A África delas é uma missão que pode não ter fim

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Sónia Nunes diz que é uma "ingénua consciente" à espera de "calibrar os seus valores" com a viagem a Moçambique dr

Dizem que o voluntariado português tem corpo de mulher. Sónia, Elisa e Isabel são três exemplos. Cheios de diferenças e semelhanças. Elas falam de ir longe para dar e querer ficar ou, pelo menos, voltar. Histórias de meses ou anos com crianças, sorrisos, velhos, mentiras, trovoadas, chuvas, cheiros, terra cor-de-laranja...

Sim, há o discurso romântico - quase cliché - de quem lembra o sorriso das crianças e diz que isso "é tudo". Sim, há a história de quem há muito tempo sentia vontade sem saber porquê de ir a África para ajudar, fazer qualquer coisa. De quem se quis encontrar. Mas há também o outro lado nestas histórias de voluntariado português com corpo de mulher. O lado menos perfeito que mostra que os que estão lá longe são como nós aqui perto. Mentem, enganam, roubam e o resto. Sobra a comum moral da história: Vale a pena ir. Elas foram. E juram que não estão a fugir de nada, nem de ninguém. Aliás, dizem, foram à procura.

Primeiro Sónia Nunes. O som da expectativa. Vai embarcar para uma missão de três semanas apenas e todas as suas férias. Aos 35 anos, quer dar. Depois Elisa Santos. Com o tom da experiência a saltar-lhe do sorriso, à frente dos cabelos curtos a ficar cinzentos. Chegou há uns meses de uma viagem que era para ser de um ano, talvez dois. Foram sete. Aos 42 anos quer dar mais. Finalmente Isabel Ferreira. A voz do deslumbre. Uma menina que desde criança queria concretizar o sonho de ir a África para estar com os outros meninos. Esteve com eles dois meses e fez nascer a Kutsemba por cá. Aos 22 anos quer voltar a dar.

Sair de uma vida - ainda que temporariamente - para ir em missão é dar. Dar tempo, dar olhos, ouvidos, mãos e colo. Mas, e nenhuma das três mulheres desta história o vai negar, é sobretudo receber. E é por isso, que Sónia, Elisa e Isabel querem continuar a dar. Para continuar a receber. É o célebre caso do confessado egoísmo de quem é visto como altruísta.

Há aqui tempos e viagens muito diferentes. Há a voz de quem abdica do período de descanso do trabalho, que quem abdica do trabalho e de quem abdica das férias que interrompem os estudos. Depois os tempos que vão desde as três semanas aos sete anos, passando pelos dois meses. Muito, pouco ou quase nada, dependendo da voz que ouvimos.

Todas voltam outras. E todas voltam com palavras novas. Poucos dias depois de chegar Sónia manda-nos um texto e termina com kanimambo, que é como quem diz obrigado lá longe. Elisa trouxe de lá longe um ritmo diferente na voz, uma forma divertida de fazer perguntas a cantarolar. É talvez a mais imediata expressão das mudanças que teve nos últimos sete anos. Mas há muito mais. Isabel também nos diz kanimambo mas termina a dizer "estamos juntos". Têm fotos, memórias, sons, panos e outras coisas que trouxeram de lá. Têm em comum olhos que riem e que se fixam noutro sítio que nós - que não vivemos aquilo, não estivemos lá e , por isso, não percebemos - não conseguimos alcançar. Têm vozes e pessoas que lembram de olhos fechados. Têm vidas que ficaram mais cheias, maiores. E isso, mais do que se notar, sente-se.

Dizem os números e estatísticas - tão distantes da terra laranja de África destas três pessoas falam - que o voluntariado português tem corpo de mulher. A Fundação Evangelização e Culturas (FEC), plataforma que reúne 50 entidades missionárias portuguesas, constatou recentemente que dos 360 voluntários que seguiram este ano em missão para países de língua oficial portuguesa, 77 centro eram mulheres.

