A obra comunitária de uma aldeia chamada Cem Soldos

Nesta aldeia perto de Tomar montou-se um festival chamado Bons Sons, onde estarão Fausto, Norberto Lobo, Lula Pena, B Fachada ou os Terrakota. Começou ontem e termina domingo, mas a música é apenas a face mais visível de algo mais abrangente. Uma ideia comunitária de desenvolvimento. Por Mário Lopes (texto) e Miguel Madeira (fotografia)

Uma carrinha está prestes a sair para Tomar para recolher voluntários. Homens em tronco nu, que o calor é muito nesta tarde de Agosto, trabalham na montagem de palcos ou na preparação das barracas que oferecerão bebidas ao público. Há gente que já monta tenda no campismo, lá um pouco mais longe, onde as casas impecavelmente brancas da aldeia dão lugar à sombra do arvoredo.

Na tarde de quinta-feira a aldeia de Cem Soldos, a um par de quilómetros de Tomar, vivia uma azáfama peculiar. No dia seguinte, sexta-feira, começaria o terceiro Bons Sons, festival bienal organizado pela primeira vez em 2006, para celebrar os 25 anos do dinâmico Sport Clube Operário de Cem Soldos. Ontem acolheu concertos de Dead Combo ou Melech Malaya. Hoje chegam Lula Pena, Norberto Lobo, B Fachada, Diabo na Cruz ou Terrakota. E amanhã, dia de encerramento do festival, vão ouvir-se as concertinas dos Danças Ocultas, mas o grande destaque é Fausto.

Isto é o que o público verá: a música nos palcos, uma exposição de artes plásticas, uma feira de artesanato e sessões de cinema independente. Mas o Bons Sons não é simplesmente isso: é uma aldeia que celebra a sua vitalidade abrindo-se durante três dias a dezenas de milhares vindos de fora (em 2006 o festival terá tido cerca de 35 mil espectadores). E é mais. Mas, antes, contextualizemos.

Os "operários culturais"

Caminhamos por Cem Soldos guiados por Rui Mourão, 35 anos, um dos produtores do festival. É ele que aponta para a distinta casa verde que se ergue no Largo do Rossio, o principal, e que nos fala da sua antiga moradora, Dona Lurdes. Mulher riquíssima, com vastas propriedades em Lisboa, mulher progressista que organizava grandes festas para os amigos vindos de fora, assim enchendo o largo de moderníssimos automóveis que causavam espanto à população. A evocação desta Dona Lurdes que, em décadas longínquas que Rui relembra das histórias dos mais velhos, fumava e bebia um bom digestivo, coisa inaudita à época numa mulher, serve de boa ilustração do equilíbrio entre o tradicional e a abertura a outros universos que se sente por aqui.

Rui conta que esta aldeia, onde há muito se organizam mostras de teatro, festas musicais ou outras actividades culturais, era chamada "a aldeia vermelha" pelas suas simpatias comunistas. "Talvez venha daí o sentido comunitário", arrisca. Mas é apenas isso, arriscar uma resposta: "A verdade é que eu já nasci com isto." Isto é, por exemplo, o referido Sport Clube Operário de Cem Soldos até ter um presidente, mas com "autoridade informal". As decisões são tomadas "de forma comunitária", tendo em atenção a opinião de todos, novos e velhos, especialistas ou não.

Entramos no Casimiro, café onde as pessoas se reúnem para a bica da tarde e para as minis depois da bica: "Sempre que lançamos uma nova iniciativa, passamos a palavra." Segue-se depois o obrigatório estudo do impacto junto da população: "Qual foi a reacção no Casimiro?"

Continuamos no café. Conversamos agora com Luís Ferreira, 30 e poucos anos, o director artístico do festival. Designer nascido em Cem Soldos, vive hoje em Lisboa e regressa aos fins-de-semana. Viajamos ao passado para saber que a origem do nome Cem Soldos é incerta: pode referir-se ao dinheiro a pagar aos senhores da terra como renda ou a uma antiga portagem. Depois, instalamo-nos no presente e falamos do Bons Sons. Através dele, diz Luís, pretende-se desmontar o lugar que a urbanidade inventou para o mundo rural: "Uma ideia ultrapassada de artesanato, de músicas tradicionais e gastronomia." Melhor, pretende-se mostrar que essa cristalização é um erro, que nada daquilo existe parado no tempo. Algo reflectido no cartaz, repleto de abordagens novas a uma série de linguagens tradicionais. Por outro lado, ao promover o intercâmbio entre as diversas gerações da aldeia, e todos integrando na sua produção e montagem, manifesta-se o desejo de estimular o sentido crítico e a formação de novos públicos.

