Niqab: Um véu entre islão e república

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Ahmad Masood/Reuters
1. A polémica

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1. A polémica

Na próxima semana, a rentrée política francesa promete amalgamar em 48 horas o debate sobre a interdição legal do véu integral islâmico - o niqab -, o fim do Ramadão e o aniversário dos atentados da Al-Qaeda em Nova Iorque. "Não é nada bom", resume M"hammed Henniche, responsável de um conselho muçulmano que reúne trinta mesquitas em Seine-Saint-Denis, na periferia norte de Paris, no coração da França islâmica.

"Chegámos aqui depois de um ano rico em ataques políticos aos muçulmanos franceses", acusa Henniche, contando pelos dedos as várias "ofensivas". "Começou em Junho de 2009, com a abertura da missão parlamentar sobre o véu. Depois foi o debate sobre a identidade nacional, que foi o que se viu. Depois discutiu-se os minaretes por causa do referendo na Suíça. A seguir começaram a falar da poligamia. Agora é a ameaça de retirar a nacionalidade aos de origem estrangeira. Às vezes pensamos: será que fazem de propósito?"

A coincidência incendiária de agenda entre política francesa, calendário islâmico e efeméride terrorista escancara, afinal, toda a complexidade de um debate que vai muito além do véu muçulmano: o lugar da religião num Estado laico, o lugar da mulher no islão, o lugar dos muçulmanos em França, o lugar do islão na Europa. A reboque, e por se tratar de França, surge o mal-estar adicional da Argélia, "uma guerra e uma descolonização que continuam por resolver, com consequências terríveis até hoje", como sintetiza o poeta e ensaísta de origem tunisina Abdelwahab Meddeb.

Cerca de cinco milhões de muçulmanos entre 64 milhões de franceses fazem de França o país com a maior população islâmica da Europa e tornaram o islão na segunda maior religião do país, depois do catolicismo. A polémica sobre a interdição do véu integral feminino, ou niqab, motivou a abertura de uma missão da Assembleia Nacional, que realizou dezenas de audiências, algumas ao rubro e no limite da agressão física entre participantes e deputados.

O relatório da missão, com alterações ao sabor das discussões no seio dos maiores partidos, foi votado em Conselho de Ministros em Maio e aprovado pela Assembleia Nacional em Julho, que ignorou uma derrota de percurso: o Conselho de Estado chumbou o projecto de lei. Catorze meses depois, o processo atinge agora a fase crucial de discussão na câmara alta do parlamento francês. Se for aprovada, a lei de interdição geral do niqab terá provavelmente que enfrentar o Conselho Constitucional e as instâncias de justiça europeia, conforme prometem as organizações de defesa de direitos humanos.

O Presidente da República francês, Nicolas Sarkozy, lançou a discussão sobre a interdição do niqab ao declarar, num discurso em Junho de 2009, que "o véu integral não será bem-vindo em França". O debate é acompanhado de perto em países como a Bélgica, a Espanha, a Itália e a Alemanha, onde interdições totais ou parciais do véu islâmico ao nível federal ou regional foram aprovadas nos últimos meses. A polémica é também seguida a levante - e não apenas pelos integristas. O niqab foi recentemente proibido em universidades do Egipto e da Síria.

Segundo o Ministério do Interior francês, o niqab é usado por "cerca de duas mil mulheres" em França, ou seja, três por cada cem mil habitantes, embora outras fontes citem um número ainda menor, de não mais que 600 mulheres. Noventa por cento dos casos recenseados pelo Ministério do Interior têm menos de 40 anos e um quarto são "novas convertidas". As muçulmanas que cobrem totalmente o rosto vivem, sobretudo, nas grandes cidades e periferias de Paris, Lyon e Marselha, segundo o mesmo estudo oficial.

Qualquer que seja o resultado do debate do niqab - uma lei ou um projecto derrotado no parlamento ou nos tribunais -, a França terá sempre muito mais um acordo mínimo e muito menos uma solução abrangente para uma situação que toca e questiona os fundamentos do "viver em comum" republicano e laico. O título do relatório da missão parlamentar sobre o niqab, "A recusa da República", resume numa ambiguidade semântica o radicalismo com que o país vive a questão. "A República recusa o véu integral e o véu integral é uma recusa da República", explica o deputado André Gerin, um dos intervenientes directos na polémica ouvidos directamente pela Pública em Paris e em Lyon.