Na maior parte dos casos as férias servem de gatilho para a solidariedade. É a altura do ano com mais destas aventuras marcadas. Cá estão três delas. Três histórias de três mulheres com semelhanças na raiz e tão separadas no resto. Como se se tratasse de uma música que com a mesma nota de partida resulta em várias canções.

O antes: Sónia

em Inharrime

É sexta-feira e Sónia Nunes parte na segunda para Inharrime, em Moçambique. Reservou a tarde no escritório do Porto, para deixar tudo pronto no trabalho antes das três semanas de férias. "A minha posição não me permite mais do que isso", justifica a responsável pela empresa de gestão de recursos humanos. A mala está quase pronta, em casa. E, desta vez, vão ser umas férias diferentes. Além da roupa, leva lápis de cor, bolas de futebol insufláveis e donativos recolhidos junto de amigos.

Sónia tem cabelo claro e poucos adereços. Um lenço verde, um colar de fio preto, duas pequenas pérolas a enfeitar a ponta das orelhas. Provavelmente, não levará nada disso consigo para Moçambique. Provavelmente, vai despida também do profissionalismo que a terá levado a escrever num papel algumas frases que não quer esquecer de dizer na conversa de agora sobre a viagem.

"Quero fazer uma coisa que cumpre a minha missão: servir a comunidade", desvenda. Não se trata de um objectivo com carácter religioso, apesar de admitir uma educação católica. "Não é nada que queira fazer para agradar alguém, nem respeitar uma entidade divina. É algo pessoal e que claramente não se explica", insiste. A vontade de servir a comunidade não está amarrada a uma viagem. Já o fez por cá, nota, sublinhando o trabalho com "desempregados de longa duração, crianças carenciadas, mulheres dos pescadores de Angeiras e ex-toxicodependentes do bairro de Aldoar, ...". Para justificar a travessia até África invoca a académica pirâmide de Maslow que hierarquiza as necessidades de uma comunidade [desde as básicas necessidades fisiológicas (como a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção, o abrigo) até à auto-realização]. Lá precisam mais, de mais coisas e têm menos repostas, argumenta. "Não acredito que alguém aqui em Portugal que peça para comer fique sem resposta. Em África será diferente".

Já foi antes a Moçambique. Em 2005, duas semanas de férias. Soube a pouco mas o suficiente para perceber: "é um povo que admiro, respeito e confio". Sentimentos que assume que não tem por Angola onde, no entanto, nasceu. Veio de Angola com apenas um ano e meio, nunca mais voltou e, por isso, não gravou nada na memória. Tudo o que tem daquele sítio são histórias contadas enquanto crescia e "uma forma de estar muito própria" que sempre viu a acontecer à sua volta. Formas de estar como ter uma casa aberta onde os vizinhos aparecem sem pedir licença. Mas, se tirarmos estes bons modos de vida que os pais trouxeram da terra onde nasceu, o está em Angola não a atrai. "A corrupção é algo instalado, natural. Não me identifico com aqueles valores". Angola estava, assim, fora dos seus planos de viagem desde o início.

O plano, conta, começou com uma busca na Internet à procura de organizações não governamentais. "Percebi rapidamente que não ia ser fácil. Havia requisitos que dificilmente ia conseguir cumprir como fazer um curso de preparação, as burocracias, o tempo que tinha disponível para acção..." O próximo passo foi contactar entidades locais e foi assim que através de um amigo chegou ao projecto da irmã Lucília, em Inharrime, na província de Inhambane. "Mandei-lhe um e-mail. E ela aceitou". Pagou a viagem do seu bolso. Algo como 1200 euros. E ficou um programa de viagem. Primeiro, em Maputo, vai participar num levantamento sobre as crianças hospitalizadas com sida, colaborando no registo (com dados e fotos) para que, depois, se procure os chamados "padrinhos". Depois Sónia vai seguir para Inharrime. Para fazer o quê? "O que for preciso. Dei carta branca".

