O Assassino do Laser é a sombra negra da história moderna da Suécia

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O jornalista Gellert Tamas diz que o ENRIC VIVES-RUBIO

Um serial killer que matava imigrantes a tiro era afinal um imigrante que queria integrar-se. Um jornalista faz um retrato surpreendente da história cruzada do país e do homem. O que aprendeu a Suécia com John Ausonius? Por Clara Barata

Não se pode dizer que tenha sido por prazer. Foi mais por um sentimento de dever que John Ausonius disparou. À sua volta, a Suécia parecia reclamar que se tomassem posições de força. Que alguém fizesse algo que tornasse claro que aquelas pessoas não eram bem-vindas. "No início não tinha a intenção de tirar a vida a ninguém... No primeiro atentado a decisão era a de atirar... Queria provocar um grande rebuliço. Além disso, achava que não devia atirar sobre qualquer um. Devia atirar sobre os imigrantes criminosos, aqueles que circulam nos seus Mercedes, traficantes de dinheiro sujo, de heroína e de drogas em geral", recordou o famigerado Laserman, o Assassino do Laser, ao jornalista Gellert Tamas, dez anos depois de ter disparado a matar contra dez pessoas - imigrantes -, tendo chegado a matar uma, e assaltado pelo menos 20 bancos.

Laserman aterrorizou a Suécia de Agosto de 1991 a Junho de 1992. Este período, conta Gellert Tamas no livro agora publicado pela Caderno (O Assassino do Laser), coincidiu com "um momento muito negro na história sueca". Foram tempos de mal-estar e de crise, com o crescimento muito rápido e violento de movimentos de extrema-direita e xenófobos, que tinham os imigrantes como alvo principal. "A Suécia, vista do estrangeiro, é encarada quase como uma sociedade perfeita, com a sociedade do bem-estar, a educação, as mulheres e crianças a terem os seus direitos e necessidades assegurados. Mas esta imagem teve brechas no início da década de 1990", disse Tamas ao P2, numa passagem por Lisboa. "Houve o assassinato do primeiro-ministro Olof Palme em 1986 [até hoje não foi identificado o culpado] e depois houve estas movimentações de extrema-direita e o choque do caso do Laserman. Tudo isto virou a sociedade do avesso. Abalou a imagem que tínhamos de nós."

John Ausonius, o Assassino do Laser, disparava contra imigrantes - com a intenção de matar, embora apenas uma das suas vítimas tenha morrido. As outras ficaram gravemente feridas e com problemas para o resto da vida, e desfiguradas (ele atirava para a cabeça, para a cara). Não terão morrido porque modificou as armas que usava - uma espingarda com mira laser, que o tornou conhecido, e depois um revólver -, prejudicando a sua precisão. Enquanto serial killer não era eficiente, mas foi tremendamente eficaz a espalhar o medo, relata Tamas no seu livro, intercalando a reportagem da altura com a história da vida de Ausonius.

Jornalista e "psiquiatra"

O Assassino do Laser é mais surpreendente e paradoxal do que se fosse uma personagem inventada: o serial killer que começou a matar imigrantes num país nórdico era ele próprio um imigrante (de segunda geração), que foi discriminado na infância porque tinha cabelo preto e olhos castanhos (chamavam-lhe preto, numa altura em que os imigrantes eram apenas 0,5 por cento da população na Suécia, e não 12 por cento, como hoje) e que sempre se sentiu deslocado, com um enorme desejo de sentir que pertencia ao meio, que era sueco. E que, além de ter dado rédea livre ao impulso de matar, se tornou assaltante de bancos. Era ainda um jogador compulsivo de roleta, em que perdia sempre tudo, ao contrário do que se passava na Bolsa (fez uma pequena fortuna, que perdeu num momento mal calculado). Foi yuppie, mas também sem-abrigo. E um amante de cinema que não conseguia relacionar-se com mulheres...