2. A cruzada

Provando que a questão atravessa as clivagens partidárias clássicas entre esquerda (na oposição) e a direita republicana (actualmente no poder), foi o deputado comunista André Gerin quem presidiu à Missão de Informação Sobre o Uso do Véu Integral no Território Nacional. Gerin fez sua a "cruzada" - o termo é dele - contra a shariah em solo francês.

André Gerin, cujo lema é "o amor do vermelho no respeito do branco e do azul", fala exaltado da ameaça colocada à república laica francesa pelos "gurus" e pelos "taliban" nos bairros difíceis das grandes cidades, "mas também no meio rural, onde o integrismo e o comunitarismo ganham rapidamente terreno".

No modelo francês, onde igualdade e cidadania são os pilares da sociedade, o "comunitarismo" é o oposto de desejável integração.

"O uso do véu integral muçulmano é a árvore que esconde a floresta", afirma Gerin com preocupação perante o recrudescimento do "comunitarismo". "A shariah, a lei islâmica, existe na prática em certos bairros periféricos (banlieues) de Lyon ou de Paris". O deputado, que é presidente da Câmara de Vénissieux, uma periferia "quente" de Lyon, diz conhecer bem esta situação no seu próprio município.

"O mais grave não é o véu integral. É o conflito cada vez mais frequente nos serviços civis do Estado. Na nova maternidade de Lyon há, em média, cinco situações de ameaça e conflito por semana, provocadas pelos "gurus" que acompanham as mulheres" veladas, diz o deputado e autarca.

André Gerin reclama "um islão republicanamente compatível" e assegura defender "os princípios da laicidade e a interdição do véu integral por razões de ordem pública". O problema vem de longe, em primeiro lugar da Argélia e dos seus dois grandes conflitos armados, o dos anos 50 com a guerra pela independência, e a guerra civil nos anos noventa. As duas guerras radicalizaram duas gerações de magrebinos em França, nota o deputado comunista, que recorda em simultâneo a influência da Guerra do Golfo de 1991 junto dos jovens muçulmanos franceses.

"O essencial dos problemas da França está ligado ao Magrebe e sobretudo à Argélia", diz Gerin. "Não tenho dúvidas de que, nos anos 90, elementos do GIA [Grupo Islâmico Armado, integrista] vieram habitar nos nossos bairros". O deputado fala de uma "indiferença ou cegueira da classe política nos últimos 15 anos".

"Os professores das escolas dos bairros populares [banlieues] foram os primeiros a perceber a mudança porque, de repente, tinham adolescentes de 13 ou 14 anos a contestar as aulas de Biologia, de Ciências Naturais ou de História", recorda Gerin, sublinhando que a radicalização das comunidades muçulmanas em França "acentuou-se depois do 11 de Setembro".

No seu percurso, o autarca de Vénissieux salienta "dois acontecimentos principais" que o obrigaram "a ver as coisas mais de perto". O primeiro caso foi o de dois jovens da sua comuna que "apareceram como contactos da Al-Qaeda no Afeganistão em 2001 e foram parar a Guantánamo". Gerin conhecia pessoalmente o pai e o tio de um deles, ambos emigrantes argelinos, operários na mesma fábrica de automóveis, em França.

O outro caso foi o processo de expulsão para a Argélia, pelo Ministério do Interior francês e a pedido do autarca, de um imã integrista salafista. A missão parlamentar sobre o niqab respondeu a um pedido do deputado, iniciativa que a esquerda, "mesmo os comunistas", não apoiou.

Para André Gerin, "o verdadeiro problema de fundo, estratégico, para a França, é que os "os muçulmanos, devem encontrar condições de dignidade que não têm hoje", recordando que "noventa por cento vivem nos bairros populares, em condições de pauperização graves". Sentem-se "excluídos e os integristas usam este sentimento de pessoas que não têm futuro", afirma o autarca, que espera também dos líderes muçulmanos franceses "atitudes públicas mais corajosas" do que as demonstradas durante as audiências da missão parlamentar sobre o niqab.