"Questiono-me sobre qual é a minha geografia, a minha paisagem", diz, decidida em procurar respostas. Resolveu tentar tirar esse ponto de interrogação do caminho. Renunciou às férias com o companheiro italiano que vive na Suíça. "Este era o nosso tempo. É complicado. Mas eu quis ir sozinha". Quer tentar, insiste, perceber melhor a sua relação com África. "Quem me conhece sabe que África está em mim. Tenho de estar dentro da comunidade. Posso trazer a convicção de que quero ir para lá", avisa. E mais Sónia?

"Espero calibrar os meus valores. Sinto que neste ritmo que temos, nesta sociedade, parece ser mais importante ter do que ser. Estes povos ensinam que é preciso pouco para ser feliz", acredita. E três semanas não é um tempo demasiado curto para a ambição de tanta bagagem no regresso? "É o possível. Aqui também tenho um projecto profissional que me alicia imenso".

Leva a certeza que não deverá sentir falta de quase nada. Não do conforto e das "coisas" que temos por garantido. Só se for da "pseudo-filha", a irmã Gabriela de 16 anos. Sónia Nunes vai partir sem medo. "Sou uma pessoa muito positiva. Sou uma ingénua consciente", declara. O único medo que tem agora é de voltar com a vontade de ficar lá. Sabe que vai ser difícil "dar e conseguir partir".

No passado dia 26 de Julho, Sónia Nunes partiu para Maputo. Passado três dias enviou notícias por escrito, a nosso pedido. "Nestes primeiros dias visitei crianças seropositivas e em situação de risco - em Maputo e em Chokwe. Tenho ficado alojada em residências de religiosos - salesianos e vicentinos - que amavelmente nos cedem cama, alimentação e muito alento. Para alem das visitas as crianças, temos visitado os projectos que estão a ser levados a cabo pelas comunidades religiosas.

É o caso da escola profissional de Magude onde os jovens podem tirar o curso de agricultura". Sónia enviou fotografias. E um apelo forte "Há muito para fazer. E há muito que cada um de nós pode fazer. Uma das iniciativas é o apadrinhamento destas crianças [com sida] que estão a ser identificadas". E entre coisas sentidas de fresco e imagens que não se esquecem, passado três dias no terreno Sónia já se confessa apaixonada.

"Percorrer estas sanzalas, bairros, vidas, historias... desperta nos emoções fortes. Tenho imagens gravadas que vão ficar comigo. Imagens que faço questão de guardar e partilhar. Não tenho tido muito tempo para reflectir. As emoções ainda não deram espaço ao pensamento. Neste momento só tenho a certeza que vou querer voltar. Esta gente doce, humilde, briosa tem a capacidade mágica de nos seduzir e cativar. Kanimambo (obrigada) povo moçambicano!"

Sónia deve chegar hoje. Missão cumprida?

O muito depois: Elisa e muitas terras laranja

É pena que não se ouça aqui e agora a voz de Elisa. Os sete anos passados lá longe - Angola e depois Moçambique - deram-lhe uma música única na fala. De resto, esta mulher não precisa de edição no texto. Ela inventa novas palavras - como os africanos sabem fazer - para dizer melhor o que sente. E consegue. Durante mais de duas horas de conversa, viajamos ao som de Elisa. E é fácil acreditar no que diz, sem fazer força para isso. É fácil imaginar Elisa a passar o tempo do fim de tarde com vista para o céu a ver a trovoada. Melhor que cinema.

Elisa Santos partiu em Outubro de 2003, com os Leigos para o Desenvolvimento em "absoluto regime de voluntariado". O que significa viagem paga, estadia, alimentação e 50 euros por mês como dinheiro de bolso. A organização católica fê-la regressar à Igreja. Ainda que não seja preciso ser freira ou padre para participar é preciso acreditar. O desafio é "dares-te". Com um tempo de entrega que pode variar entre um ano e dois anos.

"O tempo para trabalhar com as comunidades, perto delas. Mas não ao nível da miséria, porque miséria é miserável. Trabalhar na pobreza também, no despojamento. Não te aproximas de ninguém que não tem nada se chegares com tudo. Não consegues". A ideia não é passar fome, assegura Elisa. A ideia é só viver mais perto e se isso passa por comer carne em dias raros, seja.

