Torne-se perito

Portugal 1983|2010O país mudou muito, mas nem sempre para melhor

Tem o país hoje melhores condições para vencer a crise do que em 1983? Sim, tem um sector científico desenvolvido, uma população mais qualificada e uma infra-estrutura mais evoluída. Não, porque não há a expectativa da adesão à CEE, as elites políticas são mais fracas e subsiste ainda o fosso entre a vanguarda das cidades e os arcaísmos dos subúrbios ou do país rural

aPortugal, 1983. Quando os enviados do Fundo Monetário Internacional largaram a Portela para planear a ajuda financeira ao país, não puderam viajar de auto-estrada. Nas ruas de Lisboa ou no vale do Ave puderam ainda ver sinais de arcaísmo na sujidade e nos buracos do asfalto, no perfil da economia, na qualidade dos serviços públicos, na inexistência de uma elite suficientemente ampla para situar Portugal no eixo do modelo europeu. Mas houve um consenso político entre os principais partidos para atacar os problemas; houve a possibilidade de desvalorizar a moeda; e, lembra João Fernandes, director artístico do Museu de Serralves, "havia a enorme expectativa de podermos entrar na CEE".

Hoje, passados 27 anos, tudo mudou. Nos indicadores que medem uma sociedade e uma economia moderna, sem dúvida para melhor. "Na época haveria aí uns 2500 doutorados, hoje há 20 mil", aponta Marçal Grilo, ex-ministro da Educação e administrador da Fundação Gulbenkian. "No mundo da ciência e ensino superior avançámos mais depressa do que os nossos concorrentes. É indiscutível", acrescenta Sobrinho Simões, presidente de um instituto de investigação que é uma referência mundial no domínio do cancro do estômago; há empresas de ponta que fornecem a NASA; sectores industriais como o calçado que na época competiam com as exportações do Terceiro Mundo hoje disputam a liderança aos italianos; o país construiu uma infra-estrutura que em muitos casos está ao nível da ponta europeia.

Tem Portugal hoje melhores condições para vencer a crise, ou os avanços obtidos e os problemas acumulados em três décadas tornam os desafios uma miragem inalcançável? "As circunstâncias actuais são muito diferentes das de 1983, o que não quer dizer que sejam mais favoráveis", adverte Filipe Ribeiro de Meneses, historiador, investigador, professor na Universidade Nacional da Irlanda e autor da imponente biografia de Salazar que foi este ano editada em Portugal. "Do ponto de vista interno, temos mais auto-estradas, temos mais qualificação das pessoas. Mas os outros também andaram e, se formos por aí, já não temos tantas razões para estarmos contentes", disse Daniel Bessa, economista e presidente da Cotec, uma associação que promove a inovação empresarial, numa entrevista recente ao PÚBLICO. Rui Cardoso Martins, jornalista e escritor que este ano venceu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, desdramatiza: "Não creio que a situação venha a ser tão brutal que a sociedade portuguesa não possa aguentar, sem revoluções ou sangue, os anos de crise que aí vêm."

Gestão da "desesperança"

Primeira adversidade, a crise de confiança. A gestão da "desesperança", como lhe chama Marçal Grilo, é uma das equações básicas que o país terá de solucionar nos próximos anos. "O momento é mais decepcionante do que em 1983", diz João Fernandes. "É um refluxo de todas as expectativas das últimas décadas" que deixa "feridas abertas", acrescenta. Marçal Grilo concorda: "O país está excessivamente deprimido e tenho até um amigo brasileiro que diz que era preciso pôr Prozac na água canalizada." Permitir que este "sentimento de desesperança" se perpetue "é o pior que nos pode acontecer", adverte Marçal Grilo. Mas como evitá-lo?

Marçal Grilo fala na urgência em "definir um caminho, um projecto" que aponte saídas, mas está pessimista em relação às capacidades da liderança político-partidária actual para os conseguir. "Os líderes actuais são mais fracos do que os de 1983, que tinham mais sentido de Estado e outra preparação para responder aos problemas", constata. A inexistência de um "caminho" pode comprometer as "energias e reservas" que o país ainda conserva para responder à crise. Uma vez mais, a fé principal é depositada na ciência, "a principal história de sucesso de Portugal nos últimos 25 anos", na avaliação de Sobrinho Simões.

O velho paradoxo

Há nesta devoção uma vulnerabilidade crucial. "Não conseguimos reflectir na sociedade o desenvolvimento científico que conquistámos. Porquê não sei", diz Sobrinho Simões. "Não somos capazes de transformar conhecimento adquirido em patentes que consigam viabilizá-lo comercialmente", concorda Marçal Grilo. Aqui como em muitos outros sectores, o velho paradoxo de Portugal, que parece uma locomotiva de alta velocidade a arrastar carruagens do século XIX.

Com indicadores sociais, culturais, científicos e educativos muito mais desenvolvidos, o país pode ainda assim esperar que o choque da crise actual liberte energias escondidas. Hoje há quase duas vezes mais desempregados do que em 1983, mas há também o dobro de portugueses com curso superior (um milhão de pessoas em 2009), e os gastos em investigação e desenvolvimento estão 87 vezes acima dos de 1983. Mas por muito que as competências e qualificação colectiva sejam incomparáveis, "a única forma de tornar o país mais competitivo e restabelecer o equilíbrio financeiro é cortar a despesa do Estado", diz Filipe Ribeiro de Meneses.

Em paralelo com esta exigência, há muito mais a fazer. Uma, nas palavras de Marçal Grilo: "Exigir aos políticos que nos expliquem por que gastam tanto tempo em questões acessórias." Outra, nas de João Fernandes: "Temos de ser mais exigentes com a qualidade da comunidade que estamos a construir." Ainda outra, acrescentada pelo director artístico de Serralves: "Estamos na hora de tirar lições dos estádios, dos exageros do betão, que afastou os portugueses das suas possibilidades." "[E como nem tudo depende de nós], parece-me a mim que os problemas da União (e estamos perante a mais importante crise na história da União Europeia) precisam de uma solução colectiva, não da imolação dos países-membros mais vulneráveis", observa Filipe Ribeiro de Meneses.

Mudar de vida

Incapazes de prever o futuro, ainda na ressaca da descoberta que o estatuto de cidadãos da Europa desenvolvida foi uma deliciosa ficção, os discursos sobre a crise esforçam-se por evitar o pessimismo, sem nunca correr o risco de serem optimistas. "Temos de mudar de vida", dizia há poucas semanas o banqueiro Artur Santos Silva. Mas será que queremos? "Acho que estamos mais extremados entre os que querem a vidinha calma, a ganhar barriga e os que arriscam uma vida nova. Espero que os últimos ganhem", diz Rui Cardoso Martins. E acrescenta: "No fundo, estou como toda a gente, não se sabe o que isto vai dar. Mas Portugal não morre. Uma bomba atómica é que acaba com tudo, e mesmo assim ficam lá as baratas."

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