Ausonius, que negou tudo no julgamento que o condenou a prisão perpétua em 1994, manifestou-se disposto a contar a sua história dez anos depois de ter sido preso e Tamas resolveu ir ter com ele à prisão, ouvi-lo. "Em 2000, quando fui entrevistá-lo, acho que fui a primeira pessoa a quem ele admitiu os homicídios que cometeu. De certa maneira, fui o psiquiatra dele...", lembra Gellert Tamas.

O Assassino do Laser tornou-se num herói para os movimentos ascendentes de extrema-direita e neonazis que surgiram em força na Suécia do início da década de 1990. Quando foi preso, em Junho de 1992, "enviaram-lhe uma enorme quantidade de flores, cartas, e a extrema-direita considerou-o o seu herói. Vendiam t-shirts a apoiar Laserman, com a mira laser e uma figura estilizada de negro, muito racista. Apoiavam-no muito", conta Tamas.

"Mas no julgamento, quando ele negou tudo e disse que não tinha nada contra os imigrantes, perdeu a credibilidade que tinha na extrema-direita. Mas durante um tempo foi uma grande estrela."

Ir um passo adiante

Enquanto segue a história de Ausonius - que começou a vida como Wolfgang Zaugg, filho de mãe alemã e pai suíço de língua alemã, ambos imigrantes que procuraram a Suécia, poupada pela Segunda Guerra, para melhorar a sua vida, no início da década de 1950 - Tamas vai dando conta do que se passava no país naquela altura, tentando pintar o cenário em que vivia o serial killer,que tinha uma história já longa de desequilíbrios, internamentos e períodos de tratamento devido a doença mental.

"Esta história é complexa. Claro que ele tinha problemas mentais, senão não disparava sobre pessoas", diz Tamas. "Quando começou a disparar, os media interrogavam-se se era só uma pessoa perturbada ou se fazia parte de um movimento maior. Mas as pessoas perturbadas também podem ser influenciadas pela sociedade, se calhar até mais facilmente por serem perturbadas. Não foi uma coincidência ter começado a matar nesta altura, quando o sentimento anti-imigrante era tão alto."

Um dos temas do livro é precisamente o rápido crescimento deste movimento anti-imigração, "que foi muito forte, tanto a nível parlamentar como ao nível de grupos violentos nazis, como a Resistência Branca Ariana [VAM, a sigla em sueco]". Gellert Tamas queria também analisar a influência que este caso teve sobre os media, sobre os políticos, queria avaliar se mudara a atmosfera geral e o discurso da sociedade em relação a quem vinha de fora. Chegou à conclusão de que os temas da imigração, até aí quase inexistentes, se tornaram os mais debatidos, passaram a ocupar o topo da actualidade, explica Gellert Tamas, jornalista no diário Dagens Nyheter e colaborador de um dos principais canais de televisão suecos, o TV4, e especialista em temas de imigração e minorias.

Foi por essa altura que surgiu um novo partido, a Nova Democracia, que entrou no Parlamento nas eleições de 15 de Setembro de 1991, com 6,7 por cento dos votos, e subiu depois nas sondagens até ser o segundo maior partido nas intenções de voto, com mais de dez por cento. "Os líderes, Bert Karlsson e Ian Wachtmeister, eram tipo Berlusconi [primeiro-ministro italiano], tentavam ser engraçados, não-políticos, parecia ser algo novo", diz Tamas. Por exemplo, como relata no livro, na página 47: "Eles gozavam, incansavelmente, com os seus adversários. (...) Subiam para caixotes de cerveja e cantavam. O conde [Wachtmeister] colocava na cabeça chapéus engraçados e o produtor de discos [Karlsson] usava camisolas com buracos nas mangas. No seu primeiro comício, os dois conseguiram reunir um público gigantesco."

