Torne-se perito

Rosa Coutinho teve uma carreira política breve mas que ainda hoje suscita polémica

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Rosa Coutinho ao lado de Vasco Gonçalves, também ele já falecido rui gaudêncio

Integrou a Junta de Salvação Nacional e o Conselho da Revolução. Foi uma das figuras do 25 de Abril de 1974. Mas a sua acção política foi sobretudo marcante e controversa em Angola

Poucas figuras da política portuguesa do pós 25 de Abril suscitam ainda hoje tanta controvérsia como Rosa Coutinho. O "almirante vermelho", como lhe chamavam, morreu ontem, aos 84 anos, vítima de cancro, e as reacções ao seu falecimento mostram bem que os últimos 35 anos não bastaram para que se criasse consenso em torno do papel que desempenhou em Angola, onde foi alto-comissário nos meses que precederam a independência da ex-colónia.

Mal foi conhecida a notícia da sua morte - o funeral sai amanhã, às 15h00, da Capela de São Roque, nas instalações da Marinha, no Terreiro do Paço, para o cemitério dos Olivais, onde o corpo será cremado -, os sites dos jornais e a blogosfgera foram invadidos por comentários que o acusam de ter pactuado com o MPLA na perseguição e expulsão dos portugueses de Angola ou de ter negociado com os cubanos a intervenção militar no território. "Calúnias", disse ontem ao PÚBLICO Vasco Lourenço. "Os militares de Abril mais caluniados foram aqueles que se envolveram nos processos de descolonização", afirma o tenente-coronel na reserva, que não subscreve a tese de que Rosa Coutinho tenha privilegiado o MPLA em detrimento da UNITA e da FNLA, os outros dois movimentos angolanos de libertação.

Mas a posição mais consensual entre os historiadores não parece ser esta. Maria Inácia Rezola, que entrevistou o almirante no decurso dos seus estudos sobre os militares no pós 25 de Abril, conta que o próprio Rosa Coutinho "não escondia que favorecera o MPLA". É o que pensa também o historiador Pedro Aires Oliveira, que vê em Rosa Coutinho "um homem identificado com as estruturas do MFA em Angola" e que soube "estar à altura das circunstâncias". Não duvida de que o almirante tenha apostado no MPLA, que "era o movimento mais ocidentalizado e com elites mais aportuguesadas", mas acha que o seu papel fundamental não foi tanto esse, mas o facto de ter conseguido consolidar, naquele movimento, a liderança de Agostinho Neto, num momento em que esta estava seriamente ameaçada por facções internas, como a "Revolta Activa" dos irmãos Pinto Andrade, ligada aos sectores intelectuais, ou a "Revolta do Leste", dirigida por Daniel Chipenda. "Mesmo a URSS", diz Pedro Oliveira, "estava muito hesitante entre apoiar Neto, o seu interlocutor histórico, ou Chipenda, que dera boas provas de capacidade de liderança". O objectivo do almirante, defende, foi "dar tempo ao MPLA para chegar aos acordos de Alvor com um só líder e um só interlocutor".

Torturado no cativeiro

Como figura pública, Rosa Coutinho praticamente não existia antes do 25 de Abril. É quando surge como um dos nomes da Junta de Salvação Nacional que o país fica a conhecê-lo. Nascido a 14 de Fevereiro de 1926, em Celorico da Beira, iniciou-se na vida militar aos 18 anos, ingressando na Marinha, tendo-se depois formado em engenharia hidrográfica. O seu primeiro contacto com Angola aconteceu ainda nos anos 40, tendo depois integrado, em 1959, a Missão Hidrográfica de Angola e de São Tomé e Príncipe, informa a investigadora Leonor Figueiredo, No início da guerra colonial, em 1961, foi preso pela FNLA e terá sido torturado durante o cativeiro. A sua libertação, alegadamente feita por agentes da PIDE, nunca foi devidamente esclarecida. Com o 25 de Abril, o prestígio que granjeara "juntos dos seus camaradas mais novos da Armada", diz Vasco Lourenço, resultou no convite para integrar a Junta de Salvação Nacional. Em Julho de 1974, no primeiro governo de Vasco Gonçalves, foi nomeado presidente da Junta Governativa de Angola. Raimundo Narciso, presidente do movimento Não Apaguem a Memória, refere que Rosa Coutinho "estava praticamente ao lado do MPLA, na ala militar dos "gonçalvistas"". "Não foi uma figura consensual", diz o socialista Almeida Santos, antigo ministro da Coordenação Interterritorial: "Defendeu sempre ideias muito próximas do PCP e foi em Angola que conquistou mais adversários".

Rosa Coutinho conseguiu acordar um cessar-fogo com o MPLA, a UNITA e o FNLA, indispensável para as conversações sobre a independência. Ontem, Isaías Samakuva, presidente da UNITA, lembrou-o como alguém de "triste memória para Angola", e Ngola Kabango, da FNLA, disse que o almirante "influenciou negativamente o processo de descolonização, a favor do MPLA".

O PCP foi ontem o único partido a reagir à notícia da morte de Rosa Coutinho, lamentando o desaparecimento de um "aliado" e de um "amigo", e enaltecendo a sua "postura de total fidelidade aos valores e aos ideais da Revolução de Abril". O "almirante vermelho" regressou a Portugal em Janeiro de 1975, na sequência da assinatura do Acordo de Alvor. Após o 11 de Março, foi convidado a integrar o Conselho da Revolução (CR). Apesar da sua actuação pacificadora no 25 de Novembro, foi afastado do CR e, pouco depois, passado à reserva. Como figura pública, eclipsou-se, mas terá desempenhado um relevante papel nas décadas seguintes como mediador de negócios entre Portugal e o regime de José Eduardo dos Santos. Numa coisa, os historiadores estão todos de acordo. Rosa Coutinho continua a ser uma figura muito pouco estudada.

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