O rosto da renovação do judaísmo alemão

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Treiger, de 31 anos, nasceu na Ucrânia, e vive na Alemanha desde 2001 ODD ANDERSEN/

É a primeira mulher rabi a ser consagrada no país desde 1935, e a segunda na História alemã. O acontecimento é visto como um marco no reflorescimento da vida judaica após o Holocausto

Alina Treiger teve grande destaque na imprensa alemã e internacional: a consagração da rabi, de 31 anos, olhos grandes, cabelo louro ondulado, numa sinagoga em Berlim, foi a primeira de uma mulher na Alemanha nos últimos 75 anos. A BBC não hesitou em dizer que "está a ser feita História", e o semanário alemão Die Welt falou de um "pequeno milagre" no país da Shoah.

Treiger vive na Alemanha desde 2001, quando começou a estudar para ser rabi. Descreve-se como "a encarnação de três culturas: judaica, alemã e da antiga União Soviética". Nascida em 1979 na cidade ucraniana de Poltawa, então parte da URSS, cedo percebeu que era diferente dos outros: o pai, judeu, foi proibido de estudar e ficou relegado a fazer apenas trabalho fabril. "Esta experiência tornou-me consciente das minhas raízes judaicas", disse. "E também muito consciente de que tinha algo que os outros não tinham."

Depois do fim da Guerra Fria, Alina fundou um clube de jovens judeus na sua pequena cidade. No entanto, a ortodoxia da comunidade começou a incomodá-la. E decidiu ir para a Alemanha, sem falar uma palavra da língua e apenas com uma mala e alguns contactos. "Quando cheguei, vi que é possível viver uma vida judaica aqui." Aprendeu alemão e hebraico, e durante cinco anos frequentou o Centro Abraham Geiger na Universidade de Potsdam, perto de Berlim. A partir do final deste mês, Alina Treiber vai passar a ser a rabi das comunidades de Oldenburg e da vizinha Delmenhorst, na Baixa Saxónia.

Uma questão que os jornalistas colocaram à nova rabi foi, claro, como é viver no país do Holocausto, em que foram mortos mais de seis milhões de judeus.

"É muito importante fazer o luto pelos mortos", disse Alina Treiber à BBC. "Mas também é importante sabermos avançar para o futuro e não ficarmos cegos por experiências históricas negativas."

"Os judeus na Alemanha devem conseguir desenvolver uma identidade positiva", afirmou, desta vez à emissora Deutsche Welle. "Não apenas algo negativo e ligado à perseguição do Holocausto."

Curiosamente, Treiber sentia mais anti-semitismo na Ucrânia. Na Alemanha, as autoridades levam a sério actos anti-semitas, que são muitas vezes encarados com leveza na Ucrânia, considerou na entrevista à BBC.

Berço do judaísmo liberal

A Alemanha foi o berço do judaísmo liberal ou progressista (o ortodoxo não aceita mulheres rabis). Foi no país que foi consagrada a primeira mulher rabi, Regina Jonas, em 1935 (embora com restrições: não podia liderar cerimónias nas sinagogas, ficando relegada para o ensino religioso).

Regina Jonas manteve-se em Berlim quando outros rabis fugiram ou foram presos, mas em 1942 foi deportada para o campo de concentração de Theresienstadt e, dois anos depois, foi transferida para Auschwitz, morrendo nas câmaras de gás passados dois meses. Tinha 42 anos.

"Admiro a sua coragem, o facto de ela ter vivido numa época muito difícil e de ter lutado por um sonho numa comunidade que tinha muitas dificuldades em aceitar mulheres estudiosas. Agradeço que ela me tenha aberto a porta", disse Treiger.

Jonas fez a primeira tentativa de justificar a existência de mulheres rabis, concluindo, numa tese de 88 páginas, que não havia barreiras teológicas a que uma mulher fosse líder espiritual de uma comunidade. No entanto, o seu papel foi esquecido, nota Elisa Klapheck, autora de um livro sobre Jonas. Este esquecimento deve-se à "necessidade da geração que sobreviveu ao Holocausto fazer um corte emocional com a judiaria alemã", explicou Klapheck ao diário britânico The Guardian.

O centro do judaísmo liberal deslocou-se entretanto após a Shoah para os EUA, onde a primeira mulher rabi aparece em 1972.

Não restaram muitos judeus na Alemanha depois do Holocausto, e os que continuaram pensaram sempre que não tardariam em sair para Israel, comentou o rabi Walter Hommulka, reitor de Potsdam, à BBC. Muitos acabaram por ficar. Após a queda do Muro de Berlim, a Alemanha abriu as portas aos soviéticos, vítimas de forte anti-semitismo, que chegaram aos milha-res: 220 mil, juntando-se aos 30 mil no país (a Alemanha tinha 500 mil a 600 mil judeus antes de 1933).

A comunidade judaica no país cresceu nos últimos anos: segundo o Conselho Central de Judeus da Alemanha, há hoje 110 mil judeus em terras germânicas, quatro vezes mais do que há 20 anos.

A primeira escola rabínica liberal da Europa Ocidental abriu em 1999 em Potsdam, na universidade pública, e as primeiras consagrações de rabis formados na Alemanha depois do Holocausto ocorreram em 2006 (antes eram formados no estrangeiro). O país tem falta de rabis: segundo a Deutsche Welle, cerca de 50 das 110 comunidades do país não têm líder espiritual.

O Presidente alemão, Christian Wulff, presente na consagração de Treiber, quinta-feira, congratulou-se com o acontecimento: "Não só enche a comunidade judaica de orgulho como mostra que a vida judaica - sob todas as formas, da ortodoxa à liberal - voltou a ter raízes fortes" na Alemanha. Um comentário na edição on-line do semanário Die Zeit classificava a consagração de Treiber como "um pequeno milagre". "A vida judaica na Alemanha é pobre", considera o semanário. Mas, "depois de 1945, ninguém pensava que fosse sequer possível que houvesse vida judaica".

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