Autoritário, eu?, pergunta Nikita Mikhalkov em Cannes

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O realizador e a filha, REUTERS/Christian Hartmann

O realizador trouxe a continuação de O Sol Enganador, que em 1994 recebeu um Óscar. É a maior produção da cinematografia russa

As primeiras perguntas foram só para disfarçar. Quem estava à frente, ontem na conferência de imprensa, era Nikita Mikhalkov, o realizador de Exodus - O Sol Enganador 2 (competição), mas a fama do homem precede a do filme. Frequentemente domina o filme. Por isso, depois dos preâmbulos, veio o que interessava.

Nikita Mikhalkov, presidente da União de Cineastas russos, foi denunciado como um autoritário que abusa, em seu proveito, do estatuto de membro do conselho de administração do organismo que subvenciona o cinema russo.

Os 97 signatários dessa petição que o acusava em Abril - e entre eles estão Alexandre Sokurov, Alexei Guerman ou Otar Iosseliani - demitiram-se da União, afirmando que não gostam de Nikita. Que, próximo e admirador de Vladimir Putin (numa entrevista ao L"Express Mikhalkov disse que a Rússia "precisa de um poder forte e mobilizador"), é olhado como um membro da propaganda do regime.

"Autoritário, eu?", atirou ontem o cineasta. "Quero factos, quero que me digam quando fui autoritário. Também posso dizer que ontem a vi nua no Hotel Carlton" - dirigia-se à jornalista que o questionou em conferência de imprensa.

"Que eu tenha pontos de vista e que os possa exprimir parece ser a base da democracia, um direito, desde que isso não tenha consequências para a vida dos outros."

E Mikhalkov passou ao contra-ataque, desacreditando a petição e a sua dimensão, argumentando que 30 dos signatários nunca fizeram parte da União, que outros tantos há mais de uma década não pagam quotas, "o que os exclui automaticamente", e por aí fora... "Sobram três ou quatro, e é por isso que este assunto está a ser discutido internacionalmente..."

O pão e as ostras

Exodus - O Sol Enganador 2, exibido em Cannes 16 anos depois de O Sol Enganador ter recebido no festival o Prémio do Júri e ter recebido o Óscar do melhor filme estrangeiro, é o mais caro filme russo. Mas os espectadores russos não o foram ver em número significativo.

Segundo algumas fontes, teve 55 milhões de dólares de orçamento, a versão de Nikita é 40 milhões e, acrescenta, esse é o orçamento de um projecto em duas partes (sim, há-de vir O Sol Enganador 3) e uma série de TV em 15 episódios. O Governo russo entrou com um milhão de dólares para a primeira sequela, vai entrar com outro milhão para a segunda. "O resto foi conseguido de acordo com um ditado russo que diz que passamos a primeira metade da vida a trabalhar para o nosso nome e a segunda metade é o nosso nome que trabalha para nós."

Defende que este tipo de cinema é que serve para alimentar a indústria, já que ninguém vive só "de ostras" - o "cinema de autor" -, "também é preciso pão". E pão para a indústria é, na sua perspectiva, O Sol Enganador2. Mesmo se os russos não o tenham querido comer.

As personagens do primeiro filme desapareciam no final, tragadas pelas purgas estalinistas. Mikhalkov arranjou maneira de as fazer regressar: um pai, o General Kotov (Mikhalkov), a filha Nadia (Nadezhda Mikhalkova, filha de Nikita) e Mytia (Oleg Menshikov), o homem da polícia de Estaline que se meteu no quadro idílico da família. Mais parecem figuras daquelas franchises de super-heróis cujo sentido ficou encerrado no primeiro volume e cuja vida foi prolongada artificialmente.

O realizador conta que teve a ideia da continuação depois de ter visto Saving Private Ryan, de Spielberg, e de ter ouvido adolescentes à porta do cinema a discutir a II Guerra como se o conflito se resumisse aos Aliados e ao desembarque na Normandia. Quis apresentar a perspectiva da "alma russa", o seu "sofrimento" (Sol Enganador 2) e "renascimento" (o número 3).

Mas insiste que todo o projecto trata de uma história de amor: pai e filha. É aí que não vemos filme, apesar da insistência em flashbacks com cenas do primeiro Sol Enganador entre Kotov (Mikhalkov) e Nadia (Nadezhda Mikhalkova). É um esforço inglório para criar um élan, já que nesta primeira sequela o general e a filha ainda não se reencontraram, estão dispersos pela guerra, e o resultado é mesmo um longo e grotesco interlúdio (duas horas e meia dura a versão internacional, menos meia hora do que a russa). Nem é pão, nem é ostra. É pudim.

O húngaro Kornel Mundruczo, realizador, actor e encenador de teatro, filma como se cada plano tivesse escondido a pérola de uma ostra. O Festival de Cannes, ao acompanhar a obra, tem incentivado o preciosismo. Que é tão inerte, mesmo jogando no campeonato do "autor", como a anacrónica produção de Mikhalkov. E onde acaba por ser indiferente que Le garçon fragile: Le Project Frankenstein (Mundruczo diz que "é uma transposição livre do Frankenstein de Mary Shelley) seja uma história de culpas, ressentimentos e expiação entre um pai e um filho.

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