Drogba o africano

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O pequeno "Tito" aos dois anos, em Abidjan corbis/vmi

Futebolista poderoso, personalidade explosiva, talento tardio, herói africano, promotor da paz, mecenas, protegido de Mourinho. São muitas as facetas deste craque, que está na lista das cem pessoas mais influentes do mundo segundo a revista Time. Uma viagem à autobiografia de um jogador com físico "de atleta da NBA e pés de bailarina".

Didier Drogba ganhou o primeiro embate a Cristiano Ronaldo. Os dois (que partilharam recentemente a capa da revista Vanity Fair) faziam parte do lote de candidatos a integrar a lista das 100 personalidades mais influentes do mundo para a revista Time, mas só o capitão da selecção da Costa do Marfim integra esse restrito grupo. Além das qualidades futebolísticas - que fazem dele um dos melhores jogadores africanos da actualidade -, Drogba é, aos 32 anos, reconhecido também pelo trabalho da sua fundação e pelo contributo para acalmar a situação na Costa do Marfim, país que viveu em guerra civil entre 2002 e 2007 e que volta agora a viver momentos instáveis.

Num tempo em que os futebolistas são quase todos profissionais precoces, Drogba é uma excepção. Só aos 24 anos, e depois de muitas peripécias, chegou à I Liga francesa, em que brilhava o português Pauleta, um dos avançados em que o costa-marfinense se inspirou. Esta é uma das muitas histórias contadas por Drogba na sua autobiografia, Portrait of a hero, que inclui um prefácio de José Mourinho, com quem criou uma relação de amizade forte quando este o contratou para o Chelsea.

O exílio é uma facada no coração

Didier Yves Drogba Tébily nasceu na Costa do Marfim, a 11 de Março de 1978. O pai, Albert, era bancário. A mãe, Clotilde, era ainda estudante quanto ele nasceu. É o mais velho de sete filhos (um deles adoptado) de uma família de Abidjan. "Não éramos pobres: nunca nos faltou nada", conta Drogba na autobiografia, o livro que serve de base a esta viagem ao universo do principal jogador da Costa do Marfim, primeira adversária de Portugal no Mundial deste ano (15 de Junho).

A primeira grande mudança na vida de Didier deu-se aos cinco anos. Os pais resolveram que o melhor para o filho era ele ir viver com o tio em França, onde poderia estudar e abrir caminho para uma vida melhor. Drogba não esqueceu aquele dia em que, no aeroporto Félix Houphouët-Boigny, teve de se despedir dos pais. "As caras, os corpos, as sombras. E claro as minhas lágrimas", conta "Tito" (como os pais o tratavam), que jamais esqueceu aquela viagem de seis horas até Paris. "O exílio foi uma facada no coração." Na capital francesa, esperava-o irmão do pai, Michel Goba, futebolista profissional.

"Disse ao meu pai que iria ser médico, mas muito cedo senti grande afinidade pela bola", revela Drogba, cujos primeiros tempos em França não foram nada fáceis. Como se não bastasse ser difícil fazer amigos, porque mudou muitas vezes de cidades (Brest, Angoulême, Dunquerque) por causa das transferências do tio, era um miúdo negro na Europa. Exemplo de racismo? "Às vezes, passavam borracha na minha pele para ver se a cor saía", recorda-se o actual jogador do Chelsea. As saudades de casa eram tantas que Didier, aos oito anos, quando foi visitar os pais nas férias, ficou um ano na Costa do Marfim. Aos nove, no entanto, voltaria para França, onde mais tarde se juntou todo o clã Drogba.

"Era quase suplente de um suplente"

No início dos anos 1990, a família de Drogba mudou-se para França, à procura de uma vida melhor. O pai queria que Didier estudasse. Didier só pensava em futebol. "Pensas que isso é uma profissão?", gritava o pai, desconsolado com a vida do irmão Michel, cuja carreira entrava na curva descendente. Mas a persistência do miúdo prevaleceu. Didier começou a jogar aos nove anos, como lateral-direito, no Dunkerque. E, depois de um período em que o pai o proibiu de jogar, prosseguiu a formação como futebolista no Vannes e no Levallois, outros dois clubes modestos. "Mandei currículos para todos os clubes da I Liga. Pedi dinheiro emprestado à minha mãe para selos e envelopes. A caixa de correio tornou-se o centro das minhas esperanças, desfeitas repetidamente por rejeições, isto quando eles [os clubes] se incomodavam a responder."

