Na ilha onde Mandela esteve preso

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Cela de Nelson Mandela

Cinco quilómetros quadrados de mato, pinguins e o que sobra da História. Foi nesta ilha que, ao longo de 18 anos, Nelson Mandela aprendeu a ficar cada vez mais forte. Isso mudou a África do Sul e continua a ser uma inspiração para o mundo. Todos os dias se enchem barcos para ir ver a cela 466/64. Por Alexandra Lucas Coelho (texto) e Pedro Cunha (fotografia), em Robben Island, África do Sul

Cais da Cidade do Cabo, manhã dourada, e de repente bruma. Os passageiros do primeiro ferry apertam os impermeáveis enquanto esperam. Há leões-marinhos num recinto de vidro e barcos com nomes como Dias (provável homenagem ao primeiro a dobrar o cabo da Boa Esperança, Bartolomeu Dias).

É Maio, ou seja, Outono, e a monumental Table Mountain está nas nossas costas, já semiencoberta. Mas para diante, sobre a agitação das águas, ainda se adivinha a silhueta plana de Robben Island.

Foi num dia de Maio que Nelson Mandela pisou pela primeira vez este cais. Tinha sido trazido do Norte por estrada, noite e dia, acorrentado a outros prisioneiros. À chegada, enfiaram-nos no porão de um velho ferry com um buraco no tecto para entrar ar, que os guardas aproveitaram como urinol.

Agora os ferrys levam turistas, ao lado de negros e mestiços com grandes trouxas de pano e plástico.

- Trabalhamos na ilha - explica um sorridente Jonathan, levantando a pala do boné. - Eu corto a erva, limpo os caminhos, e levo aqui comida para uma semana.

Robben Island são cinco quilómetros quadrados de mato, 40 mil pinguins e o cimento que sobrou da História.

A cronologia começa em 1498, com o desembarque de Vasco da Gama. Entre Atlântico e Índico, a ilha torna-se armazém, correio e prisão - por exemplo, do africano Autshumao, um mito que deu força a Mandela, como ele conta em Um Longo Caminho Para a Liberdade, a sua autobiografia: "Eu encontrava consolo na memória de Autshumao, porque ele é considerado o primeiro e único homem que alguma vez conseguiu escapar de Robben Island, e fez isso remando até à costa num pequeno barco."

Águas bravas, quantos naufrágios.

"Robben" quer dizer foca, e era essa a população local quando as primeiras naus chegaram: focas e pinguins.

Depois, ao longo de séculos, holandeses, ingleses, afrikaners foram atirando para Robben Island revoltosos, criminosos, leprosos e doentes mentais. Em 1961, o apartheid transformou a ilha em "prisão de segurança máxima" para condenados políticos e "prisão de segurança média" para delito comum.

A sul do mundo

O ferry arranca cheio, contra o vento. Quase toda a gente se refugia no andar coberto, mas na proa há a sensação de estar a sul do mundo. Navios em sentido contrário, um céu que vai abrir, e de repente neblina. O piloto abranda. Navegamos às cegas, sem ver água nem terra. Até que a ilha aparece a flutuar, como se o dia nascesse.

- A água aqui é muito fria - diz Jonathan, um dos teimosos na proa.

Aos 59 anos, já avô, ganha 2500 rands por mês (250 euros) por limpar os caminhos de Robben Island.

- Mandela lutou para estarmos unidos como um. Quando ele estava na cadeia eu já trabalhava aqui, mas não havia nada disto, o cais, com estes edifícios.

O ferry gira para acostar. Vêem-se autocarros a dizer "Driven by Freedom". Toda a gente tem de entrar neles. O guia a bordo anuncia que vamos dar a volta à ilha e acabaremos na prisão. De caminho, com sorte, avistaremos pinguins.

Arame farpado, um velho canhão da II Guerra Mundial - e aquela cúpula verde que parece uma pequena mesquita?

