Sofrem para crescer 30 centímetros, mas ganham uns palmos de sonhos

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Maria da Ascensão Fraga, 44 anos e 1,12, incentivou o filho a fazer o tratamento, porque lamenta que a ela nunca ninguém lhe tenha falado sequer de nanismo, quanto mais de alongamentos

O mundo não foi concebido a pensar neles. Não chegam a balcões, caixas de multibanco, muitas vezes nem chegam a arranjar trabalho. Mas, se à volta deles pouco ou nada muda, então eles alongam-se. Histórias de pessoas com nanismo acondroplásico, anões que correm uma maratona para medir pelo menos cerca de metro e meio. Por Maria João Lopes (texto) e Adriano Miranda (fotografia)

Anda sempre com um banco atrás. Para cozinhar e chegar ao fogão, põe-se em cima dele. Para lavar as mãos e a cara no lavatório, lá está ele. Para acender a luz, às vezes também usa a vassoura. Mas o "banquinho" é que lhe vale num mundo que foi pensado para quem mede pelo menos um metro e meio. "Anda sempre atrás de mim", diz Maria da Ascenção Fraga que, com 44 anos, mede 1,12.

Tem nanismo acondroplásico - o mais comum, aquele que afecta a maior parte dos anões que, em Portugal, deverão ser 400. Enfrentam um quotidiano de dificuldades: chegar a interruptores, à caixa multibanco, usar instalações sanitárias, serem vistos quando chegam a um balcão, e em alguns casos até fazerem a higiene íntima, dificultada quando os braços são demasiado curtos.

Se uns se adaptam e habituam, dia após dia, a vencer obstáculos, outros, sobretudo os mais novos, optam por fazer alongamentos: um tratamento médico duro que lhes permite crescer cerca de 30 centímetros. Uma autêntica "maratona", como lhe chama um dos especialistas na área, Jorge Seabra, director do Serviço de Ortopedia do Hospital Pediátrico de Coimbra.

Ali, o processo inicia-se, em regra, a partir dos 14 anos, não só por o crescimento já estar concluído, mas por haver nessa idade "mais maturidade e resistência psicológica", defende Jorge Seabra. Há outros hospitais em que também se faz o tratamento, como o Garcia de Orta, em Almada, e o Dona Estefânia, em Lisboa.

Jorge Seabra, que fez o primeiro alongamento há 30 anos, explica que o processo, que começa com uma intervenção cirúrgica em que se provoca uma fractura no osso, prolonga-se, em média, cerca de três anos. Mas pode ser mais. Através de estruturas metálicas fixadas no osso, para este não quebrar, os alongamentos vão sendo feitos - cerca de um milímetro por dia, embora para o osso ganhar resistência seja necessário usar o fixador mais tempo (por cada centímetro de osso consistente é necessário cerca de um mês de utilização do aparelho). Na zona fracturada, nasce osso regenerado.

"É uma prova de resistência e é preciso que as pessoas tenham noção disso. Exige que, em casa, o doente faça pensos diários durante muitos e muitos meses. Não é difícil de executar, é psicologicamente desgastante. Mas os resultados são muito compensadores", diz.

Nem todos os anões se podem submeter a este tratamento. Cada caso é um caso, mas é no nanismo acondroplásico que se podem obter os melhores resultados. "Digamos que é como um acordeão que é preciso desembrulhar. Os ossos não cresceram, mas os músculos, vasos e nervos estão geneticamente programados para terem um comprimento normal, ficando, digamos, enrolados sobre si mesmos. O que o tratamento faz nestes casos é restabelecer o comprimento do osso", explica o especialista, sem esconder que há sempre alguma perda: na flexibilidade, na mobilidade, nas cicatrizes que deixa. Mas os ganhos podem ser maiores.

Afectos

José Pedro Fraga, o filho de Maria da Ascenção, já adivinha essas mudanças. Sonha com elas. Ainda vai a meio da corrida que tanto fôlego lhe exige. Tem 17 anos, media 1,13 quando se submeteu à operação que marca o arranque do tratamento. Foi a 27 de Junho de 2008, em Coimbra. Hoje já mede 1,35, mas ainda lhe falta, depois de um ou dois anos de repouso, alongar as tíbias - são pelo menos mais 10 centímetros. Nunca namorou, mas daqui a três anos, quando tudo chegar ao fim, quem sabe?

