Às vezes fazemos as pazes com a leitura

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O Pedro cunha

Leitores "zangados" com os livros e escritores dedicados a fazê-los percorrer o caminho da reconciliação. Foi assim no último fim-de-semana de Maio, em Lisboa e no Porto, para mais uma edição da Leitura Furiosa. Lisboa e Porto, Kinshasa e Amiens escreveram em uníssono e leram furiosamente. Por Raquel Ribeiro

"O título é muito importante", diz Diana, de 17 anos, estudante da Escola Secundária Gil Vicente, em Lisboa. Muitas vezes, "compro um livro pelo título". Aí está uma boa discussão: o escritor Mário de Carvalho, consensualmente exímio em títulos, sugere a palavra "seis", porque, ao todo, eles são seis - o escritor e cinco estudantes da Gil Vicente (Bruno, Tiago, Diana, de 17, Inês, de 16, e João, de 13) que se uniram na véspera nessa mesma escola onde, há 50 anos, o Mário de Carvalho foi aluno.

O escritor também gosta da palavra "memórias", talvez porque as suas tenham sido evocadas enquanto passeava, numa tarde quente sem brisa, pelos pavilhões "dramaticamente diferentes" do seu tempo. Este passeio veio "sobrepor-se às minhas memórias de espaços ocupados por jovens fardados de verde, em formatura, braço alçado", conta Mário de Carvalho.

Tiago sugere, então: "Seis memórias do presente e do passado." O escritor contrapõe: "Mas vocês não têm memórias, eu é que tenho." Bruno hesita, mas acaba por lançar a palavra "espelhos", porque "a escola tem muitos espelhos". Não são espelhos, "são vidros", diz Diana. Mesmo assim, Bruno insiste: "Espelhos de memórias." E Mário de Carvalho gosta "do jogo de espelhos que poderia reflectir a ideia de luz, estava muito sol ontem, uma brancura quase asséptica. Mas deixamos de lado os seis?" Diana não concorda, porque gosta "da ideia dos seis". Para trás e para a frente, chegam a um consenso: Seis Memórias do Antes e Depois.

Este era um dos grupos de leitores "zangados" com a leitura e de escritores dedicados a fazê-los percorrer os caminhos do reencontro com os livros que, no último fim-de-semana de Maio, se reuniram na Casa da Achada, em Lisboa, para mais uma edição da Leitura Furiosa. A Casa da Achada é a sede do Centro Mário Dionísio, dinamizada pela filha do escritor (e também escritora), Eduarda Dionísio, na encosta, a caminho do Castelo de São Jorge.

Apesar de só ter chegado a Lisboa em 2000, a Leitura Furiosa nasceu há quase 20 anos em Amiens, França, onde anualmente grupos de escritores e grupos de leitores excluídos, furiosos, zangados com a leitura fazem as pazes com os livros. A partir de 2008, a Fundação de Serralves, no Porto, também recebeu a Leitura. Este ano, Lisboa e Porto voltaram a unir-se a Kinshasa, no Congo, e a Amiens para escrever e ler furiosamente.

Foram três dias: no primeiro, o escritor conhece os seus furiosos. Nessa noite, escreverá o texto que, no dia seguinte, discutirá com o seu grupo (daí a conversa sobre títulos de Mário de Carvalho com os jovens). Seis ilustradores interpretam os textos à sua maneira. Depois, estes são traduzidos e enviados para França e para o Congo. Em Portugal, começam-se a receber os textos em francês. No domingo, num evento em simultâneo nas quatro cidades (Lisboa, Porto, Amiens, Kinshasa), os textos são lidos, cantados, interpretados por um grupo de músicos e actores com todos os participantes.

Zangados são os outros

Não é todos os dias que adolescentes se encontram com um escritor. Tiago quer ser advogado (como Mário de Carvalho) e já argumenta bem: "Pensávamos que o Mário podia ser um chato. Os escritores gostam de falar muito e andam sempre com um bloquinho de notas, mas o Mário mostrou que é uma pessoa normal e muito simpática." Tiago gosta da forma como o escritor, "em tão poucas palavras, conseguiu definir-nos a todos". Bruno está impressionado com Mário de Carvalho: "Não nos conhecíamos, só estivemos juntos uma manhã, mas mesmo assim marcou-nos. Dá para perceber que é uma pessoa muito humilde."