Alguns anos depois, a sorte de Didier começou a mudar. O Paris Saint-Germain mostrou interesse em contratá-lo, mas o jovem marfinense acabou por preferir as certezas do Le Mans (então um clube da II Divisão) à incógnita do que seria uma mudança para o grande clube de Paris. Aos 19 anos, Drogba mudava-se para a região de La Sarthe, a sudoeste de Paris. Foi ganhar cerca de 1000 euros por mês, mas o "dinheiro evaporava-se". Roupas, sapatilhas e noitadas eram os vícios do jovem Didier, que dois anos depois, aos 21, faria a estreia num jogo de um campeonato profissional, frente ao Cannes.

Em Janeiro de 2001, Didier juntou-se à maliana Lalla Diakité. "Para voltar ao eixos, nada melhor do que uma mulher. Sem ela, não teria atingido o sucesso", elogia o marfinense, numa das poucas revelações sobre a vida pessoal. Drogba continua a viver com Lalla e com o enteado Kevin (de 18 anos) e os dois filhos do casal: Isaac, de oito anos, e Iman, uma menina de sete.

A relação com Lalla trouxe outra estabilidade ao jogador, mas nem assim os planos de se afirmar rapidamente no Le Mans se concretizaram. Lesões e alguns desentendimentos com o treinador traduziram-se num início de carreira intermitente: "Aos 23 anos, a minha carreira estava encravada. Já não era a grande revelação do Le Mans na II Liga, era um suplente com dúvidas quanto ao futuro, quase um suplente de um suplente", lê-se na autobiografia do futebolista.

E curiosamente seria como suplente que Drogba daria o primeiro grande salto da carreira. Em Dezembro de 2001, saiu do banco para marcar dois golos ao Saint-Etienne. O resumo no Eurosport e as recomendações de empresários levaram o Guingamp, da I Liga, a contratar o marfinense por cerca de 150 mil euros. Drogba estreou-se na I Liga a 30 de Janeiro de 2002, a um mês de completar 24 anos. E fê-lo da melhor maneira, com um golo num triunfo por 4-2 frente ao Metz.

Foi nesse dia que percebi

que o futebol é um negócio

Um ano e meio no Guingamp foi suficiente para Drogba despertar o interesse dos melhores clubes franceses. Ajudado por Malouda (seu grande amigo e agora companheiro de equipa no Chelsea), o marfinense marcou muitos golos, tendo sido considerado a revelação do campeonato francês. Na autobiografia, Drogba conta como a observação dos movimentos dos melhores avançados da época o ajudaram a evoluir. O português Pedro Pauleta, que então brilhava na Liga francesa, foi uma das fontes de inspiração do marfinense, a par do francês Thierry Henry e do espanhol Raúl. O holandês Marco van Basten, já retirado, continuava, no entanto, a ser o grande ídolo de Drogba.

Os golos e o poder físico do avançado africano impressionaram os principais clubes franceses. Paris Saint-Germain, Lyon e Marselha queriam contratar o avançado do Guingamp. Os parisienses foram excluídos, quando o treinador do clube, o bósnio Vahid Halilhodzic, disse ao empresário do jogador que "Drogba é um bom jogador, mas não é um grande, grande avançado". Curiosamente, Halilhodzic foi até há poucos meses seleccionador da Costa do Marfim, tendo sido substituído pelo sueco Sven Goran-Eriksson, antigo treinador do Benfica.

Entre Lyon e Marselha, Drogba preferiu o clube do Sul. Uma escolha emocional, porque era a sua equipa preferida. Abédi Pelé, Chris Waddle, Jean-Pierre Papin, antigos jogadores do Marselha, eram ídolos de infância de Didier. "Era o meu clube de sonho." O sonho, no entanto, durou pouco. Um ano depois de ter sido contratado ao Guingamp por seis milhões de euros, o Chelsea fez uma proposta por Drogba e o Marselha aceitou.

Este foi um dos maiores choques da carreira do futebolista. É que Didier não queria sair do Marselha. Preferia manter-se no seu clube do coração, ser campeão e ser tão leal ao clube francês como Paolo Maldini foi em relação ao Milan. Mas os dirigentes do Marselha não resistiram aos 37 milhões de euros oferecidos pelo clube inglês. "Foi nesse dia que percebi que o futebol é um negócio", confessa. "Tornei-me num mero produto a ser negociado", diz Drogba, que chegou mesmo a recusar a transferência, antes de alguns amigos, e José Mourinho, o convencerem a não invalidar o acordo. "Senti-me enojado por ter de assinar contrato com o Chelsea. Pode parecer estranho, mas foi assim que me senti."