Uma vez no Parlamento, as posições da Nova Democracia foram cada vez mais claramente racistas e anti-imigração, associando criminalidade e imigrantes, manipulando dados e estatísticas, continua o jornalista. "Em várias reuniões partidárias, os novos-democratas falaram de um estupro brutal cometido por somalis, segundo afirmaram, numa cidade sueca. Uma pesquisa rápida concluiu que o crime fora cometido numa cidade totalmente diferente da citada e por um criminoso "sueco"", relata Tamas (pág. 235). "A Nova Democracia apresentou números falsos a respeito de todas as situações. Num comício, afirmou que o ensino da língua sueca a imigrantes custava ao país 1,3 mil milhões de coroas por ano, quando, na realidade, não custava nem metade dessa importância" (pág. 235).

Quando Ausonius ouvia os novos-democratas, diz Tamas, "ia um passo mais adiante, dizia "vou fazer aquilo que ninguém tem coragem, matar um imigrante"".

Por outro lado, é muito estranho que um imigrante, que se sentiu discriminado em criança, quando os outros meninos, louros e de olhos azuis, o afastavam das suas brincadeiras e lhe chamavam negro, tivesse reagido assim. Mas há que levar em conta que Ausonius tinha, por essa altura, começado a pintar o cabelo negro de louro - enfim, para ele era louro, para os desafortunados cabeleireiros que lhe coloriam as melenas e para todas as outras pessoas era um ruivo impensável - e a usar as lentes de contacto mais azuis do mercado, para se parecer, finalmente, com um verdadeiro sueco.

"É um enigma psicológico. Como pode um imigrante matar outro imigrante? É um paradoxo, mas também é parte da solução. Ele sentia que não estava integrado, mas queria muito fazer parte da sociedade que não lhe permitia ser parte do "nós". Queria ter olhos azuis, formar-se. Na sua lógica retorcida, estes homicídios eram a última tentativa desesperada de fazer parte do "nós" disparando contra "eles"."

Mas, acrescenta Tamas, se houve algo de bom nas acções de Laserman, isso reside no facto de ele ter ajudado a mudar o sentimento geral. "As tentativas de homicídio, dia após dia, fizeram com que as pessoas comuns e os políticos dissessem que era de mais, que era preciso dizer não. Não se podia continuar a dizer que havia um sentimento geral [anti-imigração] entre os suecos quando andava alguém a matar pessoas, uma atrás da outra. Os homicídios deram origem a um movimento que mudou o discurso nos media e na política."

A Nova Democracia não conseguiu manter-se no Parlamento nas eleições seguintes e o partido dissolveu-se em 2000. "Tornaram-se demasiado racistas, foram longe de mais. Não se distanciaram das acções do Assassino do Laser, por exemplo", explica Tamas. "Aliás, depois de 1994, não tivemos mais nenhum partido de extrema-direita populista no Parlamento."

Nas próximas eleições de Setembro volta a haver uma força política de extrema-direita, o Partido Democrata Sueco, que tem hipóteses de entrar no Parlamento (para isso é preciso conquistar pelo menos quatro por cento dos votos), explica.

Zellig sueco

E Ausonius, o Assassino do Laser, que como foi para a prisão não teve tratamento psiquiátrico, continua a odiar imigrantes? "Ele foi preso em 1992, falei com ele passados dez anos. Ele estava ainda em 1992, mas não os odiava... Acho que estava a tentar compreender-se a si próprio. Penso que foi honesto quando dizia que devia sentir-se mal com o que fez, mas não conseguia. Ele pode pedir perdão passados 20 anos, o que vai ser agora. Mas ele não mostra arrependimento. Está mais preocupado em compreender como pensava nessa altura do que em ter pena daquelas pessoas", conta Tamas.

Passados todos estes anos, o jornalista sueco admite que o considera uma pessoa psicologicamente muito interessante: "Como personagem, ele é um espelho negro da história sueca moderna. Na juventude, foi vizinho de Olof Palme, e foi até um dos suspeitos do assassinato de Palme. Quando toda a gente queria ficar rico foi yuppie. Ele é uma figura Zellig, como o filme de Woody Allen - estava em todos os momentos-chave. Isso funcionaria muito bem num romance, para personificar a história da Suécia moderna, o modelo da sociedade perfeita que não é assim tão perfeita, tem muitas sombras negras."

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