"Se não houver despojamento podes correr o risco de ficar com uma falsa ideia de caridade". Isso, esclarece, é o que a organização defende. Assim, lá, os luxos desaparecem da mesa. "A organização pede-nos também para não ligarmos à família mais do que uma vez por semana. Há aqui um exercício de afastamento da tua história antiga". E o exercício parece que funciona. "Em vez de vários dez minutos sem dizer quase nada, cada vez que ligas é importante".

Fora do normal

"Foi uma experiência de vida extraordinária". Sim, fora do normal. Elisa tinha 35 anos quando partiu. Trabalhava desde os 20 anos e depois de uma década ao serviço de uma empresa de seguros teve, pela primeira vez, o instinto e a coragem de se soltar. Um voo pequenino, experimental ainda. Elisa voou para o inesperado, para o que não é garantido e seguro mas ainda por cá. No Porto, experimentou a programação com a Porto 2001 - Capital Europeia de Cultura, participando na montagem do ciclo de conferências chamado O Futuro do Futuro.

"Não tenho nenhuma ligação familiar com África. Não faço a mais ténue ideia da razão desta vontade de ir a África". Algo que estava lá dentro de si. Tão claro e simples como o projecto de um dia conseguir ter "uma casa na praia ou no centro da cidade". A um sinal de África - imagens na televisão, por exemplo - surgia a inquietação: "O que é que eu estou a fazer aqui?"

O engraçado é que, conta-nos mais tarde, Elisa acabou por fazer essa mesma pergunta quando estava lá, em África, no destino marcado. Mas isso foi depois. Por cá, o tempo ia passando e depois de Porto 2001 Elisa passou pelo Campo Alegre, um teatro da cidade. Em 2002 houve o momento do basta. "Tinha que me desamarrar. Tinha uma casa e um cão que me prendiam cá". África continuava a chamar mas como ver-se livre das cordas e nós? Vera, irmã de Elisa, empurrou: "A tua missão tem muitas missões. Vai lá e vê". Não estava a fugir de nada. Elisa simplesmente procurava outra coisa. A fuga a um problema - como acontece, por exemplo, a quem vê no voluntariado uma viagem para longe de uma ferida provocada por um desgosto de amor - é muito diferente da procura de uma outra solução para a vida. E era isso que Elisa queria. Outra coisa diferente.

Em Setembro de 2002 um papel dos Leigos para o Desenvolvimento dava mais um pontapé. Havia que fazer uma formação de nove meses, ser católico, estar disposto a levar "o testemunho", dar catequese e ir à missa. "Não me confessava há 20 anos. Apesar de ter fé, a minha relação com a Igreja era nenhuma". Foi preciso que fizesse o crisma, uma confirmação do baptismo. Tendo como base a Bíblia entrou no curso de preparação para a missão e aprendeu, por exemplo, "como estar, o que é ou não é correcto, o que é ou não agressão ao outro". Quando tudo começou, hesitou mas logo se decidiu: "A porta por onde entrei também deve dar para sair. Vamos ver".

Voltaram a palavras de Vera. Tinha nove meses para desistir. Ficou. Não sabia para onde ia, se fosse. Ficou até ao fim. O grupo de começou com cerca de 30 pessoas acabou com seis. Aos 34 anos andava na catequese.

Aos 35 anos - Outubro de 2003 - partiu para Angola, Uíje. "Estava à espera de muitas coisas. Eu positivo muito as coisas. Tinha apenas receio de viver em comunidade, de não encontrar o ritmo comum, depois de 10 anos a viver sozinha". Chegou. "Um sítio lindíssimo, um planalto, muito, muito verde com terra muito, muito vermelha. Ficava a 300 quilómetros de Luanda, nunca menos de dez horas".

