Quem habitará o Kremlin em 2012?

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Quem será o Presidente da Rússia em 2012? É uma questão que vem a propósito da cimeira NATO-Rússia em Lisboa e que está em foco na imprensa russa e internacional. Ora, se dá notícia do imparável regresso de Vladimir Putin ao Kremlin, ora se fala numa "feroz luta pelo poder" e na "emancipação política" do presidente Dmitri Medvedev. Se Putin é um herdeiro do KGB, Medvedev é o primeiro líder "pós-soviético". A relação entre eles - divergência, cumplicidade ou complementaridade - intriga o Ocidente.

Se Putin encarnou, entre 2004 e 2008, a crispação das relações entre a Rússia e o Ocidente, Medvedev é o rosto da "modernização especial das alianças" com a Europa e os Estados Unidos. Parece talhado para representar a Rússia na cimeira de hoje.

A cimeira merece uma nota prévia. A Rússia vem a Lisboa numa situação ambivalente. Mais segura de si: as crescentes dificuldades dos EUA e o enfraquecimento da União Europeia abrem-lhe um maior espaço de manobra. E mais tranquila, porque a NATO afastou alguns dos seus fantasmas, como a continuada expansão para a sua fronteira ou a concepção da defesa antimísseis.

Mas vem também mais fraca, após a crise económica e alguns fiascos diplomáticos. A "elite" russa tomou nota de que o seu futuro como potência está ameaçado por uma "petro-economia". Precisa do investimento europeu, para modernizar a economia, e do reforço dos laços com o Ocidente para reequilibrar a relação de forças com o seu outro "parceiro estratégico", a China, cuja ascensão diminui o estatuto de Moscovo e poderá tornar-se amanhã numa ameaça.

Uma política externa pode ser dissociada da política interna. A Rússia tem, no entanto, um sistema político "híbrido" e um modelo económico que tornam difícil essa dissociação.

Quando Medvedev foi eleito, em 2008, depois de ter sido escolhido por Putin, foi por muitos qualificado como "uma marioneta". Seria um "presidente poderoso sem verdadeiro poder". Alguns analistas anotaram, no entanto, que um "poder bicéfalo" poderia trazer surpresas.

O sistema montado por Putin extremou o modelo "czarista" herdado de Boris Ieltsin - numa sociedade política "anárquica", o Kremlin e o Presidente são tentados a assumir poderes extraordinários.

Putin não só mudou o equilíbrio dos clãs e interesses, propulsionando a ascensão dos siloviki - os homens da segurança e militares -, como reforçou a concentração do poder político, económico e simbólico. Tanto o Parlamento como os governos regionais - para não falar na justiça e nos organismos de segurança - foram rigorosamente subordinados. Uma fronteira decisiva foi a submissão do poder económico, ilustrada na prisão e condenação do oligarca Mikhail Khodorkovski.

O sistema combina instituições democráticas (eleições), oligarquia, burocracia e autoritarismo. Putin não exercia um poder pessoal. A "família", um pequeno número de altos dignitários, tomava decisões "por consenso". O Presidente era o "árbitro" supremo e a fonte de legitimidade do regime, graças à sua identificação com o "interesse nacional" sancionada por uma maciça aprovação pública. Era um "czar laico".

A primeira questão que se colocava na sucessão não era saber quem seria o novo Presidente, mas quem herdaria "o poder de arbitragem", anotou na altura a analista russa Maria Lipman.

O herdeiro dessa função terá sido Putin. Mas com limites que põem em causa esse papel. A diarquia implica rivalidade, mesmo quando há desequilíbrio de forças.

Cedo Medvedev se demarcou subtilmente de Putin, tratando de criar uma imagem e uma base de apoio próprias. No início de 2009, perante uma Rússia devastada pela crise e empobrecida pela baixa do preço do petróleo, exprimiu o ponto de vista de grande parte da elite: a necessidade de "modernizar" a Rússia e para isso privilegiar os laços com a Europa e o Ocidente.

"A nova estratégia política externa de Medvedev argumenta que a Rússia tem uma influência limitada como resultado directo da sua falta de competitividade global", resume o analista americano Jeffrey Mankoff. "No mundo de hoje, o poderio económico conta mais do que a força militar."

Domina desde então um duplo discurso, que tem vantagens para o sistema, na medida em que permite falar a fracções opostas da população ou da "elite". Publicamente, ambos fazem questão em mostrar a mais completa sintonia, evitando qualquer risco de ruptura no "sistema".

"Eles podem não ter contenciosos fundamentais, mas divergem claramente no entendimento de noções como modernização, desenvolvimento inovador e no modo como financiar o desenvolvimento ou onde colocar a ênfase", dizem Vladimir Soloviov e Nicolai Zlobin, dois jornalistas que este ano publicaram um livro - Putin-Medvedev. O Que Vem a Seguir? Acrescentam: "É óbvio que também diferem no modo como deveria funcionar o sistema político."

Quanto a 2012, Putin e Medvedev dizem que admitem concorrer, mas não um contra o outro. Um conselheiro de Medvedev diz acreditar que Putin é o favorito, mas espera que ele não se candidate, porque perceberá que é o Presidente quem está em sintonia com o projecto de "modernização". A maioria crê que Putin voltará.

Que pensam os russos? As sondagens do credível Centro Levada são curiosas. A popularidade de Medvedev é quase tão alta como a de Putin. Mas à pergunta de quem detém realmente o poder, a resposta é elucidativa: 13 por cento dizem que é o Presidente, 72 pensam que é Putin. O que mais apreciam em Putin é a restauração da Rússia perante o Ocidente. O que mais lhe criticam é a ausência de combate à corrupção. A grande maioria gostaria que continuassem a governar em conjunto.

Há manifestamente dois "clãs" em disputa a 18 meses da eleição. Em Setembro, Medvedev fez uma demonstração de força ao demitir Iuri Lujkov, o presidente de Moscovo. De facto, a decisão de quem será candidato caberá a uma "cúpula".

Aqui, entramos num mundo de sombras, em que os "kremlinologistas", à imagem dos antigos "sovietologistas", procuram pistas em todos os pequenos indícios. A dificuldade, disse Churchill, é que as disputas políticas no Kremlin são como a luta entre dois bulldogues debaixo de um tapete.

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