- É o santuário de Moturu Kramat - explica o guia.

Em honra de um imã aqui exilado no século XVIII.

O autocarro passa os portões da prisão, agora sempre abertos, e segue. As campas do Cemitério de Leprosos. Uma igreja anglicana do Bom Pastor. Casas em ruínas e restos de base militar. E no meio de todo este passado, miúdos a jogar à bola no pátio da velha escola, filhos de quem trabalha na ilha.

Entre esses trabalhadores, há ex-guardas. É parte da tentativa de reconciliação pós-apartheid. Por exemplo, um dos carcereiros de Mandela está agora na cafetaria do farol, onde o autocarro de turistas faz a primeira paragem. Mas o guia só revela isso a caminho da segunda paragem.

- Aqui é a pedreira onde os prisioneiros trabalhavam. Alguns ficaram com cataratas, e quando os operaram encontraram pó nos olhos.

Na sua autobiografia, Mandela conta como tentaram pedir óculos escuros, por causa do pó e da luz. Mas em Robben Island, algo como uma escova de dentes podia demorar um ano, quanto mais óculos escuros.

Manual de sobrevivência

Os minutos passavam como anos, e os anos como minutos, disse Ahmed Kathrada, companheiro de Mandela no processo Rivonia, que em 1964 condenou a prisão perpétua vários membros do ANC, o partido de toda a luta contra o apartheid, actualmente no poder.

Uma das primeiras coisas que Mandela fez na prisão foi um calendário. De resto, as 200 páginas que Robben Island ocupa na sua autobiografia são um manual de sobrevivência física e moral. Acreditar na saída: a prisão não é para sempre. Pensar em grupo: os fortes levantam os fracos e todos se fortalecem. Estudar o inimigo: impedi-lo de nos quebrar. A prisão política visa "roubar a dignidade", e por isso o mais difícil é o castigo na solitária, em que temos de manter a razão e ser fiéis a princípios, sem ninguém como testemunha.

Cada homem era acordado às 5h30 na sua cela. Às 6h45 ia limpar o balde que servia de sanita, momento em que os guardas evitavam chegar perto, e os prisioneiros punham a conversa em dia. Ao pequeno-almoço, os negros não tinham direito a pão. Comiam sempre umas papas de milho (que ao almoço e à ceia podiam ter bocados de vegetais ou carne), e na solitária só mesmo água de cozer arroz. De manhã à tarde, o trabalho era partir pedra.

No que restava de tempo, o advogado e líder natural Nelson Mandela preparava defesas, aproveitando cada milímetro da lei, ou petições básicas, como direito a usar calças.

Por serem prisioneiros políticos, eram à partida categoria D, a mais baixa, aquela que só podia receber uma carta e um visitante a cada seis meses, sendo que as cartas chegavam em fiapos, depois dos cortes da censura, e as visitas demoravam 30 minutos sem privacidade nem contacto físico. Chegar a Robben Island implicava voar até à Cidade do Cabo e depois atravessar de barco. Para desencorajar visitas, o regime dava autorizações de hoje para amanhã. Houve prisioneiros que estiveram dez anos sem uma visita.

Para Mandela, estar preso assim foi ver a mãe doente numa breve visita, saber depois que ela morrera, e não poder sair para o funeral. Foi o momento sem palavras em que leu a notícia da morte do filho, e ficou na cela, em silêncio, de mãos dadas com o seu camarada Walter Sisulu. Foi ver a filha de 15 anos que não via desde bebé, e outra filha já casada trazer-lhe o neto. Foi, a cada dia, ao longo de anos, limpar o pó à fotografia de Winnie, e esfregar o nariz no nariz dela, para sentir a corrente eléctrica que os ligava, desde o primeiro dia em que a vira na rua.

O relato de Robben Island é também o testemunho desse amor. Mandela trabalhou para nunca perder a cabeça, mas perdia a cabeça pela mulher, quando a insultavam ou faziam sofrer.