Ele infectou-nos com o vírus da vitória

Um dos principais responsáveis por Drogba se ter tornado num avançado de nível mundial foi José Mourinho. O primeiro encontro entre estes dois grandes amigos foi, nas palavras de Drogba, "estranho". Tudo aconteceu em Marselha, na caminhada do FC Porto para a vitória na Liga dos Campeões (2004). José Mourinho ficou impressionado com um rapaz forte, que jogava como avançado no Marselha. No intervalo do jogo, o treinador português cruzou-se com o costa-marfinense e não teve pejo em meter-se com o adversário: "Não tenho dinheiro para te comprar, mas tens alguns primos como tu na Costa de Marfim?", perguntou Mourinho, num misto de admiração e provocação. Drogba soltou uma gargalhada, conta o treinador no prefácio da biografia do jogador, e respondeu: "Um dia estarás num clube que me poderá comprar."

Didier já elogiou publicamente as capacidades de Mourinho como visionário, mas neste caso foi o avançado africano a adivinhar o futuro. Meses depois desse jogo, o Chelsea contratava Drogba por 37 milhões de euros, a pedido do seu novo treinador... José Mourinho.

Drogba não queria mudar-se para Londres, mas o treinador português ajudou a convencê-lo, dizendo-lhe que só esta mudança o poderia ajudar a chegar ao nível dos melhores avançados. "Ele sabe o que quer. José Mourinho não treina os jogadores, cativa pessoas que estão prontas a aderir à sua filosofia."

A capacidade de antecipação de Mourinho foi a característica que mais impressionou Drogba. "A certa altura da época, estávamos atrás do Arsenal [na classificação] e ele disse: "Não se preocupem. Vamos apanhá-los. Eles vão perder pontos aqui e ali." E isso aconteceu. Ele tem um dom para prever as coisas." Mas há mais exemplos. "Às vezes, adivinhava o resultado do jogo. Noutras contava-nos o que ia acontecer, quase em detalhe. Era incrível."

A admiração do jogador pelo treinador português estendia-se aos métodos de trabalho de Mourinho, que distribuía duas ou três páginas aos futebolistas antes de cada jogo, com recomendações sobre o adversário e até indicações de que seria útil verem um cartão amarelo, para serem suspensos em determinado dia. "Infectou-nos com o vírus da vitória", resume Drogba, que ficou desolado quando o português abandonou o Chelsea, em Setembro de 2007.

Mourinho também não esconde a admiração pelo avançado da Costa do Marfim. "Didier é especial", escreveu no prefácio à autobiografia do jogador. E contou um episódio especial entre os dois. Em 2007, Chelsea e Manchester United defrontaram-se na final da Taça de Inglaterra. Os londrinos não tinham vencido o campeonato, nem a Liga dos Campeões, e cada vez mais era dada como provável a saída do treinador. O Chelsea venceu essa final com um golo de Drogba no prolongamento. Assim que o jogo terminou, Mourinho retirou-se para o balneário para telefonar à mulher - algo que faz quase sempre. E Drogba, em vez de se juntar aos companheiros na comemoração da vitória, foi atrás de Mourinho. "Ele encontrou-me, abraçámo-nos e chorámos", conta o português. Foi uma espécie de despedida. Três meses depois, Mourinho deixava o Chelsea e Drogba, apesar de insistentemente ter pensado em sair de Londres, ainda continua no mesmo clube. Diz Drogba: "Ele jurou-me que voltaríamos a trabalhar juntos e, dado o dom que tem para prever o futuro, deve ter uma data exacta em mente."

Sou uma pessoa emotiva

A constante infelicidade de Drogba no Chelsea talvez seja a revelação mais surpreendente da biografia do jogador. Quem o vê em campo, a lutar até à exaustão, e quem olha para o currículo de golos e troféus que foi construindo em Londres, dificilmente imaginará que por trás daquela face de guerreiro se escondia (esconde?) um homem infeliz. A depressão inicial foi originada pela relação especial que Didier tinha com os adeptos do Marselha. Mudar-se para Londres significou perder essa ligação especial, situação agravada pela desconfiança dos fãs ingleses. "Didier quem?", questionavam-se os adeptos "blues" quando perceberam que o clube acabara de pagar 37 milhões de euros por um avançado relativamente desconhecido. O sentimento de desconfiança era mútuo. Lembra Drogba: "O Chelsea não significava muito em França."

O preço da transferência aumentou a pressão sobre o avançado africano, alvo da "inveja" dos colegas e de uma vigilância apertada dos analistas. Habituado ao mundo francófono, Didier demorou também tempo a adaptar-se a Londres. "Não me senti bem-vindo pelos jogadores ingleses, não falava a língua e não entendia as piadas, aquele humor britânico especial." Até mesmo em pormenores extrafutebolísticos, como encontrar casa, Drogba se sentiu defraudado pelo clube inglês.