As relações afectivas e a integração social - ou a ausência delas - são, para muitas destas pessoas mais marcantes e penosas do que as questões funcionais que também lhes dificultam a vida. "Gostar de um rapaz é o maior desgosto da adolescência. É triste aproximarmo-nos de um rapaz que tenha uma altura normal, uma pessoa sente-se rejeitada à partida, acha que dificilmente vai ser correspondida", conta Juliana Costa, hoje com 25 anos e mais 31 centímetros de altura. Mede 1,51.

O psiquiatra Daniel Sampaio reconhece que "o corpo e a imagem corporal são centrais na adolescência": "Num estudo do Instituto Português da Juventude de 2003, 23 por cento das raparigas e 14 por cento dos rapazes portugueses adolescentes diziam não gostar do corpo, queriam mudá-lo, não estavam satisfeitos com ele. Um anão adolescente compara-se com os jovens da sua idade e sente-se diferente, é natural que a sua auto-estima seja afectada por isso", diz por e-mail ao P2.

Para Jorge Seabra os alongamentos trazem "uma libertação enorme" para os anões: "Para além de conseguirem assegurar as tarefas quotidianas, estas pessoas passam a ser olhadas como merecem, deixando de ser infantilizadas, o que favorece a sua auto-estima e inserção social, passando também a viver a sexualidade de uma outra maneira, o que psicologicamente tem uma importância extraordinária", explica o ortopedista.

Helena Galhofas, de Bencatel, Vila Viçosa, distrito de Évora, tem 25 anos e já terminou o tratamento há algum tempo. Começou aos 14, em Coimbra, cresceu 30 centímetros ao longo de quatro anos (com um de intervalo, a meio do processo). Actualmente a fazer um estágio profissional de técnica de acção educativa, num jardim-de-infância, não tem dúvidas: "Agora chego onde não chegava, sou mais independente. Conduzo um carro normal. Faço tudo sozinha, chego à bancada da minha cozinha, a qualquer balcão, subo para cima da cama", enumera.

Por todas estas razões é que Maria da Ascenção Fraga sempre quis que o filho fizesse o tratamento: "Fui bastante criticada porque o meu filho pulava, saltava e eu cortei-lhe a liberdade. Mas sempre achei que ele devia fazer e, por mim, fazia também aos braços. Mas cada dia sua história. Se eu estiver sempre a dizer "Tens que fazer, tens que fazer", causo-lhe stress", diz, lamentando que, quando ela era criança, ninguém lhe tivesse falado sequer de nanismo quanto mais de alongamentos.

Os pais nunca lhe disseram nada, ela nunca perguntou. Era assunto tabu. Percebeu sozinha e em silêncio, por volta dos 12 anos, que não ia crescer mais. "Via os meus amigos todos altos e eu ficava sempre naquela situação. Não tive ninguém que me dissesse "Tu és anã", como eu disse ao meu filho. O meu irmão era normal, os meus pais, que já eram duma certa idade, também. Nunca falaram comigo, sabe como é Trás-os-Montes, é um mundo pequeno", justifica. Vive onde sempre viveu, em Vilas Boas, concelho de Vila Flor, Bragança. É doméstica, já trabalhou "no campo".

O filho, José Pedro Fraga, vai para o 10º ano em Setembro. Escolheu o curso profissional de Energias Renováveis. Desde que os alongamentos começaram, faltou algumas vezes à escola. Depois da operação, durante seis meses, ia todos os meses de Vilas Boas a Coimbra, num carro do hospital de Mirandela. Mas agora já chega aos balcões. "No outro dia, fui fazer um exame ao hospital e, no balcão, era eu que transmitia as respostas à minha mãe lá para baixo", conta José Pedro.

