O último tecelão de MaçainhasLobos da Montanha I

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Manuel Gonçalves, 78 anos, com o seu tear na fábrica de cobertores paulo ricca

Há quem diga que os lobos estão extintos na serra da Estrela, o que não é totalmente verdade. Encontrámos alguns sobreviventes dessa espécie selvagem, rija e teimosa. Manuel Gonçalves, o último tecelão de cobertores de papa, é um desses seres cujo estilo de vida morrerá com eles. Esta é a primeira de uma série de cinco reportagens sobre os Lobos da Montanha. Por Paulo Moura

É um edifício velho à beira da estrada em Maçainhas, uma aldeia a uns oito quilómetros da Guarda. "Artur Freire. Fábrica de cobertores" está escrito por cima o portão. Ao contrário da fábrica em frente, esta ainda funciona, graças à perseverança de José Pires Freire, filho de Artur, já desaparecido.

Numa das divisões há vários teares mecânicos, operados por duas trabalhadoras. Noutra está, sozinho, o tear manual. É uma geringonça enorme e assustadora, embora de grande beleza. Um insecto gigante, uma espécie de animal pré-histórico de pêlo cor de madeira escura no dorso e branco de neve no peito.

José Freire mostra orgulhoso as componentes da máquina feita de troncos e cordas. Cada peça tem a sua função e o seu nome. O fio de lã churra está enrolado no órgão. Chegou em meadas, de onde foi bobinada nas canelas, por uma mulher caneleira. Mas quem a enrolou em teia no órgão foi o tecelão, que tem de ser um homem. É ele que, de pé, nádegas assentes no peideiro, movimenta para um lado e para o outro o moço, que está agarrado à choupa, e que dá pancada na lançadeira. A liceira, fixa ao trombolho, divide os fios e tem presa a ela o balancé. Os fios são introduzidos nas puas do pente, que por sua vez se introduz na queixa. Por baixo, no rodete, vai-se enrolando o tapete já feito. Que porém anda não está pronto. Daqui segue para o pisão, uma máquina constituída por duas botifarras de gigante, onde é lavado com água e pisoado, para feltrar e ganhar corpo, e depois para a percha (ou carda), que lhe puxa o pêlo. Por fim, é colocado na râmula (ou râmbula), preso em cima e em baixo para esticar com a estronca, a secar ao sol.

É um processo muito complicado, uma arte. Diz-se que começou nos tempos de D. Sancho II. Nos princípios do século XX havia uns dez teares, que chegaram a ser mais de 30 nos anos 40, só em Maçainhas. Toda a gente da aldeia fazia cobertores de papa. Hoje ninguém é capaz de confeccionar estas mantas densas, felpudas e quentes, tecidas com a lã comprida e grossa das ovelhas churras da região de Idanha.

As fábricas fecharam, os teares foram desmontados, os tecelões extinguiram-se. É uma arte demasiado complexa e já ninguém a domina. Os velhos artesãos morreram e os jovens não querem aprender. Hoje as pessoas preferem edredons, ou cobertores industriais feitos em série, mais leves e de maiores dimensões. Uma manta de papa pesa três quilos e mede 1m70cm de largura.

No entanto, na fábrica de José Freire há vários cobertores armazenados, junto ao grande tear. Uns brancos, outros barrentos, conforme são feitos com lã das cores naturais de ovelhas brancas ou castanhas, e outros com barras coloridas - as mantas lobeiras.

Não é fácil encontrar Manuel Gonçalves (conhecido como o Cordoeiro por causa da profissão do seu pai, já falecido). Não está no Centro de Dia dos Trintas, nem em sua casa dos Meios, nem em nenhum dos cafés das duas aldeias contíguas. Não pode ter ido longe, com este frio e os seus 78 anos.

A sua rotina é simples: vive nos Meios, mas passa a vida nos Trintas, com outros idosos. Dorme em casa, levanta-se cedo, porque a carrinha do Centro de Dia dos Trintas vai buscá-lo, para o vir devolver aos Meios depois do jantar. Mas hoje é domingo. Se não está nos cafés, só pode ter ido para casa. Os netos procuram-no por todo o lado, mas nada. Começa a ser um mistério. Só à terceira tentativa de lhe ir bater à porta com força, ele vem abrir. Lá aparece o Manuel Cordoeiro, saltitante, olhos claros de garoto. Estava a ver um filme pornográfico. O quarto só tem espaço para uma bandeira do Benfica, na parede atrás da cama, e, na da frente, um poster de Cristo e a televisão onde dois negros nus com pinturas vudu se esfalfam em cima de uma loira ruidosa.

"Isto é um dos meus passatempos, desde que deixei de beber, há 30 anos", explica Manuel. Outro é pintar quadros que seduzem as empregadas do Centro de Dia. Mas uma vez por ano, no Verão, dedica-se à sua verdadeira especialidade: tecer cobertores de papa.

José Freire vai buscá-lo de carro aos Meios, ou ao Centro de Dia dos Trintas, e senta-o no peideiro do tear, na sua fábrica de Maçainhas. Ele fica ali a fazer cobertores, das oito às cinco. Depois vai todos os dias, na "carreira". Em dois meses, produz as mantas que se venderão durante o ano.

Em toda a região da serra, Manuel Gonçalves é o último tecelão de cobertores de papa. Mais ninguém sabe trabalhar com o tear manual. Se sabe, não quer. O facto é que, quando Manuel desaparecer, não haverá mais quem faça as mantas brancas, barrentas ou lobeiras. E também nunca ninguém as fez como ele. Pelo menos disso se gaba o próprio. E se não é verdade que o venham provar.

