Torne-se perito

Polícia trava a tiro o dia de raiva dos pobres de Maputo

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O ministro do Interior, José Pacheco, indignou-se contra os "criminosos" REUTERS

O rastilho que incendiou partes da capital moçambicana foi o aumento dos preços do combustível, da água e também do pão

A cidade de Maputo "acordou tímida, receando uma greve convocada via SMS", escreveu no seu blogue o sociólogo Carlos Serra, citando um jornalista. Eram 5h00. Às 6h30, Camilo de Sousa comprovou isso mesmo, quando guiou do centro até ao aeroporto com a mulher, que tinha voo para Joanesburgo. O pior foi depois, quando já "estava tudo a arder".

As notícias foram-se sucedendo e os incidentes também, como um rastilho que deu a volta por todas as entradas de Maputo, sem chegar à Baixa nem à baía. A meio da manhã ouviam-se tiros em muitas zonas e ninguém sabia se as balas disparadas eram reais ou de borracha. Grupos de pessoas, na maioria jovens, assaltaram e incendiaram armazéns, pilharam lojas, queimaram carros e deitaram abaixo tudo o que podiam. O motivo para a greve é o aumento dos preços, do combustível, da água e, a partir da próxima segunda-feira, também do pão. O mesmo motivo por trás dos protestos de Fevereiro de 2008, em que seis pessoas morreram alvejadas pela polícia.

Desta vez, as contas não estão terminadas - assim como não se sabe se a violência acabou. Passava das 21h00 e ouviam-se disparos. Confirmada estava a morte de seis pessoas, incluindo duas crianças, uma com 11 anos; outras fontes referiam sete e ainda dez. Os feridos e detidos são dezenas.

Para além da Polícia de Intervenção Rápida, foi chamado o Exército. Grande parte da cidade não chegou a abrir e muitas pessoas nem saíram de casa: no centro e na periferia, de onde deixou de ser possível entrar em Maputo a partir de muito cedo.

Não foi o caso de Teresa Correia Lopes, engenheira, que foi trabalhar. Vive junto ao Hotel Polana e levou o filho de nove anos à escola portuguesa, antes de confirmar os "zunzuns de que iria acontecer alguma coisa". Os colegas não chegavam. "Vivem na periferia e não conseguiram sair. Já havia confrontos." Às 11h30 (menos uma hora em Lisboa), estava de volta a casa, com o filho, diante da televisão. A morte de crianças ainda não tinha sido noticiada, mas a portuguesa já chamara a atenção para a presença de muitas nos protestos. "Muitos destes manifestantes são crianças, miúdos pequenos. Isto é terrível!", comentou. "Na maioria são miúdos", afirmou pelo seu lado Paulinho Gentil, moçambicano ligado a organizações que combatem a sida, que não chegou a sair de casa, na zona do Polana Cimento.

À bruta, como prometido

"Baixei o volume para falar consigo, mas estou a ver uma pessoa morta. Baleada. No canal 6", disse Gentil. "A polícia está a agir à bruta, como tinha prometido."

Já Emanuel Gomes da Silva, moçambicano gerente de um supermercado, tentou chegar ao trabalho. "Era impossível. Nada funciona, nem autocarros, nem táxis", disse ao telefone. O supermercado onde trabalha fica na Coop, perto de uma das saídas da cidade, "uma zona quente".

Carlos Serra, autor do blogue Diário de um Sociólogo, também passou a manhã agarrado à televisão, à rádio e ao e-mail. Às 9h28 escreveu: "Creio que a situação agora é grave. A polícia tenta impedir a generalização dos tumultos." Menos de 15 minutos depois: "Na Avenida Acordos de Lusaca, e não obstante os tiros da polícia, cerca de 100 jovens bloquearam a estrada, espalhando lixo e cantando "Um povo unido jamais será vencido"".

Citado pela Lusa, o porta-voz da polícia, Arnaldo Chefo, confirmava que "duas crianças foram mortas em Mafalala". E acrescentava: "A desordem e confusão espalham-se."

O ministro do Interior, José Pacheco, foi à televisão estatal indignar-se contra os "criminosos". Condenando as pilhagens, o porta-voz da Renamo, a principal força da oposição ao Presidente Armando Guebuza, Fernando Mazanga, denunciou um "Governo que não sabe responder às manifestações a não ser com violência".

Apesar da violência, ninguém ouvido pelo PÚBLICO estava surpreendido com os protestos. Cristina Sanches, professora na Escola Internacional, lamentou "o vandalismo, pessoas com fome que assaltam armazéns de quem trabalha" e a "polícia mal treinada e sob ordens de incompetentes".

"Estávamos avisados de que ia acontecer. Por um lado, é um protesto justo naquilo que pretende do Governo, que não toma medidas para estancar o crescimento do custo de vida. É pena que, como sempre, degenere em vandalismo", sublinhou Gentil.

Camilo de Sousa, realizador de cinema, passou toda a manhã no aeroporto. A maioria das pessoas que ali se encontrava foi escoltada pelos militares a partir das 17h00; em sentido contrário, as tripulações da TAP e das Linhas Aéreas de Moçambique chegaram protegidas por soldados e os voos levantaram com horas de atraso.

Caos absoluto

Entretanto, acabou a comida, acabou tudo. "Foi o caos absoluto. Foi terrível. Para mim não, para as pessoas com crianças. Estava tudo cheio. O salão VIP não tinha água. Tive muita pena de não ter uma câmara. Lembrava o Ruanda." Camilo de Sousa saiu do aeroporto às 15h00, depois da mulher, Isabel Noronha, ter seguido viagem para Joanesburgo, onde tem dois filmes a concurso num festival.

"Vim-me embora às 15h00 porque encontrei por lá um grande amigo da Polícia de Intervenção Rápida. Viu-me e disse "queres ir para a cidade?". Viemos os dois. Eu no meu carro, ele no carro dele com os soldados. Até à Praça da OMM viemos em alta velocidade nas duas faixas, saindo de uma e entrando noutra, a desviar-nos do fogo. Estava tudo a arder. Não sabia que era possível atirar postes de cimento para a rua... Postes de iluminação também, de madeira. Não dava para passar. Havia contentores grandes a fechar a rua e muito, muito fogo", descreveu Camilo de Sousa.

"Tenho um carro a diesel e tive medo do fogo. Mas o comandante disse-me: "Estes gajos matam-te se ficas aqui"." Camilo de Sousa descreveu tudo pouco depois de o ter vivido, com calma, a partir de casa. Interrompeu a descrição para sugerir que há "muita bandidagem da região dos Grandes Lagos envolvida nos saques".

E o seu amigo, comandante da Polícia de Intervenção Rápida, a dizer-lhe que "não consegue controlar nada" e que a certa altura os agentes só pensavam "vamos dar um tiro a quem?". "Vir do aeroporto foi um acto de coragem. Eu já estive na guerra", acrescentou. Depois, voltou a citar o comandante: "Pá, chegou a altura em que nós tivemos de matar algumas pessoas. Senão não parava!"

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