"A laicidade é a república. Está resolvida por lei desde 1905. Não há razão para não resolvermos com os muçulmanos o que foi resolvido com os católicos, os protestantes e os judeus", resume André Gerin.

3. O véu

Malek Chebel olha para as suas palmas abertas, com o mesmo gesto de quem olha para as escrituras sagradas: conhece umas e outras de cor. "O Corão é toda a minha vida nos últimos dez anos e conheço o texto como conheço as minhas mãos. Posso dizer que a palavra burqa e a palavra niqab não aparecem em lado nenhum do livro uma única vez."

Chebel, o antropólogo e filósofo argelino que cunhou a expressão Islão das Luzes num dos seus livros mais conhecidos, é o tradutor francês do Corão, tarefa que o obrigou a aprofundar a semântica e a história dos versículos sagrados.

"No Corão há a palavra "véu", hijab, que desapareceu ela própria do dicionário do árabe moderno, e que é uma palavra polissémica", explica Malek Chebel. Hijab designa algo que "pode esconder ou com que podemos esconder-nos. Tem um sentido de protecção. E o "véu" pode ser signo de distinção social, não forçosamente de imposição", acrescentou o tradutor do Corão.

Isso era no século VII, prossegue Chebel, que recorda o apogeu islâmico do al-Andaluz e a época em que poetas como Ibn Hazm podiam ver mulheres e, "mais ainda", escrever sobre o seu espanto, "coisas do género "eu vi uma loura"..."

"Entretanto, o islão regrediu. Estamos hoje num islão regressivo, que faz com que o véu se imponha à mulher, embora não saibamos o que é, porque hijab pode ser uma écharpe, um xaile, uma mantilha, um niqab". Em rigor, niqab designa apenas o tecido ou gaze que a mulher coloca sobre o nariz.

No actual debate sobre a interdição legal do véu, "o que está em causa é, apenas, o lugar do islão em França, na Europa e no mundo", diz Malek Chebel, que abordou o tema em diferentes ocasiões no programa de temas religiosos "Filhos de Abraão" num canal televisivo francês - um talk-show em que os outros dois "filhos" são um grande rabi e um teólogo católico.

"A mulher que põe a burqa não reage em relação ao islão, reage em relação ao lugar do islão na sociedade ocidental ou ao lugar dela na constelação familiar", sublinha Malek Chebel.

"O islão causa medo e posso compreender porquê: é uma religião jovem, em renascimento. O futuro é do islão. O islão é uma religião masculina, em que valores como a força, a guerra, a riqueza, o patriarcado não são postos em causa. Em contraste, o cristianismo é uma religião de compaixão, que no Oriente é uma virtude por excelência feminina", acrescenta Chebel sobre o contexto da polémica.

O véu integral, nota o tradutor do Corão, "diz respeito a apenas 650 mulheres em França, na maior parte convertidas", a quem Malek Chebel atribui "excesso de zelo".

"A intenção de suprimir o véu do espaço público convém-me perfeitamente, mas o método não é correcto. Legislar é má ideia", sublinha este filósofo do islão, exemplificando que "não se legisla para proibir o topless mas legisla-se por causa de 650 mulheres" numa população de 64 milhões de pessoas.

"Não é sério fazer tal lei. É uma lei pontual e isso é muito violento para o islão. A lei deve ser universal e ter vocação de unidade e harmonia", diz Chebel, que defende outro tipo de acções, como "uma campanha de pedagogia e de incitamento junto das mulheres para levantar o véu e explicar que o espaço público francês não lhe permite usar o véu integral".

"A questão é dupla. Será que o islão pede que se proteja a mulher e será que a mulher - quando o islão se torna exíguo, fundamentalista, reaccionário, estreito e ambíguo - deve ser protegida do islão e dela própria?"