E aqui os olhos fixam-se lá longe pela primeira vez. Talvez sejam os buracos daquela estrada velha entre a missão e a capital que faziam de uma viagem uma odisseia com água, diesel e comida na mala do carro que quebram o fio da meada. Em Uíje, conta Elisa, viviam dez brancos. "O resto eram negros e paisagem". Pouco mais havia.

Era preciso adaptar-se às diferenças. Como o terço ao final do dia, o acordar às seis da manha, o passatempo de ver trovadas reservado para as matinés. "Não ter luz (só gerador e em algumas horas do dia), não ter água canalizada, não ter televisão, nem Internet, nem rede de telemóvel, nem transportes, nem garantias de nada", lembra, acrescentando que era preciso aprender a respeitar a chuva que manda no horário dos transportes ou o telefone que tinha a estranha capacidade de decisão sobre os dias e horas em que entendia que devia funcionar.

"Temos uma capacidade incrível de nos adaptar às coisas mais incríveis". As regras dos leigos diziam que ao fim do ano os voluntários faziam um retiro de três dias para decidir se ficavam mais outro ano. Elisa ficou para o segundo ano mas ainda só tinha passado meio quando foi forçada a regressar. Uma febre hemorrágica (vírus de Marburg) estava a matar gente. Por esta altura, um ano e meio depois de chegar, Elisa tinha conseguido "ser par". "Uma das grandes diferenças em relação a organizações como a AMI ou os Médicos do Mundo é que, neste caso, é muito mais um percurso pessoal. É impossível viver sem os outros".

Elisa - a mesma mulher que quis desatar-se - estava presa ao lugar. Às pessoas. Partiu de um dia para o outro, sem avisar ninguém e cumprindo todos os passos da sua rotina diária como se houvesse amanhã. Fez todo o percurso do costume sem se despedir. "Abriu-se um buraco enorme dentro de mim. Senti que estava a abandonar as pessoas quando elas mais precisavam, quando estavam doentes".

Antes do previsto, Elisa veio para Portugal a 1 de Abril de 2005. "Não foi um regresso pleno, foi muito esburacado". A única solução era voltar a partir. A oportunidade surgiu com os Jesuítas de Moçambique que "precisavam de uma pessoa que trabalhasse de forma mais profissional os seus projectos sociais". Elisa, voltou a África como contratada, em Setembro,ainda missionária mas fora do tal "absoluto regime de voluntariado".

Em Abril de 2006, conseguiu regressar ao Uíge, em Angola. Tinha passado um ano e voltou ao mesmo lugar, fez exactamente o mesmo. Ouviu as crianças e as vozes que a reconheciam. Elisa confirma, essa história dos sorrisos das crianças? "É verdade isso tudo". Mas não é só isso que existe lá. Não há só pessoas bonitas e puras em cima daquela terra vermelha. "Há pessoas más, feias, interesseiras, vigaristas. Há corrupção, engano e feitiçaria. Há incorrigíveis". Vamos endireitá-los? "Não".

Coisas que ficaram

Elisa tem um vestido de pano simples e colorido. Um anel escuro que vai trocando de dedos e uma pulseira no pé. O cabelo curto, mais fácil de cuidar. Ela mudou por lá. Mas mudou alguma coisa lá? "Acredito que houve coisas que fiz que fizeram diferença", diz, e lá vai o olhar para longe e lá vem mais uma memória. É o jornal de parede ou o livro de histórias feito com eles e com contos tradicionais. Coisas que ficaram.

A propósito vem a parede da língua, Elisa usou os cânticos das missas para aprender a passar este muro. "São línguas com um léxico muito pequeno, onde uma palavra pode ser um sentimento. "Entrar em casa" pode ser uma palavra só". E a propósito vem a mudança no ritmo do seu tom. "Percebo que falo mais calmo agora, que abro mais as palavras. Hoje, no mercado, disseram-me uma coisa engraçada, que tinha um português muito bonito". E foi buscá-lo tão longe.

