Uma questão de cidadania

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Os termos em que foi divulgada a sentença do caso Casa Pia são um retrocesso jurídico e civilizacional

1. Na passada sexta-feira ficou a saber-se que os juízes do processo Casa Pia deram como provados três crimes de abuso sexual cometidos por Carlos Cruz, a que correspondeu a aplicação de uma pena de sete anos de prisão efectiva. Idem para os outros arguidos, apenas com diferença de número de crimes e anos de prisão.

O país descansou. Alguns terão festejado pela noite fora. A pedofilia é o mais horrendo dos crimes, em cujo combate se misturam, no mesmo lado da barricada, todos os homens e mulheres, os bons e os maus, os santos e os ladrões. Finalmente, povo, juízes e comunicação social de mãos dadas e por uma causa justa. Do outro lado, derrotados e a caminho da prisão, homens poderosos e perversos. Afinal, Portugal não está tão mal.

2. E se não for assim? E se estes homens - Cruz, Abrantes, Diniz, Ritto e Marçal - são inocentes? E se Carlos Cruz, como sempre tem sustentado, não conhece os outros arguidos, nem as vítimas, nem os supostos locais de abuso? E se a condenação foi feita sem outra prova que não as declarações dos acusadores, as quais se revelam contraditórias, incongruentes, não plausíveis e manifestamente efabulatórias? E se este processo é, afinal, uma terrível fantasia, consciente ou inconsciente, eventualmente perversa, de alguns jovens adolescentes efectivamente abusados por outros que não estes que estão a ser julgados, parte dos quais, aliás, já identificados nos autos e até condenados noutros processos?

Se assim for, isso significa que a vida de Carlos Cruz e de outros homens inocentes foi destruída sem fundamento, sendo eles, então, vítimas da mais vil das perseguições, meros bodes expiatórios de uma culpa de outros que lhes destroçou a família, a carreira, a saúde e a alegria de viver. Se assim for, isso quer dizer que o cerimonial de sexta-feira não é mais do que a adaptação ao século XXI de um grandioso auto-de-fé, daqueles que até ao século XVIII os juízes do Santo Ofício ofereciam ao povo.

3. Eu tenho a convicção íntima de que é este cenário de trevas que está a acontecer. Vivi durante sete anos a realidade deste processo e conheço-o até às entranhas. Tenho acerca deste assunto uma certeza moral, aquele tipo de certeza que todos temos de que, quando vamos a casa da nossa mãe, ela não nos envenenou a sopa.

É em nome dessa convicção, alicerçada na racionalidade do que conheço, que, com Serra Lopes, tenho emprestado a minha voz e a minha energia à luta de Carlos Cruz pela prova da sua inocência, sentindo com isso o enorme privilégio que é ser advogado.

Porém, fora do tribunal, nunca procurei impor esta minha visão a ninguém. Peço a todos que sejam agnósticos, que não condenem sem conhecer, porque o que se quer num país civilizado é que a opinião pública se estruture na base da informação e do conhecimento.

4. É por isso que os termos em que foi divulgada a sentença do processo da Casa Pia são um retrocesso jurídico e civilizacional que não posso calar. Basta dizer que seria impossível com a lei em vigor no Estado Novo, mesmo a que se aplicava nos tribunais plenários. E que essa não é a prática, habitual e consagrada, por mim vivida em 30 anos de advocacia.

Na sexta-feira, o tribunal, após 20 meses de processo deliberativo, com vários adiamentos, comunicou, urbi et orbi, os factos provados, o número de crimes e as penas de prisão. Quanto aos fundamentos da decisão, disse aos arguidos para os irem buscar na quarta-feira seguinte.

Não bastou, como seria exigível, não ter uma cópia da sentença para dar a cada um. Mais do que isso, em manifesta violação da lei, que obriga à leitura de uma súmula da fundamentação, o tribunal formulou um arremedo genérico de considerações e, no que toca às condenações aplicadas a Carlos Cruz, omitiu pura e simplesmente qualquer referência. Carlos Cruz não conhece, pois, as provas e os fundamentos por que foi condenado. O auto-de-fé já teve lugar, mas ele nem pode conhecer os motivos que o ditaram. Advogado de Carlos Cruz no processo Casa Pia

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