Já Vítor Monteiro, de 44 anos, que também nasceu com nanismo acondroplásico e mede 1,25, não faz questão que o filho, de nove, se submeta ao processo. Pelo contrário: "Não sei qual vai ser a decisão do Miguel. Está perfeitamente integrado, corre, joga futebol, salta, não estou a vê-lo trocar a brincadeira por uns centímetros de alongamentos... Sinceramente, acho que não vale a pena o sofrimento, só se ele quiser mesmo", diz o técnico oficial de contas, que vive em Moimenta de Maceira Dão, Mangualde.

Admite que há preconceito, que é preciso lutar por uma "melhor integração social e profissional", mas ele sempre se conseguiu afirmar. Foi casado - com uma mulher sem nanismo -, teve gémeos: a Inês saiu à mãe, o Miguel ao pai. "Quando soubemos que o Miguel ia ter nanismo, houve algum arrefecer, mas não foi o fim do mundo. Sabíamos que havia 50 por cento de probabilidade de acontecer. É mais complicado quando o casal não está à espera. Isto é uma mutação genética, pode acontecer...", diz.

Foi o caso de Madalena Correia, 51 anos, mãe de Juliana Costa. Na família ninguém tem nanismo, foi inesperado: "No dia do parto, disseram-me logo. Depois começámos a andar de médico em médico. Acabámos em Coimbra", conta.

Pequenos Lusitanos

Lutar contra a falta de informação foi uma das razões que levou Vítor Monteiro, em conjunto com outras pessoas, a formar o grupo Pequenos Lusitanos. A futura associação, da qual ainda estão a redigir os estatutos, dirige-se a pessoas com nanismo e seus familiares e tem como objectivos, entre outros, acabar com algumas lacunas legais, como o facto de as pessoas com nanismo nem sempre verem reconhecidas as suas dificuldades, apesar de a doença ser considerada uma deficiência genética.

Vítor Monteiro, assim como Margarida Silva, também do grupo, entendem que a forma como a Tabela Nacional de Incapacidades está estruturada - sem que inclua directamente o nanismo - permite que as juntas médicas usem "critérios diferentes" em casos semelhantes. "Isto origina muitas injustiças", alerta Vítor Monteiro. "Nuns atestados, uns têm dificuldade comprovada de locomoção na via pública e na utilização de transportes públicos, e outros não. Quem tem ganha direito a isenção de imposto automóvel. Eu não tenho, por isso o meu carro tem o preço normal e eu ainda tenho que adaptá-lo", explica.

Laurinda Mota, 42 anos, é outro dos membros do grupo Pequenos Lusitanos. Mede 1,12 e é mãe de Sandra, que também nasceu com nanismo acondroplásico. Sempre soube que a filha, hoje com 12 anos, iria querer fazer os alongamentos. Aos quatro anos, fez um desenho claro para o psicólogo que a seguia e segue: no papel havia duas bonecas, uma pequena, que era a mãe, outra grande, era ela. Via-se alta.

Hoje, está a fazer o tratamento no Hospital Dona Estefânia. Quer ser actriz. Quando começou, aos 7 anos, media 99 centímetros. Já fez aos fémures, aos braços, e às tíbias, e já mede 1,28.

Sandra é seguida por Delfim Tavares, que aconselha, quando se decide avançar para o tratamento ósseo, alongamentos seriados durante o crescimento. O primeiro entre os seis e os 10 anos, depois aos 13, novamente entre os 14 e 15 anos e, finalmente, aos 16, optando ora por fixadores monolaterais, ora por circulares.

O ortopedista defende que a "deformidade do doente acondroplásico" tem "alterações rotacionais e desvios laterais que só com um dispositivo circular" é possível "corrigir em três dimensões em simultâneo".: "Para os primeiros alongamentos da coxa e perna utilizamos fixadores monolaterais, passando a usar na adolescência o circular. Nos braços utilizamos sempre o fixador monolateral."

Jorge Seabra tem uma opinião diferente: "Defendemos o uso de aparelhos monolaterais, uma estreita calha metálica que fica paralela ao membro, e não aparelhos circulares, que envolvem o membro a toda a volta, dificultando a execução do penso diário. Os fixadores monolaterais tornam o processo muito mais confortável, e a comodidade é decisiva, num processo tão longo que exige muita perseverança", diz, precisando que, a partir da década de 1990, só usam os fixadores circulares em casos pontuais.