A segunda vida de Elisa em África foi em Maputo. "Moçambique é muito doce, o povo e o país. Talvez porque tem mais de dez anos de paz do que Angola". E, mais uma diferença, desta vez "tudo funcionava". Havia luz, telefone, água, tudo 24 horas por dia. Em Novembro de 2006 um padre e uma leiga morreram num assalto a uma missão. O suficiente para motivar uma retirada de voluntários e esvaziar as organizações. Elisa arregaçou as mangas, recalendarizou os projectos sociais dos jesuítas, e saiu de Maputo para os outros lugares onde era preciso fazer e onde faltavam as pessoas. Trabalhou na reabilitação de colégios, na canalização de água, com órfãos da sida. Em Setembro de 2007 acabou a missão com os jesuítas. Mais um regresso a Portugal. Para o quê? "Para o nada. Volto sempre para o nada".

A mesma vontade de voltar a África. E o projecto Vida chama Elisa. A próxima missão é, mais uma vez em Moçambique, e ela não hesita. Diz sim, embarca de novo. Vai em Janeiro de 2008 e fica até Janeiro de 2009. Mais um ano, como contratada, colocada numa província do Sul de Moçambique chamada Djabula. "Que significa alegria". Alegria a 100 quilómetros de Maputo por caminho de areia e terra e onde encontrou uma "comunidade difícil". E para trás, de novo. De novo, a exigência da adaptação. "Sem luz, sem água, sem telefone, sem nada, isolada". Aqui, Elisa vacilou. "Houve alturas que pensei que estava passada da cabeça. Senti uma voz, uma força qualquer, a dizer-me para ficar mais um bocadinho".

No início de 2009, Elisa preparava-se para vir embora. Porém, uma organização católica de médicos italianos (Cuamm) com quem já tinha partilhado o terreno nos tempos de Angola desafiou-a a mais um ano de trabalho como adjunta do representante do país. Escusado será dizer que Elisa disse sim. Em Janeiro de 2010 ficou por sua conta e risco. O dinheiro deu para se aguentar mais três meses a fazer voluntariado. E no remate de sete anos - com uma relação de mais de três anos à distância com uma pessoa que vivia em Portugal, pelo meio - coseu duas das suas vidas. Aquela que tinha deixado muito tempo antes em Portugal, virada para a cultura, e a mais recente do voluntariado. Alimentou um blogue de artistas moçambicanos e organizou uma exposição chamada "ocupações temporárias" que fez com que seis artistas moçambicanos invadissem seis espaços da cidade de Maputo. "Sozinha e sem salário", orgulha-se.

Em Abril de 2010 voltou para o Porto. Voltou com "mais paciência, mais tolerância". Inventa uma palavra para definir o que se passou lá: "Despreconceituei-me" . Voltou com o sabor do céu muito estrelado na boca. A querer ficar "longe do Ikea e sem perceber porque é que as pessoas querem tanta coisa". "Não quero viver uma vida irreal". A aproveitar a água. A encontrar-se na cozinha moderna à procura de um bidão de água. Da mesma forma que nos primeiros tempos lá longe procurava o interruptor na parede com uma lamparina acesa na outra mão.

E agora Elisa? "Agora? Estou à espera de voltar".

O logo depois: o Chimundo?de Isabel

Provavelmente, neste momento, Isabel estará a perguntar-se o que estava a fazer há precisamente um ano em Chimundo, no Chibuto. É isso que tem feito desde que chegou de Moçambique. E todos os pretextos são bons para lembrar como era lá longe. "Já ninguém me consegue a ouvir", confessa, explicando o cansaço dos outros com as muitas frases começadas por "Ah, mas lá em Moçambique...".

Isabel Ferreira é a mais entusiástica, a mais romântica, a que tem mais brilho destas três mulheres. Diz que só conheceu pessoas boas em Moçambique. E é ela que mais fala no poder do sorriso das crianças. Talvez pelos seus 22 anos.

