Nascemos todos iguais. A educação, a religião e a cultura é que nos fazem distinguir e nos afastam uns dos outros. Falar sobre os homens é exactamente a mesma coisa que falar sobre mulheres. É indissociável.

As mulheres têm rigorosamente as mesmas capacidades intelectuais, diferencia-as apenas a força física. Há um panteísmo de homens e mulheres que não se pode ignorar: complementam-se.

As mulheres têm tido um percurso dificílimo, quase insustentável, de afirmação, de independência, de autonomia. E continuam a ter, porque há religiões e culturas em que continua tudo rigorosamente na mesma, ou pior ainda.

O mito da costela de Adão é muitíssimo machista, não sei quem o inventou. Saíste da costela do Adão e portanto, minha amiga, serás sempre isso. Há aí uma distorção intencional.

Não sei nada de religião, não fui educada religiosamente. Admiro, enalteço e faço as minhas orações à natureza.

É a natureza que me comanda a vida, como dizia o meu pai — o sonho comanda a vida e o meu sonho é o universo, que eu não compreendo nem sei. A indizibilidade do universo é a minha religião.

Na minha infância, não tive convivência com crianças, só com o meu pai e a minha mãe. Ele [Rómulo de Carvalho - António Gedeão] era um homem solitário, silencioso, que trabalhava sempre de pé. Ela [a escritora Natália Nunes], que tem hoje 89 anos, ensinou-me a ler, quando eu tinha três anos, e era muito alegre e extrovertida. Era mais nova que o meu pai 15 anos e viveram 57 anos, um para o outro. Ele adoeceu dois meses antes de morrer, aos 90 anos, com um sofrimento intenso.

O meu pai ensinou-me o que sabia da natureza e da terra, tudo da forma mais simplificada, como só ele sabia fazer. Era uma pessoa excepcional, com um conhecimento e uma transcendência que não é fácil encontrar.

Quando fui para a escola tive uma experiência traumática, trataram-me como uma aberração por ser canhota: prenderem-me o braço com talas para não escrever com a mão esquerda.

Não tinha televisão nem rádio, mas tinha muitos livros e passei a infância a ler. Adorava escrever. Tenho uma filha bióloga que me explicou que é genético, há um gene que transmite a possibilidade da criação.

Morava em Campo de Ourique [Lisboa] num prédio que dava para uns quintais, tínhamos um grupo giro de brincadeiras. Comecei a namorar muito cedo, para aí com 12 anos já eu andava ofegante à procura de rapazes. Adorava beijos, não passava daí mas adorava.

A violência doméstica existe entre homens e mulheres, e sei bem que elas também batem nos homens, nas aldeias ainda é pior. Escrevi um livro que está por publicar em que falo disso, sublinho a violência dos homens mas também a violência das mulheres. Quis mostrar o ódio que, ao fim de uns anos, existe num casal, um antagonismo, uma perversidade incrível. E as pessoas continuam a marchar alegremente como se nada fosse.

Existe um lado negativo nos homens como existe um lado negativo nas mulheres. Quer na violência doméstica quer no assédio sexual.

Para mim, todos somos iguais, sou contra qualquer distinção entre homens e mulheres, ricos e pobres, pretos e brancos, gordos e magros. Tenho dois ou três grandes amigos homens, assim como tenho muito boas amigas mulheres.

Vai havendo grandes avanços. Entrei para a TAP porque queria tirar o brevet, mas não havia mulheres a pilotar aviões. Passados dez anos, abriram cursos de pilotagem mas eu já não podia porque tinha 30 anos. Hoje em dia já há muitas mulheres a pilotar.

Já conseguimos muitas coisas mas ainda estamos muito longe. Não sou feminista, porque não tenho de ser, somos todos iguais. Só tenho pena é que não haja uma terceira espécie, diferente de um homem e diferente de uma mulher. Uma entidade que circulasse no nosso meio. Faz falta um contrabalanço, um equilíbrio.

Quando somos novos, olhamos para o aspecto físico mas hoje, e já há muito tempo, o que me atrai mesmo é a inteligência, a cabeça. Um homem pode ser feíssimo, mas tem de ser inteligente. Tem de ter aquilo de que gosto que corresponde à inteligência. E tem de ter uma componente feminina. Isso nota-se mais quando a pessoa entra em intimidade, porque há uma determinada sensualidade que as mulheres têm mais do que os homens. Atrai-me um homem que tenha uma sensualidade subtil, imperceptível que só tu é que sabes porque só tu é que criaste essa imagem dele.

O Chopin, que teve tantas apaixonadas e que aparentemente se apaixonou por tanta gente, só teve um amor na vida, o Titus Wojciechowski, um amigo da adolescência. Esse foi o amor longínquo que ele nunca esqueceu e com o qual tratava à distância. E é essa a sua parte feminina. Não digo que ele foi homossexual, acho que foi bissexual e isso para mim é o mais interessante. Ele não era homossexual mas era uma pessoa com uma componente feminina, às vezes até bastante doentia, que o tornava interessante. "Convivi" com ele muito tempo, para escrever o meu livro Nocturno.

anasdiasg@gmail.com

A partir de uma conversa com a escritora