredor. Um contentor do lixo de 150 litros funciona como um depósito de água da chuva, "boa para fertilizante". "Com uma boa chuvada enche em dois dias" - e isto é apenas o que se consegue aproveitar de um dos telhados de lusalite que cobre parte da área mais próxima da casa. Ao lado, há um contentor preto em forma de cubo, enorme. "É um vermicompostor." Quase nada vai para o lixo nesta casa. "Apenas plástico." O contentor está cheio de minhocas da Califórnia, que têm uma particularidade: num dia comem o equivalente ao seu peso. "Um quilo de minhocas transforma um quilo de lixo em húmus [solo composto especialmente de matéria vegetal decomposto ou em decomposição] num dia." Hélder abre a parte de baixo do compostor, de onde cai o fertilizante: "Dá esta terra preta, que é húmus."

Antes de se transpor a tal barreira, ainda há pequenas galinhas brancas, com penas que passariam por pêlo e que cobrem até as suas patas escuras, tão escuras quanto as cabeças. São galinhas sedosas do Japão. Vieram duas de Espanha, as outras nasceram cá. Normalmente fecha as galinhas num espaço para usar a técnica do chicken tractor: "Soltam-se as galinhas num canteiro que se vai cultivar e elas mexem a terra, que fica pronta para cultivar - estas servem para isso." Em permacultura, explica, cada elemento tem de cumprir três funções: a galinha põe ovos, prepara a terra e transforma os restos de cozinha em fertilizante.

Uma pedra cria um microclima

Para lá do muro há um pátio rodeado de terra, plantas e animais, a "floresta comestível". Tudo cresce por todo o lado, até em vasos feitos de garrafões cortados pendurados em árvores. Vida também em todo o lado: num bidé pousado no chão - porque "cria um microclima" - ou num pequeno lavatório, até numa minúscula caixinha de plástico onde já nasceram larvas de mosquitos, que serpenteiam freneticamente no mundinho que é a sua caixa.

Hélder aponta para um conjunto de vasos em círculo. "Por exemplo, isto aqui também cria um microclima." "Até uma pedra posta num jardim cria um microclima: há lagartos que vivem lá por baixo, insectos e a própria pedra dá sais minerais à terra." Mas nunca ninguém se lembra disso pois não? "Pois, por isso é que se inventaram os herbicidas. As pessoas têm uma forma de pensar que é compactada nesse formato: as coisas têm de encaixar todas muito bem e se estão fora da medida certa são postas de lado."

Nada se consegue encontrar neste espaço tão pequeno e com tanta diversidade - de plantas, de animais, de tudo. "Os jardins dos permacultores parecem sempre uma confusão, mas são uma teia, as coisas estão todas ligadas", diz em jeito de justificação. Tudo serve para alguma coisa. Nada deve ser desperdiçado. "A síndrome do permacultor urbano", explica Hélder, "é perguntar-se constantemente que utilidade pode ter um objecto que não está a ser usado."

No quintal-"laboratório" há um espelho encostado a um muro que serviu para experiências com as galinhas. Um tambor de máquina de lavar que se transformou em minhocário. Há uma obsessão por minhocas? "As minhocas são as melhores amigas do permacultor. Tudo o que comemos vem da terra que as minhocas trabalharam." Hélder não gosta da palavra "lixo", porque "o lixo é um recurso fora do comum, assim como o petróleo é um recurso". Também não gosta da palavra "desperdício", nem de falar em "pragas": "Tudo tem a sua função em determinado momento."

Os candeeiros da sua "floresta" são solares. A permacultura não é, sustenta, apenas uma forma de agricultura. "A melhor maneira de a explicar", diz, "é através do armário. A agricultura é só um cabide, assim como as energias alternativas são um cabide, a construção com materiais naturais é outro cabide e a sustentabilidade social é outro. Para todos os cabides precisamos de um armário e esse armário chama-se "permacultura"".

Ouvem-se pássaros, sempre pássaros. Até papagaios verdes cá vêm dar. "Há um movimento migratório desde o Marquês de Pombal." Acha que são papagaios que soltaram na altura da gripe das aves. "Ai, estou mesmo a despedir-me", suspira Hélder Valente, prestes a mudar de casa e de cidade. Esteve aqui dois anos. Primeiro fez experiências com plantas, depois juntou-lhes animais - o coelho angorá comeu "muita coisa". Agora está em mudanças novamente. Aos 31 anos, deixa a Toca do Rebento, onde tentou ter "a maior biodiversidade possível" e teve "400 espécies de plantas, desde musgo até às árvores grandes", por uma quinta. Vai para Lagos para participar na criação do Instituto Português de Permacultura no Vale da Lama. Percorreu 15 países a visitar projectos e tirou dois cursos de design de permacultura que lhe permitem dar formação.

"A preocupação de um permacultor é deixar sempre a terra melhor do que a encontrou." Hélder acha que o fez. "Costumamos dizer que a maior revolução que uma pessoa pode fazer é cultivar a sua própria comida" - uma revolução disfarçada de jardinagem.C.S.

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