Após este deslumbramento, faz sentido perguntar-lhes se estavam, então, zangados com a leitura. "Nós, não", respondem quase em conjunto. Então o que é, para eles, a Leitura Furiosa? Diana, que gosta de ler, diz: "Se calhar isto chama-se Leitura Furiosa porque há pessoas que não gostam de ler, ou que, como nós, pensam que os escritores são uns chatos, ou não se interessam pela leitura porque há coisas mais interessantes para fazer do que ler." Mas não são só livros, há outras coisas que também são leitura, diz Bruno (que não gosta muito de ler). "Por exemplo, leio o Record todos os dias. E fico furioso com os resultados!" Apesar das resistências, depois deste encontro com Mário de Carvalho, Diana diz que passou "a ver a leitura e a escrita de outra maneira". E, como Tiago e Bruno, diz que "sim, que poderia vir a escrever um dia".

Caso, talvez, para dizer que furiosos são os outros, como no texto de Filomena Marona Beja, Zangados?... A gente?!, escrito a várias mãos com David, Francisco, Mamadu, Fabien, Daniela, Carolina e Duarte. A escritora participa na Leitura Furiosa desde a primeira edição. Já colaborou com refugiados, imigrantes, desempregados e sem-abrigo. Foi, aliás, a primeira experiência com grupos do Centro de Apoio Social dos Anjos que a levou a escrever A Sopa (2004): "Senti que havia mais para além daquilo que vi na Leitura Furiosa de 2000. E fui conhecer essas pessoas." Marona Beja acredita que apesar de muitos destes desempregados ou sem-abrigo estarem "zangados" com a leitura, "há sempre qualquer coisa que fica deste encontro, um laço, uma ligação". Já encontrou alguns na rua. Abraçaram-na com carinho, dizendo: "Olha, a minha escritora!" E outros que garantem ter lido o livro dela aos bocados na FNAC. A escritora coloca questões pertinentes sobre o acesso à leitura: "Muitos não podem comprar livros porque são caros, mas também me pergunto se terão identificação necessária para poder entrar numa biblioteca, por exemplo."

Este ano, Marona Beja esteve, tal como o escritor Raul Malaquias Marques, com os meninos da Escola n.º 10 (Castelo). Os dois escritores e as crianças, junto com José Mário Silva e o seu grupo de meninos da Escola n.º 75 (Rua da Madalena), foram depois do almoço visitar a livraria Fabula Urbis, a "única livraria do mundo especializada em livros sobre Lisboa", explicou Raul Malaquias Marques aos miúdos.

Fúria de viver

Armando Silva Carvalho esteve com um grupo do Centro de Apoio Social dos Anjos, Jacinto Lucas Pires com gente do Centro Polivalente de São Cristóvão e São Lourenço, Miguel Castro Caldas com um grupo do Conselho Português para os Refugiados, e Jaime Rocha com o do Centro de Dia do Socorro.

Para um poeta e dramaturgo, o grupo de Jaime Rocha parece ter sido escolhido a dedo: todos, ou quase todos, pisaram um palco, cantaram e actuaram. Apesar da idade que os junta ("éramos 450 anos a uma mesa", escreveu Rocha), havia ali muitas histórias para contar, "mas não se falou de doenças", conta o escritor. Emília, de 77 anos, actuou numa peça de Ramada Curto. Ermelinda, de 81, vive em frente ao Teatro Taborda e o Teatro da Garagem convidou-a para a peça Fala-me da Chuva e Deixa-me Ouvir, o mesmo grupo para quem Carlos Silva, de 80, também actuou. Silva era filho, neto, sobrinho de actores e cantadores. David, de 80, explica que ainda hoje "é o Carlos que anima o centro de dia, canta muito, dá sempre show". Quando era jovem, Carlos foi obrigado a decidir entre um contrato de seis meses como actor e um trabalho para a vida, como alfaiate. "Já então os artistas eram precários", comenta Rocha. Nessa altura, explica Lurdes, de 71, "dizia-se que quem andava no teatro não era gente séria". Lurdes também foi actriz no filme Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra (2008).

Sobre a mesa está um livro de Jaime Rocha, Os Que Vão Morrer, exemplar único na biblioteca da Casa da Achada. Rocha brinca com o título: "Vou agora mostrar este livro aos velhotes?" Conta que quando discutiram em grupo o significado de "leitura furiosa", ninguém gostou da palavra "furiosa". Debateram como as palavras podem ter sentidos duplos: "Querem-nos ignorantes, zangados com a leitura. Mas podemos ler isto com fúria de leitura." Daí explicar que Os Que Vão Morrer são, no livro, "os que lutam pela vida", diz Jaime Rocha. Lurdes responde: "É isso que andamos aqui a fazer." Todos os dias, é esta fúria de viver.

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