Torne-se perito

Artistas independentes são quem mais vai sofrer com os cortes

O teatro e a dança. O cinema. Gabriela Canavilhas reconhece que "o cenário é dramático" em alguns sectores. Mas diz que não cairá nenhum projecto

Na primeira entrevista desde a promulgação do decreto de execução orçamental, com as medidas de contenção do Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC), a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, há seis meses no cargo, traça o retrato de um ministério com milhares de trabalhadores independentes, muitos intermitentes, sem apoios sociais. São, precisamente, os que mais vão sofrer com a crise e os cortes previstos, reconhece.

À chegada, anunciou um orçamento que, nas suas palavras, faria a diferença. Antes do PEC recebeu 236,5 milhões, o segundo orçamento mais baixo em cinco anos e que agora terá ainda cortes importantes. Como ministra, e como artista, sente que está a defraudar?

Não. Falei sempre de uma discriminação positiva por parte do primeiro-ministro e do ministro das Finanças, o que aconteceu. Tivemos um aumento de mais de 13,5 por cento. Só no [orçamento do Ministério] da Cultura. Isto para além de parcerias com outros ministérios. O conjunto atira para 300 milhões de euros. O aumento foi real. Relativamente ao fazer a diferença, reafirmo: pequeno, médio ou grande, fazem diferença as orientações estratégicas. O orçamento que temos vai fazer a diferença.

Seja como for, com os cortes, o MC perde 13 milhões. Como se vai distribuir essa perda? No fundo, a pergunta é: quem vai sofrer mais?

Claramente, vamos ter um período muito difícil sobretudo para os [artistas] independentes. Vamos ver se conseguimos não reduzir em 20 por cento a actividade dos independentes, tentar manter um mínimo de dinamismo até sobrevivermos a este ano.

Foi a primeira medida do PEC: os cortes. Já o decreto de execução orçamental diz que em 2010 o Estado não contribui para aquisição de obras de arte. Estamos a falar das obrigações do Estado nas parcerias público-privado, por exemplo com Serralves e o Museu Berardo?

Durante este ano não vai ser possível fazer essa contribuição.

Em relação ao Museu Berardo, isso permite ao coleccionador deixar o museu com a sua colecção, se quiser.

São 500 mil euros para aquisições de obras. Não inviabiliza postos de trabalho nem [leva ao] congelamento de nenhuma actividade. É apenas suspender o enriquecimento do acervo. Não me parece dramático. Do meu ponto de vista, aliás, é a retenção que causa menos problemas.

Seja como for, é uma quebra do acordo.

Estou certíssima de que o comendador Berardo está solidário com a necessidade de contenção.

Já falou com ele?

Já. Ainda hoje [anteontem].

Entre os sacrifícios, há projectos do MC que vão cair?

Não. Todos estão encaminhados.

Um caso como o do Museu Nacional de Arqueologia...

As verbas para os estudos que estão a ser feitos não serão afectadas a ponto de não podermos prosseguir.

E quanto aos projectos em finalização? Por exemplo, o Museu do Parque do Côa cuja inauguração esteve prevista para o final de Junho?

Foi adiada um mês. Está prevista para Julho. E também não será afectado. Vamos fazer um acordo tripartido com o Ambiente e o Turismo. A parte de cabe ao MC é um milhão e temos esse milhão.

De repente, dir-se-ia que o cenário nem é dramático.

O cenário é dramático para a DGA [Direcção-Geral das Artes]. É preocupante e queremos torná-lo menos preocupante. Também o cinema vai ser uma área afectada. Estamos a trabalhar afincadamente na revisão da lei do cinema para alargar a base contributiva. Mas, em 2010, o Instituto do Cinema (ICA) também vai ser sujeito a uma retenção de 20 por cento das receitas, nomeadamente receitas de publicidade. A nossa esperança é que a maior parte dos contratos em curso prevejam cumprimento para 2011, esperando que 2011 não tenha estes problemas.

Não há garantias de que seja diferente.

É verdade. Mas é fundamental que em 2010 se cumpram as metas do défice. Se se cumprirem, teremos uma visão mais optimista de 2011.

Ainda antes do PEC, tinha dito considerar que o financiamento ao cinema assente na cobrança de taxas de publicidade às televisões "estava esgotado" e que é "ilusória a hipótese de o Estado alocar verbas significativas no ICA". Vai propor outro modelo de financiamento ao sector?

Consta da revisão da lei do cinema em que estamos a trabalhar. Parece-nos mais interessante avançar para uma participação sobre o volume de negócios das empresas do que sobre as taxas de publicidade. Mas é uma matéria sobre a qual gostaria de dar conhecimento público apenas quando estiver consolidada. Antes do final do ano. Setembro, Outubro.

Nesta área, há também o caso da Cinemateca-Porto. Prometeu ainstalação desse pólo, mas a nova directora da Cinemateca já disse que, para ela, não é uma prioridade. Qual dessas visões antagónicas vai vingar?