"Este sonho não começou agora", arranca Isabel. Está nervosa por contar a história da sua viagem e admite-o. A partir daí, fala. Sem parar. Sem que seja preciso fazer perguntas. Era o sonho de "calcar a terra africana" que toda a gente perto de si conhece. Aos 15 anos começou a bater às portas - do Instituto Português da Juventude, por exemplo - e a receber os primeiros "nãos". Era muito nova ainda. "Já procurei e não há explicação para isto. Não tenho nenhuma ligação na família a África. Mas sempre que via as imagens na televisão e revistas sabia que queria ir, estar com as pessoas".

Em Janeiro de 2009 encontrou uma imagem de uma organização não governamental na Internet. Era preciso ir a Lisboa para conhecer melhor a AID Global e Isabel foi. "Estava um dia horrível. Com muita chuva. Não gosto de chuva. Mas aprendi a gostar em Moçambique". É difícil acompanhar a velocidade do conto de Isabel. É fácil acreditar, como nos diz, que quando lhe apresentaram o projecto os "olhos brilharam". Era agora, pensou.

De Janeiro a Junho, todas as semanas, Isabel foi a Lisboa para as lições da AID Global. A proposta deles era que, no final, quem ficasse teria de arranjar forma de pagar a sua viagem, alojamento e alimentação. Fizeram as contas e seria algo como 1500 euros por pessoa. Mas então qual era o papel da ONG? "Arranjar os contactos lá e também pagavam um contentor que nós tínhamos de encher com os donativos que arranjássemos".

Isabel e mais uma dezena de jovens com vontade de voluntariar desdobraram-se. Pediram a contribuição de empresas, organizaram jantares africanos, fizeram pulseiras, colares e outros "produtos solidários" que vendiam depois. O grupo, constata Isabel, tinha 10 raparigas e um rapaz. Em Moçambique havia a perspectiva de serem recebidas pela Irmã Catarina, no bairro de Chimundo, em Chibuto (província de Gaza), a cerca de 300 quilómetros de Maputo para norte. Isabel foi em Julho de 2009 e passou lá os dois meses de férias.

Chegaram à noite a Maputo para fazer a viagem, num chapa [carrinha de caixa aberta] cheio, até Chimundo. Na mala levavam roupa - "não levei nada para o frio e à noite faz frio lá" - e muitos dossiers pesados para as aulas. No contentor pago pela ONG viajavam três mil livros para montar uma biblioteca em Chibuto, computadores e roupa.

Estávamos "impaz"

Isabel foi recebida por dezenas de crianças. "Todas a dar as boas-vindas. Cheias de alegria, de vida. Ali, tudo se vive à flor da pele. As crianças pareciam formigas. Mexiam no nosso cabelo". O refrescar da memória das crianças faz com que se lembre de mais um artigo na bagagem: "É verdade! Também levávamos chupa-chupas e rebuçados". E sorri.

Depois dos primeiros risos começaram a correr os dias. "Acordar com os galos, a luz a entrar dentro das nossas quatro paredes e as crianças a invadirem o espaço com abraços e beijos". Chamavam-lhe Mana Isa e melhor parece impossível. Excepto se lembrarmos as palavras da Irmã Catarina que anunciava a estas voluntárias: "A minha profissão é amar as pessoas". A Irmã Catarina tem 80 anos e a vontade de criar um "centro comunitário". E se isso significa que ali as crianças de Chimundo podem encontrar a sua única refeição do dia, uma sopa, conseguia. Mas Isabel e as outras voluntárias levaram mais do que isso.

"Fizemos formação pedagógica a professores, mostramos como eles podiam usar a natureza para dar aulas, como em vez de só falar podiam ensinar", diz, contando como, por exemplo, pegaram em paus para a aula de matemática e como se faziam desenhos na terra laranja. "Em vez de só papaguear", diz.

Mais? "Demos formação na área de informática e é incrível como quando saímos de lá já sabiam escrever um texto e fazer um powerpoint". Isabel acredita que é preciso fazer mais e diferente. Que o que deixaram lá nos miúdos vai servir para alguma coisa. Nem que seja só para saber mais ou só para sonhar diferente.

