Nascemos para correr e a inacção está a matar-nos

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O ser humano evoluiu para se tornar uma perfeita máquina de corrida. Mas o estilo de vida moderno quase dispensa o movimento e o instinto para poupar energia está a tornar-se "autodestrutivo". Quem o diz é Christopher McDougall, jornalista e amante da corrida, num livro que se tornou um best-seller. Porque conjuga teorias científicas com o ritmo de um livro de aventuras. Recheado de personagens e histórias fantásticas. Por Luís Francisco

Christopher McDougall, jornalista norte-americano, actualmente editor da revista Men"s Healthe cujo primeiro emprego na profissão foi como correspondente da Associated Press em Lisboa, nos anos 1960, gosta muito de correr. Mas estava constantemente a lesionar-se. Ao procurar a resposta para esses problemas, "tropeçou" numa triste conclusão (a proliferação de sapatos de corrida só prejudica a acção dessa máquina de absorver impactos que é o pé humano) e numa nova visão da evolução humana: o Homem nasceu para correr.

Terá sido essa capacidade para percorrer longas distâncias que permitiu, no final da última era glaciar, aos Homo sapiens superiorizarem-se aosHomoneanderthalensis, que eram mais fortes e tinham um cérebro maior. Medindo a passada e o ritmo da corrida humana, cientistas demonstraram que o grande segredo dos humanos é que a sua resistência à corrida é infinitamente maior do que a das espécies que caçavam. Ainda hoje, em tribos remotas, há relatos de caça de persistência, em que um grupo de homens persegue, digamos, um veado até este desistir por falta de forças...

Na sua busca pela corrida perfeita, McDougall acaba a participar numa prova única, longe dos olhares do mundo, nas esquecidas serranias do Norte do México. É aí, no chamado Desfiladeiro do Cobre, que vivem os tarahumaras, os maiores corredores de longas distâncias do planeta. Vivem longe de tudo e todos, correndo para cima e para baixo numa paisagem letal. Mas, por uma vez, recebem a visita de alguns dos melhores ultramaratonistas norte-americanos para um duelo memorável.

O livro Nascidos para Correr - o título Born to Run beneficia da associação imediata ao tema homónimo de Bruce Springsteen - é uma viagem ao mundo da corrida de longa distância. Um mundo de gente especial e descontraída, mas com uma lição válida para qualquer um que gosta de fazer jogging: só se corre bem quando se corre por prazer. E todos devíamos correr. Porque, como explica Christopher McDougall em entrevista telefónica, apesar da nossa predisposição genética para nos movermos, a verdade é que a humanidade descobriu como sobreviver sem se mexer. E essa descoberta está a matar-nos.

Se é verdade que nascemos para correr, como diz no seu livro, baseando-se em conclusões de cientistas, como é que nos tornámos cada vez mais gordos, preguiçosos, lentos?

Temos dois instintos: um, físico, para sermos muito activos; mas também um controlo mental que nos diz para conservarmos a energia. E durante a maior parte da existência da Humanidade, conservar energia era uma grande ideia, porque não havia outra forma de transporte que não as nossas pernas. O problema agora é que criámos formas de viver sem nos mexermos e, portanto, esse instinto de conservar energia tornou-se, de certa forma, autodestrutivo. Evoluímos durante milhões de anos sem nunca previrmos o cenário de, eventualmente, não termos de nos mexer. Temos um corpo programado para a acção, mas uma mente que quer conservar energia. E esse é o problema: é que agora já não temos de nos mexer.

Correr terá, portanto, sido o segredo para o nosso triunfo como espécie. Mas então porquê continuar a correr se não precisamos?

Isso pega com a primeira questão. É que precisamos mesmo de correr. Acontece que não somos apenas seres intelectuais, somos animais. E basta ver o que se passa com qualquer animal que se ponha num zoo: começa a ter oscilações de comportamento, engorda, fica preguiçoso, tem disfunções sexuais... O que acontece a um animal num zoo é o que nos acontece a nós.

Devíamos sentir a necessidade de correr como um impulso biológico?

É uma consequência biológica. E também acho que há um impulso. Vejamos: não será coincidência que, todos os anos, dezenas de milhares de pessoas alinhem à partida da meia-maratona de Lisboa e atravessem a ponte [25 de Abril] a correr. Se isso acontecesse com outro animal qualquer - imaginemos 40.000 cangurus a correr sem aparente razão -, íamos pensar que algo de errado se passava com eles. Portanto, temos esse instinto para correr distâncias longas e é por isso que escolhemos as corridas longas como o nosso desporto mais participado.

Quando fala de atletas de longas distâncias, ultramaratonistas, as pessoas tendem a olhar para eles como OVNI... Mas as conclusões a que chega a respeito deles são igualmente válidas para quem faz o seu jogging matinal?

Sim, penso que as pessoas que correm ultramaratonas e as que fazem jogging estão no mesmo grupo, há uma relação forte. Eles encaram o desporto com a mesma mentalidade: vão descontraídos, não querem competir, estão ali apenas pelo prazer de correr. É quando se começa a ser competitivo que as coisas se tornam mais difíceis. Nessa altura transforma-se o prazer de correr num trabalho.

Portanto, o segredo é correr por prazer...

Claro, se virmos os ultramaratonistas, pessoas que correm 80, 160 quilómetros, eles não estão obcecados com o tempo final ou com a classificação, tudo o que eles querem é vencer a distância, não ganhar aos outros. E essa é uma lição valiosa.

No seu livro, não poupa críticas aos fabricantes de sapatos de corrida, nomeadamente a Nike. Teve alguma reacção da parte deles?

Ora aí está uma coisa surpreendente: não! Nenhum protesto.

Bom, você assume no livro que também corria com sapatilhas Nike...