Malek Chebel sublinha que "não podemos imaginar a condição feminina isolada: se as mulheres são regressivas, se não têm o seu espaço, é porque os homens também são". A discussão não é religiosa. "É de cidadania."

4. O rosto

Também para o poeta tunisino Abdelwahab Meddeb há um arcaísmo semântico na palavra burqa, que no arábico medieval designava "cobrir integralmente". Meddeb encontrou a palavra num dicionário do século XIV, que condensa os primeiros cinco séculos de lexicografia árabe. Burqa significava o pano que cobre o enorme cubo da Kaaba em Meca. Mais irónico: "É uma palavra provavelmente de origem não semítica, estrangeira, talvez persa. Só surgiu na linguagem contemporânea no uso afegão", nota Meddeb. "Em árabe usa-se niqab".

Abdelwahab Meddeb acrescenta uma leitura metafísica e filosófica à polémica do niqab, sublinhando que o rosto humano, e, de entre todos, o rosto feminino, "é um espelho de deus". Para Meddeb, o véu - burqa ou niqab, "extensões do hijab" - "é um crime que mata a face, barrando o acesso perpétuo ao outro".

"O eclipse da face oculta a luz do rosto, onde se reconhece a epifania divina que inspirou o espírito e o coração do islão", sintetiza Meddeb. O rosto é sobretudo importante na tradição sufi, reconhece o autor tunisino, "mas os sufis trabalham apenas com materiais corânicos e tradicionais. Há versículos corânicos que descrevem a bem-aventurança do dia do julgamento e a descrição insiste marcadamente em rostos radiosos: "rostos radiosos, de homens e de mulheres, plenos de luz".

"Os sufis viam um sinal divino no milagre da face humana, sobretudo quando adornada de beleza feminina", recorda Abdelwahab. "Elevamo-nos assim, de rosto em rosto, do visível ao invisível, do humano ao divino, segundo a palavra profética, a hadith (retomada pela Bíblia) que diz que o homem foi criado à imagem de Deus".

Meddeb recorre a uma passagem do Corão (LV, 26-27): "Tudo é transitório, nada perdura além da face do Teu senhor". Deste modo, "a perenidade da face divina enquanto absoluto reflecte a sua marca sobre o suporte que lhe oferecem todos os rostos humanos".

Abdelwahab Meddeb refere "um versículo muito belo" em que, por um jogo de palavras semelhantes, se contrapõem em "homofonia" a palavra árabe que quer dizer "radioso pleno de luz" e a palavra para dizer "contemplando a Deus". O mesmo fonema "designa a luminosidade do rosto e o facto de esse rosto olhar a Deus. Como se a luz de Deus resplandecesse nos rostos humanos de quem o olha", explica o grande poeta tunisino.

O poeta e místico sufi Ibn Arabi, diz Meddeb, "vai mais longe porque diz que o rosto é o lugar por excelência da teofania. O rosto humano torna-se o espelho onde se reflecte o rosto de Deus. Ibn Arabi diz até que Deus é belo e, por isso, os rostos perfeitos para reflectir o rosto divino são os rostos de maior beleza, que são os das mulheres e os dos efebos".

"Para um muçulmano espiritual como Ibn Arabi, em polémica com os cristãos, é claro que não há monaquismo ou celibato no islão. A relação corpo a corpo entre mulher e homem seria essencialmente vulgar se não existisse a constatação de que é no momento extremo do gozo feminino que aparece a maior epifania divina. Sob todos os pontos de vista, o rosto torna-se o lugar da teofania. É um pouco tântrico, porque o sexo torna-se espiritual", sublinha Abdelwahab Meddeb.

Tal como Malek Chebel, também Abdelwahab Meddeb recua a pensadores como Ibn Arabi e ao al-Andaluz para invocar um mundo muçulmano bem diferente da radicalização política de final do milénio, oferecida hoje como uma suposta alternativa à hegemonia ocidental. Este integrismo esconde no islão "o desconsolo da sua destituição" como cultura de referência - aquilo a que Meddeb chamou, no rescaldo do 11 de Setembro de 2001, A Doença do Islão.