Com sofrimento

Certo é que o tratamento custa, mas quem o fez não se arrepende. Juliana Costa, que vive em Lustosa, Lousada, com os irmãos e os pais - a mãe é costureira, o pai trabalha na construção civil - media 1,20 quando começou os alongamentos, há uma década.

Tinha 15 anos. Cresceu 31 centímetros em altura e confiança. "Faz muita diferença. Então na vida social, principalmente aqui, nas aldeias... As pessoas olham, criticam, há menos abertura. Mesmo na escola, sentia que as pessoas não aceitavam", diz. "Quando tinha aquela altura, magoava-me muito o olhar das pessoas. Têm pouca informação em relação a nós. Em muitas situações, quando tinha 10, 11 anos, senti que faziam pouco de mim...", lembra.

A vivência claustrofóbica nos sítios pequenos e a dificuldade em arranjar trabalho são queixas comuns. "Vivi muito tempo em meios pequenos, as pessoas são mais ignorantes, quando fui para Lisboa, foi melhor", desabafa Laurinda Mota, que sempre trabalhou, apesar da discriminação que diz existir. "Bateram-me muitas vezes com a porta. Por telefone diziam-me que sim, depois quando me viam, afinal, o lugar já estava ocupado", conta Laurinda Mota, hoje auxiliar de serviços gerais na Quinta Pedagógica dos Olivais.

Juliana Costa, que tirou os fixadores a 8 de Junho, acredita que, agora sim, vai arranjar um emprego. Também quer tirar a carta. São as recompensas para um esforço gigante. "As dores no fémur foram o que me custou mais, no início eram terríveis. As tíbias doem menos", recorda. Nunca pensou desistir, nem quando o pai, depois de ver o que a filha tinha passado com os fémures, já nem queria que fizesse às tíbias. O tratamento foi sendo feito, com fisioterapia e intervalos pelo meio. Agora quer fazer uma plástica para tirar as cicatrizes.

Também Helena Galhofas admite que "custou": "Foi muito doloroso, tinha que andar com ajuda, precisei muito de apoio. Tinha que dormir sempre na mesma posição, de barriga para cima, tinha que fazer o penso, limpar os orifícios todos os dias. Mas valeu muito a pena", garante. Só não alongou os braços. Tal como Juliana Costa, diz não sentir necessidade.

José Pedro ainda anda de muletas. O processo vai a meio, falta-lhe alongar as tíbias. Para a mãe, o pior do tratamento é "ser um tempo longo que custa a passar". Mas nada a demove. Diz que faz o penso ao filho, todos os dias, "com muito gosto".

Está sempre bem-disposta e, mesmo em situações que podiam ser embaraçosas, diverte-se. A "melhor" foi quando se dirigiu a uma esquadra da polícia para pedir que lhe tirassem uma multa. Chegou lá e, diante do balcão altíssimo, disse com a voz grave que a caracteriza: "Boa tarde." O polícia, do outro lado do balcão, levantou os olhos do jornal, e nada. Olhava para a direita, para esquerda, até olhou para cima para ver de onde vinha aquela voz. Só não olhou para baixo: "Não estou em cima, estou em baixo!", disse-lhe Maria da Ascenção Fraga. Mãe e filho riem-se que nem perdidos com a história da voz que parecia vinda do além.

A mesma atitude "positiva" tem Vítor Monteiro. Na família não há dramas. A filha, a Inês, já mede 1,29: "Ela brinca comigo, diz que já me passou. Agora, sou eu a esticar-me." Ri-se e conta mais uma: em Mangualde, no banco onde vai habitualmente, baixaram-lhe a caixa multibanco para ver se ele se "desenrascava". Mas depois foram as pessoas altas que se começaram a queixar que aquilo estava muito baixo e, então, toca a subir outra vez. Um dia, chegou lá e disse: "Então, como é? Isto cresce e eu não?" Solução: a caixa ficou num ponto intermédio entre o mundo dos altos e o dos baixos e Vítor Monteiro usa um lápis com borracha na ponta para chegar às teclas.

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