Muito temos ouvido falar de indústrias criativas nos últimos tempos. Luís Ferreira não aplica essa expressão àquilo que vem acontecendo em Cem Soldos. Prefere falar-nos de "operários culturais". Todos juntos. As avós e netas que nos meses anteriores colaboraram para fazer as centenas de "tixas" de pano, símbolo do festival, que foram transformadas em peluches decorativos ou porta-chaves. Os electricistas ou os motoristas da terra que oferecem o seu trabalho para o que for necessário. Os cem-soldenses espalhados pelo mundo que ajudam à distância, como Vasco Mourão, arquitecto a residir em Barcelona que tem exposição patente durante o festival e que foi responsável pelo design dos palcos. E ainda todos aqueles que, muitos meses antes do festival, passaram pelos cursos de produção cultural, de financiamento de projectos culturais, de gestão de palco ou de assessoria de imprensa organizados pelo Sport Clube Operário e que, agora, retribuem o saber adquirido.

Como refere Luís Ferreira, pretende-se que os cem-soldenses sintam o festival como sendo verdadeiramente seu - e como é "seu", ninguém reclamará com a azáfama de fim-de-semana atrapalhando a pacatez habitual dos dias. Mas Luís vê o festival como marco de algo mais importante: "Criar actividades e postos de trabalho para os que queiram cá ficar." Porque a dinâmica mantém-se depois dele. Brevemente abrirá em Cem Soldos um centro para residências artísticas e a actividade gerada pela associação já permitiu criar, no último par de anos, uma dezena de postos de trabalho.

Uma festa "amadora"

Empilhadas junto a uma parede, várias placas orientadoras esperam para ser carregadas e colocadas no lugar destinado - daí a pouco, veremos passar dois homens montados em bicicletas com um par delas debaixo do braço. Numa rua próxima, dão-se os últimos retoques na antiga tasca histórica, especializada em ginja, que reabrirá propositadamente para o festival. No parque de campismo, um homem de calças sujas de pó e tinta graceja com a criança atrás do balcão: ""tás a ser despedida não tarda muito." Ele, que chegara nesse dia da aldeia próxima de Lamarosa - "amanhã trabalho e não posso vir" -, apontará depois para o grande pano que dá sombra ao bar de apoio aos campistas: "Saltou pela última vez em 1992." Óptima ideia, aquela do pára-quedas transformado em toldo de grandes dimensões.

Começávamos a interiorizar algo que ouviríamos mais tarde a Pedro Fonseca, que não é da aldeia, mas veio ajudar em 2006, a convite de Luís Ferreira, e fez questão de ir regressando. "Esta é uma festa amadora no bom sentido do termo, e gera uma afectividade muito especial." "Amadora", entendemos, no sentido de fazer de forma orgânica, aproveitando os recursos humanos locais, e improvisando quando tal se revela proveitoso. Exemplos não faltam. Basta descermos à antiga Casa do Povo, que é hoje edifício partilhado entre um Centro de Saúde e um auditório de 120 lugares onde serão projectadas as Curtas em Flagrante, mostra itinerante de cinema organizada pela associação cultural Elemento Indesejado. Basta contornarmos um par de ruas e entrar no belíssimo edifício onde estão patentes as exposições Obsessões, de Vasco Mourão, e a interactiva Uma Terra Para Gente Sem Terra, dedicada ao conflito israelo-palestiniano, de Nuno Coelhwo e Adam Kershaw. Era um antigo curral e armazém de cereais - "estive aqui vários dias até às quatro da manhã, ajudada por miúdos de 13 anos", recorda Carolina Mourão, a responsável pelo espaço.

No Largo do Rossio, onde se ergue a Igreja de São Sebastião, onde tocarão hoje Lula Pena ou Norberto Lobo, e em cujo adro estarão, amanhã, os Cantares Alentejanos de Serpa e as Adufeiras de Monsanto, nesse largo onde se ergue o palco Lopes-Graça, três miúdos conversam à sombra de uma árvore: "Não é questão de ser escuteiro ou deixar de ser, é querer ajudar." E, em Cem Soldos, todos ajudam.

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