Claro, sempre ouvimos dizer que precisamos daqueles sapatos... "Se não usar estes sapatos, vai lesionar-se"... Assustam-nos, levam-nos a pensar que os sapatos são muito importantes. O que eu descobri foi que não são importantes, na verdade são eles que provocam as lesões que deviam ajudar a prevenir. E os fabricantes, se tivessem alguma resposta para essa acusação, já a teriam dado. Em vez disso, remeteram-se a um silêncio absoluto.

Talvez a resposta tenha sido aparecerem com sapatos que dão a mesma sensação de correr descalço...

Pois, a única resposta foi aceitarem o que eu disse e passarem a vender outro produto.

Continua a correr?

Sim, corro todos os dias. Umas vezes oito, outras 16, talvez vinte e tal quilómetros. Depende muito de como está o tempo. Estou a olhar pela janela e está um dia fresco, sem vento, portanto hoje talvez faça um percurso mais longo, uns 20, 25 quilómetros.

Sempre por prazer...

Exacto. Por exemplo, se os meus filhos estão por casa e querem correr, faço um percurso mais curto com eles; se aparecem amigos e querem correr no bosque, vou com eles. Faço o que me parecer divertido para esse dia.

E corre com sapatos ou descalço?

Corro descalço sempre que posso. E com uns sapatos minimais noutras alturas. O problema dos sapatos não é a protecção, é a correcção. A protecção é boa, a correcção é má. Quando se corria de sandálias, não havia problema. O problema surgiu quando os fabricantes quiseram ser mais sábios do que o pé humano e tentaram controlar a sua acção.

Depois daquela corrida no México, continuou a ir a competições?

Já fiz, depois disso, algumas corridas de longa distância, tentei fazer a Leadville 100 [uma prova de 160 kms disputada em altitude, no Colorado], mas tive de desistir a metade do percurso, porque estava a ser muito lento... Acabou por ser quase uma situação divertida, porque eu só conseguia pensar: "Como é que se é demasiado lento quando se corre 80 kms!" Bom, na verdade, até fiquei contente por parar, porque estava a forçar um bocado. E o verdadeiro segredo para se ser consistente em longas distâncias é nunca forçar. Você corre?

Bom, duas ou três vezes por semana, mas só quatro ou cinco quilómetros...

É o que interessa, é o movimento, sem pressão. Quando se transforma em trabalho é que perde a piada.

É verdade que, quando deixei de usar relógio, tornou-se mais fácil...

Esse é o primeiro segredo. Deixar o relógio em casa permite-nos concentrar na nossa respiração, na paisagem que nos rodeia, em vez de estarmos constantemente a olhar para o pulso.

O seu primeiro emprego como jornalista foi em Portugal, como correspondente da AP na década de 1960. O que recorda de Lisboa e do país?

Portugal é um dos meus países preferidos... Se tivesse de escolher um sítio para viver, seria Lisboa ou Tavira. Não quero ser lírico, mas o que me apaixona em Lisboa é que podemos estar no mar, nas montanhas ou num belo restaurante em poucos minutos, em qualquer direcção. Temos sempre a noção do meio natural que nos rodeia. Mesmo no meio do trânsito sentimos sempre o cheiro do mar, sabemos que, passando aquela ponte, numa questão de minutos podemos estar no Meco dentro de água... Passei quase três anos em Lisboa e só tenho pena que o meu português se tenha degradado tanto.

E voltou depois disso?

Sim, várias vezes. Deixei bons amigos em Lisboa e no Porto. Aliás, estou atrasado para mais uma visita, porque prometi ir no Verão... Acho que vou conseguir no Outono.

Nos anos 60 você corria em Lisboa? Presumo que não encontrasse muita gente a fazer o mesmo...

Praticamente ninguém... Corria sempre que ia à praia com amigos, meia dúzia de quilómetros, e às vezes na cidade, procurando saídas. Lembro-me de correr do meu apartamento, na Calçada do Monte, passando pela Feira da Ladra e descendo pelo Museu do Azulejo até à estrada que estava a ser construída para a zona onde veio a realizar-se a Expo "98. Fugia ao trânsito, mas em Lisboa já se sabe: as colinas são brutais!

Já está a trabalhar no próximo livro. Tem alguma coisa a ver com corrida?

De certa forma, está relacionado...

Vamos ter novos segredos revelados?

Penso que sim... Não quero ser demasiado optimista, mas acho que o material que tenho para este livro é tão bom como o que tinha para o anterior. Estou muito entusiasmado.

Continua em contacto com as pessoas de que fala em Nascidos para Correr?

Não voltei ao México, mas continuo em contacto com toda a gente com quem partilhei o processo de escrever o livro. Só não voltei a contactar os tarahumaras, porque, para isso, era preciso ir lá, uma vez que eles estão alheados do mundo exterior. Mas a Jenn e o Billy [casal de namorados ultramaratonistas], o Caballo Blanco [o eremita norte-americano que vive entre os tarahumaras e que organizou a corrida entre índios e gringos], o Barefoot Ted [um ultramaratonista fala-barato que, como o nome indica, corre sempre descalço]... Desse tenho notícias constantes, talvez até mais do que quereria...

É um peso que terá de carregar...

(Risos) Penso nele como o meu novo irmão.

Há algo de especial que gostasse de dizer aos seus leitores em Portugal?

Bom, por acaso até há. Estive na iminência de visitar Portugal durante a pesquisa para o livro, porque queria perceber como é que Portugal se tornou uma potência mundial da maratona nos anos 1980... O Carlos Lopes era um monstro... Eu tinha uma teoria, que gostava de ter testado na altura, mas não deu, não havia espaço no livro para mais. Acho que o farei em breve, até porque me parece que é um fenómeno que poderá repetir-se.

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