"A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar"Entrevista Francolino Gonçalves

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Francolino Gonçalves vive em Israel há 50 anos DR

É fascinante mergulhar nos textos antigos, escritos em hebraico, aramaico, grego, à procura das origens históricas do maior bestseller de sempre: a Bíblia. É esse o trabalho de toda uma vida deste dominicano português. Por Ana Gerschenfeld, em Jerusalém

Francolino Gonçalves nasceu em 1943 em Corujas, Trás-os-Montes, e está há 50 anos em Israel. Vive, trabalha e ensina na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, a uns passos da Porta de Jaffa, onde as imponentes muralhas de velha cidade se abrem para o bairro muçulmano. Recebe-nos, nesta manhã de finais de Novembro ainda cálida e ensolarada, no refeitório daquela instituição religiosa. Serve-nos um chá e começa a falar. Como quem pensa em voz alta, vai desenrolando o seu percurso de historiador da Bíblia - e, principalmente, dos Livros dos Profetas.

Para ele, o Antigo Testamento é uma biblioteca no sentido estrito da palavra, que inclui uma enorme diversidade de textos. Seguindo as pistas linguísticas, históricas, teológicas que vai encontrando neste labirinto quase borgiano de significados, de interpretações e reinterpretações, de leituras e de releituras desses textos, cujos originais nunca ninguém viu, tenta desvendar como eles foram transmitidos ao longo dos séculos para chegarem até nós com a forma que hoje lhes conhecemos.

O que estuda no Antigo Testamento?

Eu estudei sobretudo a literatura profética. Quando aqui cheguei [em 1969], tinha um projecto muito preciso na minha cabeça. Na altura, a chave de leitura que se tinha da Bíblia em geral e do Antigo Testamento em particular, a palavra-chave da interpretação, era a Salvação. Mas o que é a Salvação? O que significa ser salvo? Quando a Bíblia fala de Salvação, é da salvação de quê, em relação a quê? Estas perguntas podem parecer óbvias para a maioria das pessoas, mas são fundamentais.

Portanto, cheguei cá e fui falar com um dos grandes mestres da altura, que morreu uns anos mais tarde - o padre [Roland] de Vaux [pioneiro, nos anos 1950, das escavações em Qumran, onde foram descobertos os célebres Manuscritos do Mar Morto, bem como do estudo desses manuscritos]. E ele disse-me: "O teu projecto é perfeito, mas tens de começar pelos fundamentos. No primeiro ano, vais estudar o vocabulário da Salvação."

Escolhi então dois grupos lexicais hebraicos e fui percorrer todos os seus empregos no Antigo Testamento, para ver onde é que aparecem e em que contexto, a que outros grupos lexicais estão associados, a que grupos semânticos - e o que é que isso significa. Passei um ano à volta disso.

Quais eram esses termos?

Um é yasha, que significa literalmente salvar, radical donde vêm nomes como Josué, Jesus. O outro é o radical natsal, sobretudo na sua conjugação causativa, em que significa "tirar da mão", "arrancar", "arrebatar". Arrebatar de um perigo, tirar de um perigo, libertar, salvar.

Apercebi-me então de que havia um grupo de textos onde existia uma concentração excepcional desse vocabulário: o segundo Livro de Reis, capítulos 18 a 20 (o mesmo texto também se encontra no Livro de Isaías, capítulos 36 a 39, e nas Crónicas, capítulo 32).

Estudei esses textos de maneira um bocado superficial, porque não era esse o meu objectivo. Mas quando terminei esse trabalho, fui estudar os textos onde esse vocabulário surgia. Ora, acontece que esses textos são relatos das relações e dos contactos entre Isaías e o rei Ezequias, já no fim do século VIII a.C. (entre 705 e 701), no contexto da invasão pelo rei assírio Senaquerib, que cercou e ameaçou Jerusalém. E cá estava eu, atirado para uma pesquisa que não podia ter imaginado. Já não estava a estudar nada da Salvação, mas uma questão de relações entre o império assírio e o reino de Judah. Passei assim uns anos e isso deu a minha tese de doutoramento. Já estava noutro mundo, completamente diferente! [ri-se] Entra-se por uma porta e depois não sabemos muito bem para onde vamos.

E o seu projecto inicial?