"As coisas tomaram estas proporções devido a uma operação polémica", acusa também o poeta tunisino. "Já não estamos na tradição. Nem sequer na corrente da universidade Al-Azhar, no Cairo, a maior autoridade do mundo islâmico, que tomou posição contra o véu, lembrando que o niqab não é uma obrigação divina, uma farid"a, nem uma disposição cultural, uma ibâda, mas uma ada, ou costume. O mufti do Egipto, Ali Juma, confirmou esta declaração: trata-se de um costume arábico pré-islâmico que o islão está em condições de dissolver".

"Em oposição à cultura ocidental, que é uma cultura de desnudamento, joga-se uma cultura da arquivirtude até às últimas consequências. A cultura do pudor joga-se contra a cultura do despudor", acrescenta o poeta tunisino sobre o choque cultural entre islão e Ocidente.

"Vivemos no meio de uma guerra de imagens, à escala mundial, uma guerra pela conquista de imaginários e dos espíritos, em que as organizações integristas pretendem atingir o poder a todo o custo. Até agora, os integristas falharam, porque não há estados integristas, ou há apenas dois ou três. Mesmo na Arábia Saudita wahhabita, o regime desencadeou uma guerra sem tréguas, militar e policial, contra os bin-ladistas. O problema, segundo Abdelwahab Meddeb, "é que a guerra contra o integrismo é feita com concessões ao integrismo. Não é uma guerra conduzida de maneira radical. O combate é radical do ponto de vista militar e securitário mas não o é do ponto de vista ideológico. De certa forma, o integrismo islâmico consegue ganhar terreno e visibilidade".

"O islão do justo meio é um islão que faz muitas concessões à interpretação integrista e maximalista da tradição islâmica", acusa também Meddeb, que nota, apesar de tudo, que "o debate é interessante e a diversidade dos pontos de vista está prestes a instalar-se de novo entre os doutores do islão".

Debates como os da interdição do niqab em França ou dos minaretes na Suíça ou na Bélgica são momentos em que o islão integrista consegue ganhar terreno ao criar um território político onde se jogam exigências e concessões. Meddeb recorda, a propósito, que "os islamistas mas também os piedosos salafistas são exortados pelo Conselho Europeu da fatwa a agir dentro da legalidade para conseguir, na Europa, parcelas de visibilidade em favor da lei islâmica".

À "doença do islão" corresponde, no caso da República Francesa, um "mal-estar terrível de um país que não tem consciência de que perdeu um combate universal que era seu até aos anos 50". Para Meddeb, "há meio século, qualquer intelectual sofisticado egípcio, turco, hindu, persa, era-o por referência à França. Autores como Sartre e Camus eram de imediato traduzidos em árabe". Hoje, "no meio dos homens de cultura, os homens de quem podemos dizer que estudam, só são francófonos os que têm mais de 60 anos. A cultura inglesa destronou o lugar da França. A cultura francesa já não é atraente".

"A França é um país democrático que tenta gerir pela pluralidade dos pontos de vista o seu racismo fundamental e a sua recusa fundamental da diversidade", acusa Meddeb, que concorda com André Gerin apenas num ponto: "A França não resolveu a questão argelina e há um efeito considerável da guerra da Argélia sobre os jovens argelinos e sobre os franceses. O trabalho de reflexão sobre a Argélia não foi feito em França de imediato, como os americanos fizeram para a guerra do Vietname. Não há até hoje um equivalente francês do Apocalypse Now, de Coppolla, ou das Portas do Inferno, de Cimino."

A herança é tão pesada, segundo Meddeb, porque "a França falhou de uma forma espectacular na Argélia. O país que criou a noção do Estado de direito com Montesquieu, durante todo o século XVIII até à Revolução Francesa, não esteve à altura desse princípio e acabou por violá-lo, embora se recuse a admiti-lo. A França nunca ousou dar à Argélia o mesmo estatuto da Reunião, Martinica e Guadalupe no território nacional e teve por isso que gerir até aos anos 50 nove milhões de cidadãos sem cidadania".

