Noite nos AndesNoite nos Andes

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HUMBERTO LOPES

Este vento tem focinho e frieza de surazo. Sopra à solta do sul, do Inverno argentino, e lança as suas lâminas glaciares sobre o altiplano boliviano. Foi assim a semana toda, desde a travessia da planura salgada de Uyuni.

O vento álgido sibila em todos os cantos: nas paredes de barro da igreja de San Juan, na frígida Pampa de Chalviri, na fronteira chilena do vulcão Licancábur, na solidão do deserto do Siloli, no refúgio de Alota, no Valle de las Rocas, nos desfiladeiros, à volta dos géisers de Sol de Mañana, nas picadas de poeira ocre riscadas até à Montanha das Sete Luas, nas alturas dos picos vulcânicos do Ollague, do Uturuncu e de outros faróis de navegação no altiplano.

Na Laguna Colorada, a maior das lagoas dos Andes bolivianos, a luz esfuma-se no horizonte, expira lentamente para além do recorte escuro da cordilheira. O sangue do imenso paul transforma-se numa massa castanha, quase negra, imóvel, quase diluída no meio das trevas. Ao longo da margem, o caminho de retorno ao abrigo é feito aos tropeções, o corpo dobrado contra a fúria do vento, os pés a tactear o relevo enlameado de água e de baba de sais minerais. A quase cinco mil metros de altitude, a rarefacção de oxigénio obriga a disciplinar a respiração e o andamento. O mínimo esforço asfixia. Caminho tão devagar que o refúgio parece afastar-se, furtivo, no negrume. Para lá da curva da lagoa, objecto de Tântalo.

No abrigo, Juana prepara o jantar, uma refeição frugal à base de enlatados e de sopa de quínoa. Ainda me parece ouvi-la cantar, em surdina, a melopeia que encheu a jornada da tarde até ao abrigo, um poema do belíssimo cancioneiro de Matilde Casazola: "Yo no logro explicar / con que que cadenas me atas / con que hierba me cautivas / dulce tierra boliviana". Uma garrafa de brandy e as mantas de lã de alpaca do refúgio amparam a esperança de atalhar o frio da noite. Lá fora, o surazo não deixará de rosnar até ao amanhecer - uma toada teimosa de lâminas afiadas de gelo.

A etapa de amanhã, até à Laguna Verde, com o Chile e o povoado de São Pedro de Atacama do outro lado do Licancánbur, será cansativa. Juana, a cozinheira, e D. Pedro, o homem do volante, já dormem, enrodilhados dentro das mantas. O velho Chevrolet, estóico, impassível, aguenta, no exterior, as coreografias tumultuosas do surazo.

Alguém - Guy, Phillipe, Mathilde, Corinne, Julie? - alvitra o desafio de uma respiração nocturna do altiplano, lá fora.

Saímos do abrigo e, sob o límpido céu austral, esquecemo-nos depressa do surazo, das lâminas glaciares que voam desde a Antárctida. Enrolados nos cobertores de lã de alpaca, perscrutamos as estrelas por cima de nós. Aos olhos dos forasteiros, o hemisfério sul é um mapa estranho, uma cartografia de constelações por decifrar. Centauro, Corona Australis, Hidra, Serpente, Fénix, a Ave-do-Paraíso. E Orion, morto no mar por uma flecha de Artemísia, a deusa grega da Lua, e por ela colocado no firmamento.

Durante quase uma hora, o surazo não é mais do que uma brisa de passagem. Durante quase uma hora, ignoramos as lâminas de vento do sul austral, a náusea semeada pelo frio. Abaixo da linha do horizonte há uma treva enorme. A massa de sangue escuro da laguna não espelha a luz das estrelas; se se enovelasse em torvelinhos de pesadelo, seria como o oceano sombrio de memórias da personagem do Solaris, de Tarkovsky.

A jornada por vir será longa, cansativa. Amanhã, depois do sono. Depois da Laguna Colorada, depois das constelações, depois da Serpente, da Fénix, da Ave-do-Paraíso. Agora, a cinco mil metros acima do nível do mar, Julie guia-me no labirinto austral, estendendo o braço para o céu, a Via Láctea tão perto que quase a tocamos com as mãos: "Regarde, elle est là, la Croix du Sud!".

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