Os livros de Matilde

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Escolher os livros essenciais de Matilde Rosa Araújo não é fácil. Há sempre mais um que se impõe acrescentar. A Pública pediu ajuda a duas especialistas em literatura para a infância, Fátima Ribeiro de Medeiros e Leonor Riscado, e a um escritor, António Torrado. Todos amigos de Matilde. Era fácil sê-lo.

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Escolher os livros essenciais de Matilde Rosa Araújo não é fácil. Há sempre mais um que se impõe acrescentar. A Pública pediu ajuda a duas especialistas em literatura para a infância, Fátima Ribeiro de Medeiros e Leonor Riscado, e a um escritor, António Torrado. Todos amigos de Matilde. Era fácil sê-lo.

Não é possível falar da escritora sem falar também de Maria Keil, “as suas ilustrações são a marca de água das obras de Matilde”, diz António Torrado. E tem razão. Muitos dos seus livros foram ilustrados por esta artista plástica e mesmo a obra que sairá em Novembro terá imagens criadas recentemente por Maria Keil, já com 95 anos. “Uma dupla fantástica.”

Também não se pode conhecer o trabalho de Matilde sem se nomear a sua primeira obra dita para crianças: O Livro da Tila, cantigas pequeninas, (Editorial, 1957).

A abrir, pode ler-se “Quadra sozinha: Meninos pobres, tão pobres

São tão pobres, que ao vê-los/ Meus olhos, que são de cobre/ Têm a luz das estrelas.” Tila era o nome por que a autora era tratada na infância, diminutivo que nem sempre lhe agradou, conta Fátima Ribeiro de Medeiros, professora e investigadora de Literatura para a Infância e Juventude, do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.

A coragem

Seguiu-se O Palhaço Verde, Portugália, 1962 (ainda está disponível). “Foi uma grande surpresa para a literatura”, considera António Torrado. “Estava-se num período em decrescendo da literatura para a infância. Já se tinha passado a fase das borboletas e passarinhos e não havia nada para substituir.”

É então que, com coragem, a autora escreve este livro: “A personagem é mais um arlequim do que um palhaço. Com ele, Matilde rompeu o estereótipo e nós fomos atrás. Mais ou menos…”

O rapaz em que Matilde se inspirou existiu mesmo, diz Fátima de Medeiros, que desenvolve pesquisa sobre esta escritora, alguma de grande profundidade: “Era um rapaz pobre que vendia moinhos de papel na praia.”

A professora realça a importância do contributo de Matilde para a literatura: “Estávamos numa fase de menorização da criança. Com o Estado Novo, não se podia ter ideias. A censura queria limitar as ideias dos escritores e conduzi-los por um determinado caminho. Mas, sobretudo na década de 1950, houve vários escritores que não seguiram a norma. Matilde foi um deles.”

A criatividade

A autora nunca se coibiu de abordar qualquer tema: “Morte, sofrimento, alegria, pobreza. Tratou-os como se fossem escritos para adultos. Sempre trazendo consigo o sentimento poético (mesmo sem ser na poesia propriamente dita) e os sentimentos universais e intemporais. Como os clássicos.” Por isso, conclui, “é uma escritora incontornável”. E não está, de forma alguma, ultrapassada.

Para Leonor Riscado, professora na Escola Superior de Educação de Coimbra, “a obra literária para a infância e a juventude que Matilde criou reflecte não só imenso amor pelos seus destinatários preferenciais, mas também uma imaginação viva e inesgotável no que à capacidade de efabulação e à criatividade diz respeito. Matilde é a fonte cristalina de onde brotaram obras incontornáveis que marcaram a literatura do século XX, quer na poesia, quer no conto” (palavras retiradas da comunicação “Matilde Rosa Araújo — A voz nua de uma fada verde”, Viseu, 2008).

Mais obras importantes: O Cantar da Tila, Atlântida, 1967. O Sol e o Menino dos Pés Frios, Ática, 1972 (disponível). As Botas de Meu Pai, Livros Horizonte, 1977. As Fadas Verdes, Civilização, 1994 (disponível).

António Torrado fala de O Sol e o Menino dos Pés Frios como uma das obras “onde se revela a sua marca neo-realista”, mas ressalva que “Matilde não era uma escritora neo-realista como o foram Alves Redol ou Sidónio Muralha”.

Há várias obras editadas mais recentemente (todas disponíveis), embora algumas sejam reedições de textos antigos com novas ilustrações e outras contenham histórias retiradas de obras anteriores: Anjos de Pijama (Texto Editores, 2005). A Saquinha da Flor (Gailivro, 2005). A Boneca Palmira (Edições Eterogémeas, 2007). História de Uma Flor (Caminho, 2008). Lucilina e Antenor (Calendário de Letras, 2008).

Se Fátima Ribeiro de Medeiros conheceu o “palhaço verde”, António Torrado conheceu “a boneca Palmira”, que serviu de inspiração à edição do livro com esse nome, ilustrado por Gémeo Luís. “Era preciso pedir licença (e às vezes desculpa) às bonecas para nos sentarmos nos sofás da casa da Matilde. E muitas vezes ficava-se com elas ao colo. Foi assim que conheci a boneca Palmira”, conta o escritor, entre divertido e comovido.