"Essa entorse ao direito paga-se até hoje. O islão é uma velha questão francesa que se tornou numa questão filosófica e jurídica que continua terrivelmente em aberto". Meddeb recorda que, no início da colonização da Argélia, quando "tribos inteiras desceram dos montes às prefeituras para pedirem a nacionalidade francesa, a França entrou em pânico e encontrou uma paródia jurídica. Qual foi? Apresentou a milhares de argelinos a cidadania e o direito positivo como uma opção que lhes retirava o estatuto pessoal de direito muçulmano, que eles não queriam abandonar. Foi a França que cavou um fosso entre islão e cidadania, por solução de facilidade e interesse de apaziguamento". Já Alexis de Tocqueville, nos anos 30 do século XIX, denunciava o facto de a administração francesa "trabalhar com os incompetentes" entre os muçulmanos e com isso "preparando a bomba-relógio do fanatismo islâmico".

Uma nota simbólica "mas que confirma o trauma argelino": 92 e 93, números dos dois departamentos da Grande Paris de maior densidade muçulmana, "ou seja, os interditos da polícia, eram os números dos departamentos de Constantine e de Orão" na Argélia colonial francesa.

"A lei da burqa é uma prenda, uma felicidade absoluta" para os adversários da democracia, diz Abdelwahab Meddeb, que encara a interdição legal do véu com muitas reservas. "Tenho horror à burqa, demonstrei a sua nulidade metafísica, ontológica e jurídica, mas eles jogam bem. É essa a canalhice dos que argumentam a favor da interdição. Acenam com a liberdade de culto, mas se eles tomarem o poder não lhe obedecem. São como os fascistas, pois usam a democracia para anular a democracia. O que fazer? Devemos permanecer na lógica jurídica e democrática."

5. O interdito

O respeito absoluto pelos alicerces da democracia deixou Caroline Fourest, uma das principais vozes femininas na polémica do niqab, no lugar bizarro de feminista em dupla campanha contra o véu integral e contra a sua interdição legal.

"Estamos em França e em democracia, não estamos na Arábia Saudita ou no Irão", resume esta conhecida ensaísta, socióloga e jornalista, fundadora da revista e associação feminista ProChoix. "O integrismo é legal neste país e isso é bom. O integrismo é uma ideia, é um valor, é uma ideologia, e eu não quero que proíbam as ideias das pessoas. A democracia é bastante mais cansativa. A democracia deixa-nos exaustos. É preciso confrontar-nos com as ideias dos outros a todo o tempo e responder argumento por argumento", repete Caroline Fourest.

A fundadora da ProChoix distancia-se, desta forma, da corrente principal das feministas francesas nesta longa polémica, nomeadamente dos apelos dramáticos à interdição do véu integral lançados, ao longo de meses, pela jovem franco-argelina Sihen Habshid, o rosto mais conhecido da organização Nem Putas Nem Submissas.

Caroline Fourest protagoniza também nos meios de comunicação social franceses e no seu blogue, em diversos artigos, uma batalha verbal em que procura desmascarar as ligações do académico suíço Tariq Ramadan à Irmandade Muçulmana [de cujo fundador, o egípcio Hassan al-Banna, é neto]. Para Caroline Fourest, a lógica da interdição legal serve os objectivos de radicalização do islão na Europa que, segundo ela, orienta a acção de homens como Tariq Ramadan, que foi aliás ouvido pela missão parlamentar sobre o niqab.

Caroline Fourest salienta que em países como a Holanda, o Reino Unido e a Bélgica se esperou "demasiado tempo" discutindo o véu islâmico "e os políticos tentam arranjar soluções simples, porque são mais simples de explicar a quem diz respeito".

"No entanto, não estamos aqui para nossa própria satisfação, mas para sermos eficazes. Não podemos renegar os nossos próprios princípios sob pretexto de combater o nosso adversário, respondendo à intolerância com intolerância", defende a socióloga e autora francesa.

Fourest, que defende a necessidade de um "consenso republicano" contra a interdição do véu, espera "que o legislador seja suficientemente inteligente para permitir que este combate continue a fazer-se ao nível das ideias e deixar o espaço necessário para lutar contra esta propaganda integrista".