O primeiro amor

Começou aos oito anos, num tear junto ao Mondego. Aos 12 foi para a fábrica de Maçainhas, a que fica em frente à de Freire e que já fechou. Foi um tecelão mais velho, de 14 anos, que o ensinou.

Era uma fábrica grande, com 14 teares, e Manuel depressa ganhou fama de bom tecelão. Mas o destino na serra era ser pobre, e ele, aos 18 anos, partiu para a região de Lisboa. Com a ajuda de um amigo, arranjou trabalho como aprendiz de ferreiro na Fundição de Oeiras.

Trabalhava das oito às cinco, vivia num quarto com varanda. Foi aí que conheceu a sua primeira namorada. Talvez a história não pareça muito romântica, mas Manuel era um rapaz da serra que nada sabia do amor. Em frente à varanda havia uma loja de roupa que pertencia a uma mulher muito vistosa. Manuel nunca lhe tinha falado, mas um dia, estava ele a lanchar, ela chama-o de lá de baixo. "Ó Manel!" E fez, com a mão, um gesto para que ele descesse.

"Ficámos ali um bocado a conversar", conta Manuel, "e então ela pergunta-me se quero ir ajudá-la a levar duas malas a Santo Amaro de Oeiras." Entraram no comboio, e só se apearam no Cais do Sodré. Foram a um bar que tinha pensão por cima. Beberam quatro imperiais cada um. Ela a pagar.

Manuel já estava zonzo, quando ela o puxou por um braço. "Vamos para o quarto." Ele obedeceu. Foi a sua primeira vez. Para ela não, porque, como constatou o jovem, "já não tinha os três vinténs". Viveram juntos nove meses, em casa dela. Todas as manhãs, como um casal, ele ia para fundição, ela para a loja.

Um dia, por pena ou dor de cotovelo, um polícia avisou-o: "Ó Manel! Olha que abalas tu e entra outro." O tecelão de Maçainhas não quis ouvir mais. Horas depois, apanhava o primeiro comboio para a serra. Voltou à fábrica de cobertores de papa. A desilusão foi tremenda e ele só queria voltar a ser quem era. Aplicou-se de tal forma na arte das mantas, que um colega achou que ele tinha futuro e seria um bom partido para a irmã. Convidou-o para jantar em sua casa, nos Meios, para que conhecesse a casadoira de 15 anos.

Ela já tivera um namorado, que não gozava de grande fama na terra. "Era bêbado e ladrão", acusa Manuel, com uma raiva que não esmorece ao fim de meio século, mesmo agora que já morreram os dois - o rival e a irmã do amigo.

A estratégia familiar resultou, Manuel apaixonou-se e casou com ela, dois anos depois, com 27. Mas não sem que na igreja o padre o fizesse sofrer mais uma humilhação. Anunciou à aldeia que ele tinha vivido em pecado em Lisboa, insinuando haver impedimentos ao matrimónio. O padre de Oeiras, industriado pela ofendida do Cais do Sodré, tinha entrado em contacto com o pároco dos Meios.

Mas a cerimónia lá se realizou, Manuel arrendou uma casa nos Meios, mantendo o emprego em Maçainhas. Teve quatro filhos. A mulher foi trabalhar com ele, como caneleira. Tecer é trabalho de homem. Manuel adjudicou à arte a sua imensa energia criativa, tornou-se um especialista, cobiçado por todos os fabricantes.

"Tecer qualquer um tece", diz ele. Mas há coisas reservadas aos mestres. Como por exemplo "afinar o tear", explica, como se falasse de um piano. Ou enrolar o fio no órgão sem que ele fique eriçado. Ou consertar o tear, se alguma peça se partir. "Sou capaz de construir um tear inteiro, se for preciso", diz. "Isto é uma arte. É preciso ter cabeça. E paixão também. Eu tenho amor ao tear desde muito novo." Acrescenta: "Ensino qualquer um que queira aprender. Desde que tenha jeito... Bem, eu consigo ensinar qualquer burro. O problema é que demora mais. Mas com tempo, ia lá."

A candidata

Aos 44 anos, a brilhante carreira de tecelão de Manuel Gonçalves chegou ao fim. A posição de trabalho no tear coloca uma pressão excessiva sobre a zona lombar. "O médico disse que eu tinha a coluna desfeita. Recomendou a reforma antecipada."

Manuel deixou o tear e foi trabalhar para as obras. "Fiz várias casas sozinho, aqui e em várias aldeias. São as mais bonitas da região." Aos 65 anos deixou de ter impedimento legal e voltou aos teares. Agora é uma espécie de preciosidade etnográfica. Desde a morte da mulher, há três anos, os filhos puseram-no no Centro de Dia, em Trintas.

Lá, tal como nos cafés onde vai aos fins-de-semana, diz a toda a gente que quer ensinar a sua arte. Mas não aparecem candidatos. Bem, uma vez surgiu-lhe uma rapariga. Vinha da cidade, era um pouco louca, parecia disposta a tudo. Vivia desde há algum tempo num moinho abandonado à beira do rio. Procurou Manuel Gonçalves, o Cordoeiro. Disse-lhe que queria aprender a tecer. Pretendia dar continuidade à sua arte. Manuel recusou, por se tratar de uma mulher. Que lhe restaria se abdicasse assim do seu segredo, o seu instrumento de sedução? "Isto é uma arte de homens", explicou, com pena.

Amanhã: O bombeiro esquiador

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