Só há uns 15 anos é que tive a possibilidade de voltar à minha ideia inicial, mas por outro caminho. Já não ando à procura da Salvação, mas apercebi-me de que os textos que falam da Salvação - e que as pessoas interpretavam nessa categoria -, são de facto um sistema religioso em si. Mas esse não é o único sistema religioso que existe no Antigo Testamento: há um outro, que não fala de História, mas do mito da criação. E que é cósmico.

São duas histórias lado a lado?

São duas explicações do mundo, duas grandes preocupações que as pessoas tinham, dois grandes horizontes de explicação. Um tem um horizonte cósmico - a criação de toda a humanidade. Preocupa-se com a felicidade do indivíduo, da pessoa, e é universalista, na medida em que se dirige a todos os indivíduos. O outro, o tal que fala de história, fala da história de um grupo humano e do seu Deus, de Israel e do seu Deus.

Claro que acabaram por ligar-se e um entrou no outro - o cósmico serve de quadro para o outro. Daí a impressão que temos hoje, quando lemos o Antigo Testamento: começa pelo Cosmos, pela Criação, capítulo primeiro. Chegamos ao capítulo 11, 12 e estreita-se - Abraão. Ainda é um bocadinho largo, mas ainda se estreita mais: Israel [ri-se muito]. Vai afunilando, afunilando.

E de uma perspectiva cristã, chega o Novo Testamento e volta a alargar. Ora isso é uma construção! É uma construção teológica que reúne dois sistemas religiosos.

A junção dessas duas explicações foi feita quando?

Já estava feita no século III antes da nossa era. E há muitos textos onde se vê, claramente, como foi feita. A visão cósmica era mais generalizada, era mais fundamental, fazia parte de uma visão próximo-oriental do mundo. Era comum e encontra-se em todos os povos semitas de então. A outra visão é mais particular, obviamente, uma vez que diz respeito a um grupo - e as suas primeiras manifestações datáveis, a meu ver, encontram-se em Oseias e são do século VIII a.C.

Portanto, é possível datar os textos da Bíblia.

É possível datar com alguma certeza uma boa parte dos escritos. Outros não, eles escapam a qualquer tentativa de datação, são textos muito desligados de qualquer referência histórica, têm um conteúdo mais ou menos universal. Por exemplo, em certos salmos, quando uma pessoa se queixa de que sofre, poderia ser qualquer ser humano. Se não há referência a qualquer coisa de exterior que possa ajudar, é difícil de datar. Aí, estamos entregues a critérios linguísticos: o vocabulário que é usado, a sintaxe. Há critérios objectivos, mas não são absolutos.

Mas é complicado, porque só temos textos que foram sendo relidos e relidos e relidos e relidos. E contrariamente ao que fazemos hoje - em que distinguimos perfeitamente o texto e o comentário -, na altura o comentário entrava no texto e enriquecia-o, alargava-o, engordava-o. Fazia-se um novo texto, que por sua vez voltava a ser objecto de comentário, que por sua vez entrava no texto. O texto foi sempre vivo até ao dia em que foi canonizado e ficou congelado.

Quais são os textos mais antigos?

Contrariamente ao que as pessoas podem pensar, o que está no início da Bíblia não é necessariamente mais antigo. Para mim, pelo menos alguns Provérbios são dos textos mais antigos que há na Bíblia. Um texto que está perdido lá no meio de um livro que tem pouco interesse pode ser mais antigo e pode informar-nos muito mais sobre as coisas do ponto de vista histórico do que o relato que é dado [em primeiro lugar].

Hoje em dia, pensa-se que os textos mais antigos que se podem datar com alguma certeza são as partes mais antigas dos Livros Proféticos. Isto é: Amos, Oseias, Isaías, Miqueias, Sofonias. No caso do Livro de Isaías, as partes mais antigas poderão representar menos de cinco por cento do que hoje se encontra no Livro. Portanto, é preciso isolar essas partes.

A sua paixão é tentar fazer isso?

Sim. Tentar descobrir o itinerário desses textos, como é que eles se construíram, como é que eles apareceram, quando, por que razões, em que circunstâncias, respondiam a quê, pretendiam o quê.

Um exemplo em que eu trabalho é o Livro de Jeremias. Temos duas edições do Livro de Jeremias. Uma dessas versões, conhecemo-la hoje essencialmente pelo texto grego, que é uma tradução da Bíblia que foi feita em Alexandria, no século II a.C., para os judeus de língua grega, que era a língua comum de então. A outra edição, mais longa, é o chamado texto masorético, que é o texto hebraico corrente.

