Um vinho que é um elogio à casa Ramos Pinto

Se fosse feito um estudo sobre o mérito vitivinícola na região do Douro, a firma Ramos Pinto apareceria certamente no lugar cimeiro. A empresa criada por Adriano Ramos Pinto em 1880 e adquirida em 1990 pelo grupo familiar Roederer - que produz uma das mais conceituadas marcas de champanhe, o Roederer Cristal - foi pioneira em muitas coisas, desde logo pela visionária decisão de comprar terra para poder ter as suas próprias vinhas.

O primeiro vinho do Porto LBV (Late Botled Vintage) registado no Instituto dos Vinhos do Douro e Porto é da casa Ramos Pinto e data de 1927. Na década de 80 do século passado, António Ramos Rosas (então um dos herdeiros e administradores da firma) e o seu sobrinho João Nicolau de Almeida (actual administrador executivo) levaram a cabo um processo de selecção das melhores castas tintas do Douro e, de entre as 70 variedades estudadas, escolherem as cinco que julgavam mais adequadas para a produção de vinho do Porto e de vinho de mesa: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinto Cão, Tinta Roriz e Barroca. Ainda hoje são as cinco castas recomendadas para a produção de vinho do Porto e a selecção serviu de base ao lançamento, em 1982, do Programa de Desenvolvimento Regional Integrado de Trás-os-Montes e Alto Douro, apoiado pelo Banco Mundial, e que permitiu a plantação de 2500 hectares de vinha mecanizada.

O novo Douro, o Douro dos patamares onde os tractores passaram a ocupar o lugar dos burros e do trabalho humano forçado, começava aí. Mas o modelo tinha graves impactes ambientais e a Ramos Pinto voltou a inovar, apostando na plantação de vinha ao alto, paralela às curvas de nível, sistema que dispensa a abertura de patamares, reduz o uso de produtos químicos e aumenta o aproveitamento do terreno. Foi assim, desenhada a régua e esquadro, que nasceu a Quinta de Ervamoira, no vale do Côa, ainda hoje a propriedade modelo da região.

A quinta, com quase meio milhão de videiras, tem funcionado como uma espécie de grande laboratório no Douro, acolhendo estudos pioneiros sobre os melhores porta-enxertos (videiras para enxertar) e enxertos-prontos (videiras já enxertadas) para a região e sobre a irrigação da vinha. O último grande estudo lançado pela Ramos Pinto, ainda em curso, pretende determinar o tipo de madeira que melhor se adequa ao envelhecimento dos vários vinhos do Douro.

Como se vê, em 130 anos, a Ramos Pinto já deixou um legado imenso ao Douro e ao país. Mas, neste tempo de crise, o que merece ainda mais louvor é a forma como a empresa lida com os seus colaboradores e com a lavoura da região. Todos os funcionários, desde o simples cavador ao principal executivo, têm direito a uma parte dos lucros e as uvas adquiridas a produtores da região são pagas condignamente e a horas. Nenhum agricultor recebe menos de 250 euros por cada pipa de vinho de mesa (há grandes grupos na região que pagam apenas 75 euros, o que é uma indignidade), as uvas para vinho do Porto são pagas acima dos 1000 euros por pipa e toda a produção é liquidada até ao dia 31 de Janeiro. O vinho do Porto tem que ser pago até ao dia 15 de Janeiro, mas para o vinho de mesa não existe qualquer imposição legal, e a maioria das empresas anda com quase uma vindima de atraso.

Há vinhos do Douro que nascem já manchados, mas os da Ramos Pinto são feitos com ética e este Duas Quintas reserva branco é um deles. Pode-se beber e louvar sem qualquer peso na consciência. Até porque se trata de um vinho belíssimo, que revela bem o grande potencial do Douro também para brancos.

É um lote de Viosinho, Rabigato e Arinto, feito com uvas provenientes da Quinta de Ervamoira (mais quente) e de Bons Ares (mais fresca). O vinho fermentou e estagiou em barricas de carvalho francês sobre as borras finas. O aroma transporta-nos imediatamente para o Douro, evocando a fruta branca (ameixas) e os frutos secos. A ligação ao lugar continua na boca, onde as variações climáticas típicas da região - a calidez do dia e a fresquidão da noite - se reflectem na tosta delicada da madeira, na fruta bem amadurecida, na gordura e na mineralidade e acidez natural do vinho. Parece, tal como a Quinta de Ervamoira, um vinho cartesiano, pelo equilíbrio e elegância que revela. E tem ainda a grande virtude de respeitar a geografia. Um belo branco para a ceia de Natal.

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