De resto, era um líder pragmático, que aprendeu a conquistar a pulso o respeito dos carcereiros. Em cada homem, acreditava ele, há um âmago decente a que é preciso chegar. Depois da prisão, foi aos confins da África do Sul perdoar aos seus mais ferozes inimigos.

Como antes soube fazer a ponte com os jovens cheios de fúria que aterraram em Robben Island, vindos da revolta do Soweto, em 1976. Eram parte do Movimento da Consciência Negra e viam Mandela como demasiado moderado. Um caldo em ebulição, tendências e naturezas em luta. Mas se Robben Island ficou conhecida entre os ex-prisioneiros políticos como "universidade", foi pelo que aprenderam uns com os outros.

Para além disso, quando as condições melhoraram, os prisioneiros puderam estudar. Mandela, por exemplo, aprendeu afrikaans, a língua do regime que o condenara para a vida. Era outra forma de ficar mais forte.

E cantavam, jogavam damas, bridge e xadrez. Representavam os gregos, e Mandela inspirava-se na Antígona, liam os russos, e Mandela inspirava-se em Tolstoi.

Quando em 1976 lhe ofereceram a libertação em troca de boca calada, recusou. Foi escrevendo as memórias e começou a plantar um jardim. Era a sua ilha fértil, vital. Às vezes uma planta morria, por mais que a tentasse ressuscitar, mas Mandela também aprendeu que isso fazia parte de seguir em frente.

A cela 466/64

- Há gente aqui vinda de onde? - pergunta o guia no autocarro.

Holanda, Austrália, Malásia, Inglaterra. Sucedem-se os braços no ar.

À esquerda aparecem pinguins, uma festa. Também eles são sobreviventes. No começo do século XIX, tentaram exterminá-los.

E cá estamos, diante dos portões abertos da prisão, agora entregues a Kgotso, de 46 anos, um dos 12 ex-prisioneiros políticos que conduzem as visitas.

- Sou do Soweto e estive preso de 1984 a 1991 - diz ele.

Mostra a zona dos prisioneiros de delito comum, a zona dos prisioneiros políticos, a zona dos líderes, o hospital, a cela colectiva onde há beliches, um Cristo pintado, uma velha ementa. Os visitantes sentam-se a toda a volta, ao longo das paredes, a ouvi-lo.

- Primeiro, não havia colchões, dormia-se só em cima de um cobertor. E só depois de 1974 houve água quente. Falávamos todo o tempo sobre fugir, e tínhamos planos fantásticos, mas nunca conseguimos fugir, e 128 prisioneiros morreram aqui, incluindo 12 suicidas. Lutávamos por tudo, política, diferenças pessoais, Srabble, xadrez, mas os que já eram formados ensinavam os outros. Fiz a minha licenciatura em História nesta cadeia. Tínhamos que nos disciplinar contra um inimigo comum. E a minha avó tinha 90 anos quando esperou comigo na fila para votar em 1994.

As primeiras eleições livres.

- E agora, vamos ver a cela de Nelson Mandela?

Então dezenas de cabeças de todas as cores caminham em fila indiana pelos corredores, até ao pátio onde Mandela plantou o seu jardim, cebolas, belos tomates que oferecia aos carcereiros.

Este prisioneiro alguma vez o conheceu?

- Oh, sim! - diz Kgotso ao P2. - Todos os anos nos reunimos aqui. Ainda agora, no dia 1 de Maio, tivemos a nossa reunião de prisioneiros e ele também veio.

A fila de visitantes entra no corredor das celas dos líderes. A de Mandela é a quarta, à direita. Número 466/64 quer dizer o 466º prisioneiro a chegar em 1964. Parede verde-água, tecto branco, grades brancas, chão de cimento, janela ao cimo.

Um espaço onde um homem de pé pode apenas abrir os braços, e é tudo.

Quinta de várias reportagens a publicar até ao início do Mundial

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