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A Tobis na encruzilhada do cinema português

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Estúdios da Tobis no Lumiar, em Lisboa: uma história de quase 80 anos NUNO OLIVEIRA

A crise na Tobis é uma notícia recorrente há anos. O estúdio mais importante na história do cinema português está à beira da falência

O diagnóstico parece não suscitar dúvidas a ninguém: a Tobis, empresa com quase 80 anos de história na fabricação de cinema em Portugal, está a viver um dos momentos mais críticos da sua existência, praticamente à beira da falência e com um futuro bastante incerto.

José Pedro Ribeiro, presidente do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), accionista maioritário (com 96,48 por cento do capital) da empresa que, após o 25 de Abril de 1974, passou para a posse do Estado, não ilude o estado das coisas: "A situação económica da Tobis é extremamente delicada", diz, respondendo ao PÚBLICO por correio electrónico. E acrescenta que essa gravidade "é acentuada pelos efeitos da actual con- juntura económica e financeira, e também pela evolução tecnológica" do cinema e do audiovisual, referindo-se à progressiva "transição da película para o digital".

Hugo Leitão, técnico de som e representante sindical dos trabalhadores da empresa (são actualmente 66, além dos três administradores, a maior parte dos quais com mais de 25 anos de casa), confirma o quadro de crise, que originou já este ano situações de atraso nos salários, e calcula que o passivo da Tobis, no final do ano, pode atingir os cinco milhões de euros.

Sem confirmar este montante, o presidente do ICA revela que, no ano passado, o instituto foi obrigado a "realizar um suprimento de um milhão de euros" para o equilíbrio das contas e que, já em 2010, teve que entrar com mais 166 mil euros para garantir os salários.

É neste quadro que ganha especial importância a assembleia geral da Tobis agendada para 28 de Junho - depois de uma reunião realizada em Março, que não foi conclusiva -, onde poderá ser decidido o futuro da empresa. A própria ministra da Cultura expressou já a sua preocupação perante a crise do estúdio-laboratório, tendo-o inclusivamente associado a outras questões relativas ao cinema português, como o FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual) e o próprio modelo de subsídios à produção cinematográfica.

José Pedro Ribeiro diz que o ICA solicitou já no final de 2009 à administração um plano de reestruturação da empresa. Mas não avança nenhuma medida concreta, a não ser que "é intenção do Ministério da Cultura assegurar a manutenção de serviços que relevam para a preservação e salvaguarda do património cinematográfico português".

Como sair da crise?

Expressão vaga, na qual podem caber vários cenários: um programa de saneamento financeiro, que pode passar pela reconversão de serviços, mas também pela dispensa de pessoal; a venda de activos imobiliários (para além da propriedade na Alameda das Linhas de Torres, ao Lumiar, em Lisboa, a empresa detém terrenos em Queluz, Sintra); a privatização, total ou parcial; ou, nas palavras de José Pedro Ribeiro, a simples "procura de um parceiro privado".

A presidente da administração da empresa, Fátima Vinagre, em resposta ao PÚBLICO também por correio electrónico, limitou-se a esclarecer que "a alienação de património não é nem nunca foi, para a Tobis, uma forma de viabilização". Em contrapartida, defende "um saneamento fi- nanceiro" que possa "alavancar a via- bilização económica através de investimentos criteriosos que gerem negócio de rápido retorno".

Hugo Leitão diz que os trabalhadores olham para estes cenários com grande apreensão. Mesmo se gostaram de ser recebidos pela ministra da Cultura, em meados de Maio, e viram nela alguém "preocupado e com consciência da gravidade da situação".

Em carta então dirigida a Gabriela Canavilhas, os trabalhadores da Tobis registaram como principais problemas da empresa a contínua degradação das condições de funcionamento, a irregularidade no pagamento dos salários, a queda acentuada no volume de trabalho e a ameaça de perda dos seus empregos. Lamentam também que alguns dos "mais crónicos devedores à empresa" sejam seus accionistas, sem que o ICA tenha intervindo sobre a situação.

Depois do encontro com a ministra da Cultura, a delegação sindical da Tobis tem vindo a reunir-se com os partidos políticos com assento na Assembleia da República, tentando sensibilizá-los para o problema.

Digital substituiu a película

Como é que a Tobis chegou a este estado de coisas? O desenvolvimento tecnológico na indústria do cinema, que não se compadece com máquinas pesadas como é o laboratório português, e, nomeadamente, a substituição da película pela gravação e difusão digital dos filmes constituem a causa mais evidente.

"No início dos anos 90, revelámos um milhão de metros de película; este ano, vamos apenas em 50 mil metros", diz Hugo Leitão.

António da Cunha Telles, produtor, realizador e ex-administrador da Tobis em diferentes momentos da sua história, é actualmente o maior dos seus pequenos accionistas. Também ele admite a evidência: "Uma cópia de um filme em película custa entre mil e dois mil euros, uma cópia digital custa 50 euros...".

O realizador José Fonseca e Costa, que foi presidente da Tobis na década de 90, culpa a ausência de estratégia manifestada, desde a sua saída em 1996, pelos administradores e pelos ministros da Cultura que os escolheram. "O ICA tem feito eleger para a Tobis ou protegidos políticos ou burocratas." Nunca houve por parte desses responsáveis, acusa o realizador de Cinco Dias Cinco Noites, "qualquer projecto de desenvolvimento" para a empresa.

Quando presidiu à Tobis, Fonseca e Costa propôs a criação de uma Cidade do Cinema, dotada de estúdios, equipamentos, instalações técnicas, laboratório e um parque de material que servissem os produtores não só portugueses como os europeus e americanos, "também em suporte digital". Lamenta que esse projecto não tenha podido avançar.

É mais barato ir a Berlim

Só em 2004 é que a Tobis recentrou a sua estratégia com a criação de novas áreas operacionais, nomeadamente na do digital, uma decisão coincidente com a vitória no concurso para a recuperação do arquivo da RTP. Mas, terminada essa tarefa que durou três anos, voltaram a minguar as encomendas, além de que o laboratório não consegue apresentar preços concorrenciais com as pequenas novas empresas que apostam na tecnologia digital, tanto cá como lá fora.

Rodrigo Areias, jovem realizador e produtor fixado em Guimarães, diz que lhe fica "bastante mais barato" ir revelar e pós-produzir os seus filmes a Berlim. "Até na viagem: é mais barato ir a Berlim, pela EasyJet, do que ir a Lisboa." "A Tobis está desajustada do tempo actual. E não vejo solução para isso", diz Areias.

António da Cunha Telles vê como alternativa a proposta que levou à última assembleia geral da empresa: "Aproveitar a experiência e a capacidade instalada no laboratório para apostar ainda maioritariamente na película". Mas para isso diz que "é preciso ir buscar um director co- mercial que conheça o mercado mundial e que vá conquistar os produtores que continuam a apostar na película".

Já o produtor Tino Navarro, que tem feito questão de continuar a utilizar os serviços do laboratório sempre que produz em Portugal, mas que os considera cada vez mais caros e nada concorrenciais, não vê que a aposta na película possa ser a saída. E também não lhe parece "razoável" que "um laboratório de imagem e som seja mantido sob tutela do Estado".

José Fonseca e Costa lembra que, "sem a Tobis, não teria havido cinema português, nem haverá se a matarem". A empresa "pode ser rentável, assim seja administrada por quem perceba da poda e tutelada por quem queira pôr ordem na desordem em que tem vindo a definhar o nosso cinema", diz o realizador.

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