Com o tempo, a tristeza de Drogba em Londres foi sendo domada, embora, periodicamente, se lhe ouvissem declarações a dar conta do desejo de sair. Também periodicamente se viram exemplos de que o marfinense tem uma personalidade explosiva. "Sou um emotivo e não sei porquê. Os meus pais são calmos", reconhece Drogba. Talvez o caso mais paradigmático seja a forma como protestou com o árbitro norueguês Tom Henning Ovrebo, durante um jogo entre Chelsea e Barcelona (2008-09), que lhe valeu vários jogos de suspensão. Um acto que até lhe valeu a censura do próprio filho, de oito anos: "O meu filho viu o jogo com os amigos da escola e ficou envergonhado com o meu comportamento. Isaac disse-me: "Pai, não está certo o que fizeste. Devias ter mais penáltis [os protestos foram originados pelo facto de o árbitro ter perdoado faltas na área ao Barcelona], mas não é correcto fazer aquilo ao árbitro", contou Drogba à imprensa, no final do ano passado.

Já não sou um jogador de futebol,

sou um apóstolo da paz

A impulsividade de Drogba esteve, por outro lado, quase a afastá-lo da selecção da Costa do Marfim, após o Mundial 2006. Pela primeira vez, os "elefantes" (cognome da equipa) qualificaram-se para a prova, mas foram eliminados na primeira fase, com duas derrotas e uma vitória. Drogba foi expulso no segundo encontro e ficou revoltado com "a guerra de egos" na selecção. "Todos queriam o seu pedaço de glória. O individualismo ganhou ao espírito de equipa", conta o "capitão" da selecção, que saiu da Alemanha com a ideia de nunca mais representar a selecção. "Senti que não era bem-vindo", queixou-se o avançado, identificado como líder de uma facção na selecção. A outra era a dos jogadores provenientes da academia do ASEC Mimosas.

E se a selecção foi (ou tem sido) palco de algumas desilusões para Drogba, também foi através dela que conseguiu um feito que lhe valeu grande reconhecimento internacional: os apelos de Didier, enquanto capitão da selecção, terão ajudado, em 2007, a pôr fim à guerra civil em que o país vivia desde 2002.

Quando o integrou na lista das cem pessoas mais influentes do mundo, a revista norte-americana Time elogiou-lhe por um lado as qualidades futebolísticas, usando uma expressão para americano entender: "Imaginem alguém com físico de uma estrela da NBA, mas com pés de bailarina."

E, por outro lado, reconhece a contribuição de Drogba para acalmar a situação no país, que conduziria depois a um cessar-fogo. O International Crisis Group avisou, no entanto, que a situação no país está de novo tensa, porque as eleições presidenciais já foram adiadas seis vezes.

Com o país dividido entre o Presidente Laurent Gbagbo, a sul, e as Forças Novas de Guillaume Soro, a norte, Drogba tentou contribuir para a paz, apesar de reconhecer que não tem o "poder de parar guerras". "Só podemos fazer discursos pacifistas." O futebolista explica que se tornou "embaixador da paz" para ajudar o país, transformando a selecção nacional de futebol num símbolo da reunificação da Costa do Marfim.

O momento alto desta reunificação aconteceu em Março de 2007, quando, pela primeira vez em muito tempo, a selecção da Costa do Marfim foi jogar a Bouaké, a "capital dos rebeldes". A ideia foi de Drogba. "Foi o nosso muro de Berlim", diz (talvez com algum exagero) o futebolista logo no prólogo de Portrait of a hero, em que conta o impacto daquele dia. "Vejo mães a chorar, homens idosos a olharem-me de alto a baixo. Começo a perceber o impacto da nossa visita: já não sou um futebolista, sou um apóstolo da paz, um elo entre o Norte e o Sul."

Nesse mesmo ano (2007), Drogba foi nomeado embaixador da Boa Vontade das Nações Unidas e criou a Fundação Drogba, dedicada à ajuda a mulheres e crianças na área da educação e saúde. Construir um novo hospital na Costa do Marfim é a prioridade da fundação deste futebolista que se tornou num ícone africano.

A influência que tem na sociedade africana já lhe valeu comparações com George Weah, antigo futebolista do Milan que chegou a ser candidato às eleições presidenciais na Libéria. Aos 32 anos, Drogba admite que já começa a pensar no que vai fazer quando terminar a carreira de futebolista.

"África deu-me muito (...) e estou a pensar na melhor forma de retribuir. Por agora, não tenho a certeza de como o fazer, mas não me vejo na política." a

hugo.sousa@publico.pt

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