"Não é por estarmos em combate que nos é interdito pensar", nota Caroline Fourest, conhecida do grande público francês pelos seus documentários televisivos e a sua coluna regular em Le Monde. "Lamento que uma mulher tenha a ideia infeliz de se cobrir totalmente, ou que um homem mande tapar a sua mulher como se faz a um carro ou a um sofá, para se apropriar [dela]", resume Fourest. "O facto de as mulheres usarem o véu com seu consentimento, ou dizendo que o deram, não retira nada à sua violência. Bem pelo contrário. O facto de aceitar e mesmo de defender o direito à humilhação ilustra bem a capacidade de interferência proselitista de uma tal mentalidade sectária".

Caroline Fourest sublinha, no entanto, que "uma lei simbólica contra o véu integral teria o inconveniente de ser particular e comportaria o risco de ser inaplicável. Porquê proibir o véu integral mas não o uso da máscara em período de gripe A? Pela dignidade das mulheres? Mas então, por que não proibir o véu simples? Não é também um atentado à dignidade das mulheres? E se vamos proibir o véu simples na rua, porque não interditar qualquer sinal tendencioso? Evitemos este círculo infernal e procuremos a eficácia". Para a directora da ProChoix, o equilíbrio entre os dois valores em causa - "dignidade das mulheres e segurança" - pode ser encontrado com "regras gerais que regulamentem a obrigação de se identificar".

6. A ficção

A interdição do véu integral "é um caminho exigente, mas um caminho justo", afirmou o Presidente Nicolas Sarkozy a propósito da votação do projecto de lei. O relatório da missão parlamentar sobre o niqab declarou "a recusa da República" ao uso do véu integral e preconizou a sua interdição em todo o espaço público, incluindo hospitais, transportes e serviços como correios, repartições e bancos.

Trata-se de uma proposta "clara, exacta e equilibrada", diz André Gérin. O deputado salienta que a proposta de lei "inclui uma dimensão pedagógica sobre as condições de vida em comum", nomeadamente o prazo de seis meses dado à infractora e o "estágio de cidadania". A proposta prevê também "medidas repressivas em particular contra os gurus que reduzem a sua mulher à escravidão".

O diploma cria um novo tipo de ofensa, o de "instigação à dissimulação do rosto por motivo de género", que corresponde ao acto de impor uma peça como o niqab pela "violência, a ameaça, o abuso de poder ou de autoridade".

A votação na Assembleia Nacional foi precedida de uma outra polémica na imprensa, com a história de uma mulher interpelada pela polícia em Nantes, na costa atlântica, quando conduzia de niqab. As autoridades consideraram o véu integral "um traje impróprio". Tempos antes, uma outra polémica envolveu um presidente da câmara que proibiu a abertura de um estabelecimento de fast-food exclusivamente halal. Um dos folhetins do ano envolveu também outro "tópico" muçulmano recorrente em França, a poligamia, com várias acusações dirigidas pelo ministro do Interior, Brice Hortefeux, contra Liès Hebbadj, detido por "violações agravadas".

"É muito caricatural", comenta M"hammed Henniche sobre a imagem dos muçulmanos franceses. "Em França, o último emprego é sempre para o árabe, mesmo depois do africano. E todos os aspectos práticos do islão são um problema em França. A oração nas ruas é proibida mas quando queremos construir uma mesquita alguém monta um escândalo. Até o sacrifício ritual do carneiro é contestado por organizações que atacam as viaturas onde os animais são transportados para a cerimónia".

"A experiência no terreno mostra que a estigmatização afecta menos os marroquinos, os tunisinos ou os egípcios. O problema é com a Argélia. A França, sobretudo a geração mais velha, ainda não aceitou a descolonização e mantém um rancor que se vira contra os muçulmanos", acrescenta M"hammed Henniche.