A segunda versão, a hebraica, é a mais antiga?

Não. Contrariamente àquilo que se pode pensar, a versão em grego é a edição mais antiga. Isto é, o tradutor desse texto para grego usou uma edição do livro que era mais antiga do que aquela que temos actualmente em hebraico. O texto rabínico actual foi feito seis, sete, oito séculos mais tarde.

E eles são muito diferentes?

São! E por uma razão muito simples: o texto hebraico primitivo - a matriz anterior, comum a ambos - não tinha vogais e o sentido das frases dependia da vocalização que se dava ao texto. Vocalizado de uma maneira, tinha um sentido, de outra, tinha outro.

Ora, há casos onde os tradutores gregos do século III a.C. vocalizaram de uma maneira que faz com que o sentido seja completamente diferente daquele que os rabinos dariam séculos mais tarde.

Pode dar um exemplo?

Há um texto do Livro de Isaías em que temos um par de palavras em hebraico que, segundo a vocalização que se adopta, pode significar "Sol/Lua" (um par perfeitamente coerente) ou "muralha/tijolo". E justamente, enquanto o texto grego optou pela vocalização muralha/tijolo, os rabinos, mais tarde, optaram pela vocalização Sol/Lua.

Por isso, a abordagem dos textos tem de ser feita com muita modéstia e com a consciência de que nem sempre é possível garantir a 100 por cento que o texto só tem um sentido.

Os Manuscritos do Mar Morto [conjunto de rolos de pergaminho, com mais de 2000 anos, descobertos a partir de 1946 em várias grutas perto das ruínas de Qumran, Israel] foram importantes para estas pesquisas?

Foram. Um dos seus grandes contributos foi darem a conhecer melhor o que era o judaísmo entre o século II a.C. e o século I da nossa era, numa fase decisiva tanto para o nascimento do cristianismo como para a formação do judaísmo rabínico, actual. Eram coisas que já se sabia mais ou menos, mas que com os Manuscritos tiveram uma confirmação.

O outro grande contributo foi a renovação do estudo da história do texto do Antigo Testamento. Não propriamente da sua produção, mas da transmissão, já nas etapas finais, de um texto que já está quase acabado mas que ainda está em evolução. Bruscamente, tinham-se descoberto manuscritos que eram mil anos anteriores aos que tínhamos (até aí, os textos hebraicos mais antigos eram do século IX ou X da nossa era). E isso foi extraordinário.

Quando apareceu toda essa diversidade de textos, foi mais fácil tentar ver se havia famílias textuais, onde é que nasceram, quando e como é que os textos modernos que temos actualmente, tanto no hebraico como no grego, se constituíram. E viu-se que isso é muito complexo. É uma tradição extremamente diversificada, onde nunca se pode falar de um só texto nem de texto original. São cópias de cópias de cópias de cópias de cópias e o texto original ninguém sabe onde está, ninguém o viu.

A história da transmissão nas etapas finais tem indícios que nos podem ajudar a extrapolar para saber o que se passou antes. As técnicas são mais ou menos as mesmas e aqui também ajudam a compreender melhor o processo que levou à escrita e à formação desta biblioteca que é o Antigo Testamento. Porque é uma biblioteca, são dezenas de livros, não é só um.

Uma biblioteca?

Sim. Aliás, há uma confusão à volta do termo utilizado pelas civilizações ocidentais, que vem do grego. Em grego, Bíblia é um plural - "os livros". Mas como a terminação "a" é geralmente feminina e singular em latim e nas línguas que dele derivam, passou a pensar-se que aquilo era um livro, e de facto nas versões modernas é apresentado num volume. Só que nunca pretendeu ser um livro, mas um volume que tem dezenas de livros. Diferentes! Portanto, é uma biblioteca no sentido estrito. A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar.

Qumran era o repositório dessa biblioteca?

Essa é mais uma complicação. A hipótese tradicional é que vivia lá uma comunidade religiosa que tinha essa biblioteca. Mas nesse caso, não é muito provável que tivessem 15 ou 20 cópias dalguns livros. Parece muito. Isso leva alguns a suspeitar que Qumran foi de facto um lugar onde comunidades diferentes, que viviam em lugares diferentes e que tinham cada qual o seu Livro, se puseram de acordo, num momento de perigo, devido à invasão romana, com a revolta judaica e a resposta romana, para esconder os seus manuscritos até que o perigo passasse e pudessem recuperá-los. Mas o perigo não passou e a biblioteca ficou. Mas ninguém sabe.