"Fizemos trabalhos manuais, ensinámos canções em português, tentámos falar muito da importância de ir à escola, fazíamos jogos de palavras". E Isabel respira e lembra. "Por exemplo: digam palavras começadas por "i". E eles diziam "inveja, impaz"..."

E sorri. Levaram o Aladino, a Cinderela e o Harry Potter até aos meninos do Chimundo. "Ao final do dia era hora de pôr um vídeo que discutamos no final". E Isabel volta atrás no tempo e sorri de novo. "Mana Isa, vamos assistir?", lembra, mudando a voz como num teatro.

"Fiz cimento, rebocámos uma parede com a ajuda do senhor Henrique, sobrinho da irmã Catarina". Por fim, Isabel suspira. "Vivemos intensamente. O meu sonho tornou-se realidade. Pode parecer romântico e poético mas, para mim, foi verdade". Moçambique foi tudo o que Isabel sonhou. Só um problema: "E quando voltarmos a Portugal? O que fazer para não parar?"

Isabel diz que regressou contrariada, sem saudades dos pais - confessou-o no primeiro abraço no aeroporto - e com a certeza de que o futuro passa por "lá". Antes é preciso acabar o mestrado de psicologia clínica, entrar na Ordem dos Psicólogos e ter a situação profissional resolvida. Mas só isso não chegava para a convencer a ficar por cá. Ela e um grupo de mais sete raparigas regressadas da moçambicana província de Gaza criaram a Kutsemba a 8 de Março de 2010, Dia da Mulher.

"Kutsemba significa esperança no dialecto de Chibuto" e por cá ficou a ser o nome de uma nova Associação de Cooperação para o Desenvolvimento. "Uma associação privada de solidariedade social, laica, apolítica e sem fins lucrativos, que estabelece como uma das suas prioridades de acção a educação global como ferramenta principal para um desenvolvimento sustentável, porque entende que todos os seres humanos têm direito a viver numa sociedade inclusiva e equitativa", lê-se na apresentação no site.

"Estamos a desenvolver vários projectos relacionados com a Educação e Cultura" diz Isabel decidida a alimentar o espírito de voluntariado em Portugal. Já têm 14 voluntárias. Primeiro para trabalhar por cá e um dia, quem sabe, a Kutsemba poderá ser capaz de levar alguém até África. Isabel garante, no entanto, que quer fazer algumas coisas diferentes. Ao abrigo da Kutsemba os voluntários não terão de pagar a sua viagem, estadia e alimentação, por exemplo.

A Kutsemba é a forma possível que encontrou para estar lá longe. "Tenho medo que se esqueçam de nós. Nós demos imenso, lá estávamos limpas, sem máscaras. Nós estávamos "impaz"". Isabel deixou crescer os pelos nas pernas em Chimundo, lavava o cabelo com um mão-cheia de água e pouco mais. Hoje tem as unhas pintadas, sobrancelhas arranjadas e o cabelo esticado.

Foi por "nossa causa", confessa reactivando o nervosismo inicial. Só por um instante. Logo se lembra como "elas também são vaidosas lá" e como os meninos se divertiam a pintar também a unhas com canetas. "Demos muito e recebemos a dobrar", conclui, abrindo o sorriso quando recua à festa de despedida com balões e gelatina. Gelatina difícil de engolir. "Mana Isa, não presta".

Moçambique mudou a Isabel e mudou algumas coisas à sua volta. Foram dois meses que "pareceram um mês e ao mesmo tempo dois anos". Foi o tão rápido casado com o tanto. O Chibuto de Isabel reforçou os nós mais fortes com alguns amigos e soltou os laços mais fracos que tinha. "Estamos até morrer num processo de construção de identidade". Quando chegou passou uns tempos a responder ao "bom dia" com a resposta de lá. Com o "bom dia, obrigado". Como Elisa, Isabel também encheu os olhos com o céu, a lua e as estrelas de Moçambique. É o mesmo céu mas maior, mais perto. As crianças, o céu, os barulhos, os galos, a luz, a terra, ainda está tudo lá quando fecha os olhos. Ou mesmo de olhos abertos. É a África dela. A

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