Natascha regressa à casa dos horrores

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HEINZ-PETER BADER/REUTERS

Teve que dormir com o raptor mas diz que este só queria poder aninhar-se em alguém. Não sente ódio porque o ódio destrói. Natascha conta os 3096 dias na "casa dos horrores"

Era espancada, às vezes a um ritmo de 200 golpes por semana. O raptor gostava de lhe chamar "a minha escrava". Forçava-a a fazer tarefas domésticas vestida só com cuecas. Não, nunca houve abusos sexuais: mais do que sexo, Wolfgang Priklopil queria uns braços para se aconchegar, nem que para isso tivesse que atar os pulsos da sua vítima aos seus com algemas. Natascha Kampusch, a rapariga austríaca que foi raptada aos dez anos e mantida numa cave até aos 18, revelou agora mais pormenores sobre os oito anos que passou no cativeiro, num livro intitulado 3096 Dias. Ao longo de 284 páginas, Natascha, que agora tem 22 anos, satisfaz o apetite pelo grotesco que habita em cada um de nós. Conta que, quando ficou menstruada, por volta dos 12 anos, Wolfgang passou a tratá-la como se ela fosse "uma coisa suja e nojenta" e começou a pontapeá-la nas canelas sempre que se cruzavam no n.º 60 da Heinstrasse, em Strasshof, um subúrbio a nordeste de Viena. Mas sobretudo defende-se daqueles que lhe apontaram a cumplicidade com o raptor. Dos que a apelidaram de arrogante, parecendo desconhecer que a frieza é "o congelador do desespero", como disse um dia a propósito dela o psicólogo Eduardo Sá.

"Ele dizia-me que os meus pais tinham recusado pagar um resgate por mim. Estava sempre a dizer: "Os teus pais não gostam de ti... não te querem de volta... ficaram felizes por se verem livres de ti"", escreve Natascha, num dos muitos extractos que foram sendo publicados nos últimos dias no jornal Daily Mail, apontando a manipulação psicológica como uma das razões por que não tentou fugir mais cedo: "Essas frases eram como ácido. Ele estava, de forma sistemática, a minar a minha crença na família."

Quanto às suspeitas sobre alegados abusos sexuais, Natascha confirma que era forçada a dormir na mesma cama que o raptor. "Quando tinha 14 anos passei a primeira noite no andar de cima da casa. Deitei-me, rígida e com medo, na cama dele e ele deitou-se ao meu lado e prendeu-me os pulsos aos dele com algemas de plástico." Mas não era uma questão de sexo. "O homem que me espancava e que me mantinha presa numa cave tinha outra coisa em mente: simplesmente queria alguém para abraçar." O que, porém, não excluía a violência. Por repetidas vezes Priklopil obrigou-a a rapar o cabelo. Também costumava privá-la de comida. Além disso, Natascha alega que raramente podia vestir-se enquanto trabalhava na casa. "Geralmente, só me deixava usar um boné e cuecas, apesar de, quando começou a deixar-me trabalhar no jardim, me impedir de andar apenas de cuecas."

Depois de dois anos de sovas regulares, Natascha conta que desenvolveu uma "resistência passiva". Começou a espancar-se a ela própria antes que ele o fizesse. "Quando ele me batia na cabeça, ficava nauseada. Às vezes chegava a ficar com mais de 200 golpes no meu corpo em menos de uma semana." Aparentemente, o raptor odiava vê-la chorar. "Se me visse desfeita em soluços, mergulhava a minha cabeça no lava-louça."

Durante o processo, tentou matar-se. Primeiro, tentou estrangular-se com a sua própria roupa. Depois, furou os pulsos com uma agulha. Mais tarde, desencadeou um incêndio na cave, mas "a vontade de viver prevaleceu sempre".

Este livro, na primeira pessoa, é uma tentativa de exorcizar os fantasmas. De se ver livre da sua própria história, como declarou Natascha a um jornal. "Só agora me sinto suficientemente forte para contar a história do meu rapto."

Amar é perdoar?

Os factos encheram milhares de páginas de jornais. Na manhã chuvosa de 2 Março de 1998, Natascha, então com 10 anos de idade, foi sequestrada quando ia para a escola. Wolfgang Priklopil, um técnico de telecomunicações de 44 anos, levou-a para a sua casa e manteve-a enclausurada durante mais de oito anos numa cave sem janelas.

Quando, a 23 de Agosto de 2006, consegue fugir, Natascha não sabia que estava a trocar um cativeiro por... outra espécie de cativeiro. Nos meses que se seguem, torna-se objecto de dissecação psicológica, vítima de paparazzi. A sua fotografia corre o mundo inteiro, médicos vigiam-lhe o sono, psiquiatras lêem-lhe o pensamento e o olhar, diagnosticam-lhe a síndrome de Estocolmo - em que os reféns se afeiçoam aos carrascos.

Ainda hoje, mais de quatro anos depois, o Google apresenta 383 mil resultados para o seu nome, em apenas 0,32 segundos. De resto, o cativeiro dela já tinha alimentado dois livros, um dos quais escrito pela mãe, Brigitta Sirny, com o título Anos Desesperados - A Minha Vida Sem Natascha.

Enquanto outros contavam a sua história - e ao mesmo tempo que surgiam boatos de que a sua mãe estaria envolvida no rapto, supostamente para tentar ocultar abusos sexuais na infância - Natascha desdobrou-se em entrevistas, esforçou-se por aprender a andar de saltos altos, tornou-se apresentadora de um talk-show na televisão. Nunca escondeu a ambivalência dos sentimentos que nutria por Wolfgang e que a fizeram chorar quando soube que ele se atirou para debaixo de um comboio, poucas horas depois de ela ter fugido. Numa entrevista publicada ontem no Daily Mail, explica que nunca se permitiu odiá-lo porque o ódio tê-la-ia destruído. "Quando soube que ele tinha morrido, senti-me livre, mas também me senti de luto (...). E suponho que também me senti um bocado culpada: se eu não tivesse escapado, ele não se teria matado." Quando a jornalista lhe pergunta se ela amava Priklopil, responde: "Penso que o perdão é uma forma de amor."

A sua relação com "a casa dos horrores" também não é a preto e branco. "A primeira vez que voltei à casa (...) lembro-me de ter pensado: "Meu Deus, como é que um ser humano conseguiu viver aqui? Como é que eu sobrevivi? Mas é complicado porque aquele espaço também tinha sido a minha casa. Por mais bizarro que isso soe, há sentimentos e experiências agradáveis ligados à casa."

Por isso insistiu para que a casa lhe fosse atribuída, em jeito de reparação pelos danos sofridos. Um dia, foi apanhada pelos paparazzi a limpar os destroços que haviam sobrado das investidas policiais e, aparentemente, ninguém lhe perdoou a ausência de rejeição clara e absoluta pelo lugar. Ela insiste que ninguém nasce monstro e confessa que, por estes dias, ficar sozinha em casa é a sua última liberdade. Pinta e cultiva cactos. Porquê cactos? "Não precisam de muita água. Gostam da sua independência, conseguem defender-se com os seus espinhos. Gostam do sol mas toleram o frio, basicamente aceitam o tratamento que lhes damos, mas mantêm-se fiéis a si próprios."

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