Essas cópias eram diferentes?

Sim. Hoje, com a imprensa, é fácil: fazem-se dez mil, 50 mil, 100 mil cópias de um livro e fica tudo igual. Ali, não. Os livros eram raros e a comunidade que tinha um era uma felizarda. E depois aparecia outro, mas com outra forma. Não havia a uniformidade que temos hoje.

No caso do Livro de Jeremias, é extremamente interessante. Descobriram-se uns cinco ou seis manuscritos do Livro de Jeremias em Qumran e há uns que confirmam o texto que temos actualmente em hebraico - o texto longo. Mas também há manuscritos que confirmam a existência do texto curto, que é o que temos em grego.

Já existiam as duas edições! E não se excluíam uma à outra. Não se deitou fora a mais curta, não, guardou-se. E com certeza que havia uns que só liam uma e outros que só liam a outra. Tivemos assim a confirmação da existência, já naquela altura, de uma edição revista e aumentada - e provavelmente corrigida - e de outra que não tinha sido corrigida.

A mais curta não é uma versão abreviada da outra?

Não, essa a visão tradicional, a explicação segundo a qual o tradutor grego de Jeremias, preguiçoso, terá resumido, abreviado, deixado cair bocados de aqui, bocados de além. Mas não funcionava muito bem, porque o tradutor também mudou a ordem dos textos. O exame dos textos já tinha levado um ou outro especialista a suspeitar que não era assim. Mas como é que se podia dizer que uma tradução era anterior àquilo que se supunha que, pelo facto de estar em hebraico, era o livro original?

Ora, dizer que se está em hebraico é anterior é um preconceito. De acordo, foi escrito nessa língua, mas não foi necessariamente essa versão, essa edição - e o tradutor pode ter utilizado uma versão anterior e não essa.

Vê o que a Bíblia conta como uma lenda?

Há duas leituras. A leitura que eu faço é histórico-crítica e, portanto, tento situar esses textos. E para nós é evidente hoje que o relato dos começos do Livro do Génesis é mítico. E quando dizemos mítico, não estamos a depreciar. O mito é provavelmente das formas mais sublimes que nós temos para expressar certas verdades, certas realidades - sobre a própria humanidade, sobre a relação da humanidade com o Cosmos e tudo isso.

Mas aquilo que parece história, é óbvio que é uma história criada. Pode haver - e há com certeza - certos acontecimentos históricos que estão por detrás, mas que se tornaram lendários e que são apresentados só pelo sentido religioso que têm. É um testemunho de fé e um testemunho de fé é partidário por definição. Portanto, faz parte de um relato que não é necessariamente histórico e que não pretende ser um relato objectivo.

A Igreja Católica já não defende a Bíblia como sendo uma realidade, uma verdade histórica?

Não. Defendeu, defendeu, defendeu. Mas isso passou-lhe [ri-se]. Mas no século XX, defendeu.

Mas há pessoas que ainda hoje interpretam a Bíblia à letra - nomeadamente os criacionistas.

Penso que isso vem de uma espécie de medo perante a razão e de uma preocupação em sacralizar as formas de expressão, que os impede de descobrir o sentido dessas expressões, a verdadeira mensagem que está por detrás. Fixam-se na materialidade do linguístico e do imagético e pensam que isso é canónico, normativo. E isso impede-os de aceder ao verdadeiro sentido dos relatos, à sua verdadeira mensagem. Parece infantil.

Como é o seu dia-a-dia?

Trabalho nesta casa, passo semanas sem ir à rua. Os dias são absolutamente iguais. Houve uma altura em que viajava muito mais, mas agora saio pelo menos duas vezes por ano (vou estar em Portugal em Março-Abril e depois normalmente volto no Verão, em Agosto-Setembro). De resto, estou aqui, passo o dia a trabalhar. Isto também é uma comunidade religiosa e sou religioso, também tenho a minha vida conventual normal. Trabalho e neste semestre vou ter um seminário sobre as imagens proféticas no Livro de Jeremias.

O Livro de Jeremias enxameia de profetas por todo o lado, mas há cinco ou seis imagens de profetas, de tipos de profetas. Eu costumo dizer a brincar que o Livro de Jeremias é o atelier onde se esculpiram ou se pintaram as imagens proféticas que povoam o nosso imaginário ocidental.

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