Este líder muçulmano nota, porém, que o mês do Ramadão, iniciado este ano a 12 de Agosto, abriu "não diria uma trégua mas um tempo de respeito". Dois exemplos inéditos, para espanto de M"hammed Henniche: a RTL anuncia diariamente a hora de quebrar o jejum, "como qualquer rádio num país muçulmano", e a principal estação, a TF1, "que desde há muito é o centro das campanhas antimuçulmanas em França", passou pela primeira vez um anúncio publicitário a uma marca de carne halal. "Até Brice Hortefeux fez uma declaração conciliatória aos muçulmanos pelo Ramadão", nota Henniche em rodapé. É como se a sociedade francesa recebesse o seu islão com a mesma doçura sazonal e inesperada deste Agosto chuvoso, alívio possível a um jejum que em 2010 cai nos dias mais longos do ano - "são quase dezassete horas entre as cinco da manhã e as nove da noite, um tempo demasiado longo sem beber água se fizer muito calor..."

O mês do jejum contém laylatu"l-qadr, a "noite do destino", em que foi revelado o Corão, e é por isso "melhor do que mil meses", recorda Abdelwahab Meddeb. "O jejum instaura uma partilha entre o tempo santo e o tempo ordinário", resume o poeta tunisino.

Azzedin Gaci, responsável de um conselho de mesquitas conservadoras na região de Lyon, nota que este mês de partilha é este ano - 1431 da Hégira - vivido pelos muçulmanos de França "de uma forma especial". Como ele, milhares de muçulmanos abreviaram as férias no Magrebe para viver em França o mês de jejum. "Para mim, isto testemunha uma vontade muito forte de integração". O fim do Ramadão e o regresso da polémica sobre o niqab coloca de novo o islão francês perante o desafio essencial, diz Gaci: "É preciso abrir um debate franco sobre o que significa ser muçulmano hoje neste país".

"O problema essencial é o medo em França e na Europa de uma desnaturalização do islão, acompanhada por uma instrumentalização política. Quando se vive uma situação de fracasso, quando não se encontram soluções para o desemprego, para a precariedade, para a dureza de vida, para a crise geral, inventam-se manobras de diversão como o terrorismo, o fundamentalismo, o integrismo e a prática do culto muçulmano em geral", acusa Azzedin Gaci.

"Há uma gestão policial, colonial do islão e, enquanto durar este estado de coisas, não se resolverão as tensões. O que me incomoda é que não se fala do essencial, que são os problemas sociais da França, mais relevantes do que a História e a memória", diz também Gaci "enquanto francês responsável de culto muçulmano".

Se o endurecimento galopante do discurso político francês, pela direita, nas últimas semanas, encontrar eco no parlamento, o projecto de interdição do niqab será aprovado em breve e poderá estar em vigência no próximo ano, dizem os analistas. A palavra soberana, porém, pertencerá aos juízes, de quem dependerá quase toda a eficácia e a aplicabilidade da interdição. Vários juristas "recordaram discretamente" à Assembleia Nacional que os deputados "não podem decidir o que lhes apetecer", porque há instâncias judiciais acima dos deputados e que o legislador "está sob vigilância". Um especialista de direito internacional público, Bertrand Mathieu, desmantelou até a legitimação "jurídica" da proibição legal do niqab, ao explicar que "são os poderes e serviços públicos que são submetidos à laicidade e não os indivíduos, o espaço público e o corpo social".

Denys de Béchillon desferiu um golpe jurisprudencial ainda mais drástico, ao afirmar que "a dignidade da pessoa humana não está escrita na Constituição. Foi (apenas) uma dedução do Conselho Constitucional, uma inferência do legislador constituinte de 1946" num contexto histórico marcado pelo Holocausto. Béchillon questionou mesmo a possibilidade legal de presumir que a mulher velada pelo niqab o faça por imposição de outrém e não de sua livre vontade. "Disso eu não sei nada. O cerne da democracia é viver na ficção do livre arbítrio das pessoas com quem lidamos", explicou o jurista, exemplificando com o caso mais óbvio do voto.

Enfim, por muito que doa à República, os doutores explicaram à Assembleia e a França que "fraternidade é uma exigência jurídica com a qual ninguém sabe o que fazer", mesmo que se admita uma citação do filósofo Lévinas, para ressalvar que "o rosto é o elemento da identidade".

"Mas isso é filosofia, não é direito".