Para falar das obras “não para crianças”, de recolha, ensaio, contos e poesia, damos voz à professora Leonor Riscado. “As suas antologias de textos de autores portugueses, As Crianças, Todas as Crianças (Livros Horizonte, 1979) e A Infância Lembrada (Livros Horizonte, 1986), constituem tributos a uma infância que se pretende libertada. No campo do ensaio, A Estrada Fascinante (Livros Horizonte, 1988) é o exemplo da ‘inteligência do coração’ da sua autora e representa uma lúcida reflexão sobre a literatura para a infância, pois Matilde Rosa Araújo sempre acreditou que ser criança é uma promessa e, portanto, ninguém tem o direito de ‘infantilizar a criança’.”

O livro de contos Praia Nova (Editora Lux, 1962) “mostra uma capacidade única de penetrar no íntimo das personagens”. Da obra de poemas Voz Nua (Livros Horizonte, 1986) diz-nos: “Carregado de humanidade e simbolismo, vai, nos seus versos, ‘tecendo o xaile de Sol’. E, através do olhar e da voz inaugurais da sua autora, vamos aprender a ‘Saber ler na vida — folhear honestamente a vida

Apaixonadamente a vida/ Nas arcas da noite, nas arenas do dia:/ Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes/ Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto’.”

A voz

Leonor Riscado fala assim do convívio próximo com Matilde Rosa Araújo: “Era uma senhora que falava baixinho. E tudo o que dizia era muito importante. Uma figura apagada mas que nos deixava suspensos e presos pelo olhar e pela voz.”

Um dos traços a que mais leitores, admiradores e amigos se referiram nas mensagens de despedida nos dias que se seguiram ao da sua morte (6 de Julho) foi precisamente a voz de Matilde. António Torrado conta-nos uma história antiga a propósito do efeito das palavras ditas pela escritora.

“Eu e Alice Vieira fomos chamados para fazer parte de um júri de poemas juvenis. Éramos nós os dois, a Matilde e o Mário Castrim. Íamos seleccionando o que chegava ao jornal e fazíamos encontros de leitura em voz alta para escolhermos em conjunto. Sempre que era ela a ler os poemas, iam logo para o monte dos escolhidos.”

Até que António Torrado, “na altura um jovem atrevido”, pediu para ler um daqueles poemas após a leitura de Matilde: “Aquilo não valia nada. Mas só depois de o escutarem lido por mim se apercebiam disso. Ela tinha aquela voz de harpejo e de violino ao mesmo tempo, e lia de uma tal maneira que os poemas eram todos aprovados.”

O autor é um dos que partilham do sentimento de orfandade deixado pela morte de Matilde Rosa Araújo — que não chegou a ter filhos, mas um colo imenso. “Devo-lhe a primeira referência crítica ao meu trabalho, há mais de 40 anos. Foi graças a ela que virei para esta área.” Acredita no entanto que a “voz sobrevive à pessoa”. Assim continuem a abrir-se os livros para a escutar.

Excerto do inédito de Matilde Rosa Araújo que será publicado em Novembro

Dezembro. Mês de frio, muito frio. Dias de chuva e de gelo. Florinda vinha da escola, atravessava o Jardim da Estrela. Jardim tão bonito, mesmo no Inverno!

O cachecol enrolado em volta do pescoço, tapando-lhe um poucochinho o nariz vermelho de frio.

As botas de cabedal (castanho como o tronco das árvores) protegian os seus pés de menina. Menina de oito anos, que já sabia ler. E bem. Qua alegria, quando começou a juntar as letras! Ler. Escutar as letras no papel do caderno, do livro, na lousa do quadro.

Conversar com elas.

Ler alto ou em silêncio.

Afagou a malinha da escola, que trazia presa ao ombro.

Ah! Mas que frio!

Mas não era para estranhar. Em Dezembro é sempre assim. E o Sol, nos dias em que brilha, é como se uma mão amiga nos afagasse.

Florinda gostava de atravessar o jardim. Às vezes vinha acompanhada por colegas da escola, outras vezes eles tomavam outro caminho.

- Psht... menina!

Olhou para o banco de jardim, de onde vinha o chamamento. Nele estava sentado um Pai Natal, vestido com um balandrau vermelho, a mão direita a segurar uma dezena de balões. Um verdadeiro arco-íris. Balões de todas as cores, agitados com o ventinho da tarde.

Ah! O Pai Natal! O Natal está à porta, embora ainda tenha escola...

Florinda, timidamente, aproximou-se do banco. Lembrou-se dos conselhos da avó, sempre preocupada:

- Florinda, nunca fales com desconhecidos. Ouviste?

Em silêncio, continuava a ouvir a avó. Não fales com desconhecidos...

- Queres comprar-me um balão, menina?

Florinda aproximou-se mais. Ficou parada, hesitante, sem saber o que dizer.

- Sabe, menina? - confidenciou o Pai Natal. - Estou cansado. Muito cansado. Sentei-me aqui porque já me doíam muito os pés. Não se quer sentar um bocadinho?

Florinda hesitou. Embora Pai Natal, sempre era um desconhecido. (...)