Uma coisa é a Maria João Seixas dizer que não considera ser a coisa mais importante a fazer. Outra coisa, que não fez, é comunicar que não irá dar seguimento às prioridades do ministério. Expressou um sentimento íntimo; tem todo o direito. Mas está a envidar todos os esforços para a nossa determinação ser efectivada.

Portanto, a Cinemateca-Porto é para avançar...

Claramente.

Ainda este ano?

Este é um ano atípico, em termos de prazos. Todo o processo de aprovação do orçamento entrou por 2010; os procedimentos estão todos atrasados. Mas no caso da Cinemateca estão a ter seguimento.

Mas há iniciativas paradas. Por exemplo, o cheque-obra, que seria uma forma de canalizar dinheiro para o património, uma pasta pesada do MC...

Está parado na secretária de um administrativo, um impasse que não tem significado.

Um projecto de financiamento parado por um impasse administrativo. A gestão continua a ser um peso terrível no MC...

Em toda a administração pública. A lentidão é o preço a pagar para garantir a transparência, serve para proteger o cidadão.

Não seria possível agilizar um ministério pequeno como o da Cultura?

Estamos sujeitos às mesmas regras em tudo o que diz respeito à máquina burocrática do Estado. Concursos, por exemplo.

Precisamente. Quase todos os seus antecessores mexeram nos concursos da DGA em anunciadas tentativas de agilização.

O que está em vigor é o mais complicado. Iniciei o meu mandato afirmando-me por dar tempo à legislação de comprovar a sua eficácia por constatar que as constantes alterações causam perturbação no sector e na forma como os agentes se relacionam com o ministério e a DGA. Hoje estou certa de que vai ser preciso mexer novamente nas regras da DGA. Para tornar o sistema mais fácil e também porque penso que há melhorias substanciais que podem ser implementadas.

Por exemplo?

Temos que criar condições no nosso país para os artistas e agentes culturais terem mercado. Isto fará com que um maior número de agentes esteja na actividade como contratado e não como dependente de subsídios. [Temos que] conseguir criar uma teia de estruturas com capacidade financeira, pólos de economia cultural. [Assim] criamos melhores condições, estabilidade e dignidade para os agentes. Diminuiria também muito o espectro dos subsídios. É uma aposta que quero muito desenvolver e que vai assentar na rede de teatros e cineteatros. Muda muito o paradigma de dependência de concursos da esmagadora maioria dos nossos agentes. Por outro lado, parece-me que um grande número desses agentes independentes, quando já provaram a sua qualidade, a sua capacidade de se prolongar no tempo, de criar emprego, deviam ter redes de ligação directa com o ministério, protocolos. Não me parece que faça sentido continuarem a ir a concurso. E libertar a carga dos concursos permitir-nos-ia incentivar mais novas obras, novos criadores.

Concursos e, portanto, ainda a DGA: há pouco tempo o director, Jorge Barreto Xavier, explicou estar a funcionar "com os mínimos". Perante os cortes, o que se pode esperar desta direcção-geral?

Tem que perguntar ao Jorge Barreto. Neste momento, temos que trabalhar com o que temos. Se calhar é uma oportunidade de descobrir que é possível fazer muito mais do que se pensa.

Fazer mais com menos?

Não foi o que eu disse. Disse que é uma boa oportunidade de perceber que, se calhar, podemos fazer mais com o que temos.

Parece, apesar de tudo, extraordinariamente optimista.

Não ganhamos nada com derrotismos e miserabilismos. E, sobretudo, olhando para o que resulta destes cortes pode ver-se que não há um ambiente catastrófico no MC. Vamos conseguir chegar ao fim do ano com as nossas estratégias apontadas para o futuro.

É uma quase regra no MC a tentação de criar obra ou uma bandeira. A língua, o património...

Não tenho tentações nenhumas.

O que é que isso quer dizer?

Não entro nas coisas por tentação, mas por análise racional, lógica, e por entusiasmo, por paixão. Portanto, estamos a lançar projectos com estratégia de futuro. Os períodos de crise têm esta vantagem: estimular a nossa criatividade e lançar bases para o futuro.

Haveria uma linha abaixo da qual traçaria o seu limite?

Em termos orçamentais? Claro. Há sempre limites.

Qual seria o seu?

Não diria, mesmo que soubesse. Mas temos que sentir que temos uma posição de respeitabilidade e dignidade no quadro do Governo e o primeiro-ministro tem tido sempre perante a Cultura uma posição de discriminação positiva.

Nem sempre. No fim do primeiro mandato reconheceu não ter dado a atenção devida ao sector.

Neste segundo mandato, sempre.

Se estivesse no terreno apenas como artista, neste momento, qual seria a sua prioridade? Como olharia para a sua tutela, a DGA, esperando ser apoiada?

Fui independente durante 20 anos e nunca fiz um pedido de subsídio. Sabe porquê? Porque era contratada. E é isto que eu queria que no futuro os artistas tivessem: contratos, em vez de subsídios.

Sugerir correcção