Os National deitam champanhe para dentro das sombras

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É segunda-feira, dez da manhã em Nova Iorque e há em Matt Berninger, o barítono que lidera os National, algo diferente, pelo menos tendo em conta as conversas mantidas com ele desde que falámos pela primeira vez há cinco anos: as palavras não lhe saem entarameladas, não há oscilações entre monólogos sorumbáticos e explosões verborreicas inacabáveis, tudo no discurso parece ponderado. Resumindo: está, surpreendentemente, sóbrio.

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É segunda-feira, dez da manhã em Nova Iorque e há em Matt Berninger, o barítono que lidera os National, algo diferente, pelo menos tendo em conta as conversas mantidas com ele desde que falámos pela primeira vez há cinco anos: as palavras não lhe saem entarameladas, não há oscilações entre monólogos sorumbáticos e explosões verborreicas inacabáveis, tudo no discurso parece ponderado. Resumindo: está, surpreendentemente, sóbrio.

"Eu não bebo assim tanto", responde com um certo acossamento. Anos antes, este homem era o primeiro a brincar com a sua fama de bebedor compulsivo. Agora, casado e pai, perto de se tornar uma estrela a sério com "High Violet", há nele certos cuidados: "Nunca começo a beber antes da noite e só bebo no palco, mas antes e depois do concerto não bebo", repete.

Agora Matt Berninger é pai e não bebe. Isto é uma grande diferença face ao que lhe conhecíamos: no Sudoeste, em 2007, não largou uma garrafa de Porto durante a conversa de uma hora que mantivemos antes do concerto. No ano seguinte, na Aula Magna, em Lisboa, nem chegou a haver a entrevista marcada, porque estava entretido a beber e a conversar com fãs e esqueceu-se da conversa combinada.

Antes do turbilhão de digressões em que "Boxer" enfiou o grupo, Berninger era uma personagem menos reservada - com a mesma quantidade de angústia que hoje lhe notamos, mas um pouco menos de precaução na exposição. A pureza em diálogo nessa altura era tanta que no Sudoeste contou-nos o amor de Bryan Davenport por erva, revelou-nos que na banda ninguém tomava drogas duras. Depois acrescentou, quase com vergonha: "Não sei, se calhar devíamos tomar".

Bryan Davenport, já agora, é o baterista maravilha, despenteado, barbudo e tremendamente bonito, irmão de Scott,  o careca barbeado do baixo pulsante. O resto da banda é composto pelos gémeos Bryce e Aaron Dessner, os líderes das guitarras da banda.

"Mal acabam os concertos vou para o hotel deitar-me ou ler", diz-nos Berninger. Um dos gémeos Dessner, antes do concerto da Aula Magna, contara-nos o mesmo, acrescentando um pormenor: Berninger ia logo para o hotel não por uma questão ética, mas sim "para telefonar à mulher, que quer saber onde ele anda".

A mulher de Matt Berninger (que, tal como os restantes membros da banda, vem de Cincinnati, Ohio, e é um produto da classe média local) tem as suas razões para querer manter o marido em rédea curta: no Sudoeste Berninger dizia-nos, com mais um dos muitos cigarros que fuma quase a cair-lhe da mão: "Já viste a quantidade de mulheres bonitas que estão ali fora? Jesus, às vezes olho para estas mulheres e penso 'Eu gostava de fazer amor com uma mulher assim'. Mas depois penso na minha namorada [à data não estavam casados] e...". E ficou a olhar para o chão com um ar tão comiserado consigo mesmo que parecia uma das personagens das suas canções.

Uma boa parte do charme deste quinteto de personalidades bem marcadas reside nesta simultânea consciência e fascínio com o pecado. Ninguém disse que era preciso pecar para haver culpa - e Berninger sabe bem que se pode sentir uma avassaladora culpa só por se pensar em pecar.

"Quer dizer, isto não são problemas, não são verdadeiros problemas, mas todas as canções dos National são sobre isso", disse ele nessa noite, repetidas vezes.

"Isso" é querer e não poder, fazer e "saber que se está a fazer merda": a comichão versus a razão, dicotomia usada nas canções dos últimos dois discos dos National, "Alligator" (2005) e "Boxer" (2007), até à exaustão, e que lhes valeu uma crescente legião de fãs, invariavelmente literatos e abusadores de medicamentos de prescrição: membros da geração recibo verde, da geração a prazo, da geração sem poiso.

A perfeição da imperfeição

As angústias de Berninger são as dos fãs e os fãs envelhecem ao mesmo tempo que Berninger, como se houvesse entre eles um miraculoso "update" de angústia que os mantivesse em sintonia. Cada vez que um muda de angústia os outros também e assim continuam o seu caso de amor.

O que nos traz de volta à mudança no discurso de Berninger e às questões em jogo neste momento decisivo na vida nos National em que eles lançam "High Violet". 

A banda tem vindo a subir as vendas a cada disco, e "Boxer" atingiu os 350 mil exemplares só nos EUA, o que nesta altura da indústria, para uma banda desta dimensão, é extraordinário.

De "High Violet" espera-se que expluda definitivamente, embora, como Berninger nos disse esta semana, com eles "não há explosões, há um constante crescendo". Mas não é só em termos de dimensão da banda que estão numa encruzilhada: agora eles têm de decidir entre serem como os U2 ou serem a melhor banda do mundo.

Tinham ainda mais um dilema pela frente: "Alligator" e "Boxer" não foram apenas discos perfeitos, foram os discos perfeitos na altura perfeita, com a evolução perfeita para uma geração reconhecida pela sua imperfeição. O que fazer a seguir?

Foi com esses problemas, que "não são verdadeiros problemas", que meio milhão da melhor gente que aí anda se relacionou: com o pateta alegre que cantava "I used to be carried in the arms of cheerleaders", com o romântico desesperado que gritava "I won't fuck us over", com o mentiroso confiante nas suas mentiras que dizia "We'll stay inside 'till somebody finds us/ do whatever the tv tells us". Meio milhão da melhor gente que tem estas frases tatuadas na rede neuronal, porque elas são simultaneamente grandiosas e íntimas - e é esse, tanto a nível lírico como a nível musical, o trunfo dos National: conseguirem que algo soe íntimo e tornar esse íntimo épico.

Como é que eles - problemáticos profissionais - podiam resolver este problema sem enlouquecer?
Resposta: não podiam e enlouqueceram.
Como é que eles escolheram o caminho a seguir?
Resposta: não escolheram, estava mesmo ali.
O que é que eles fizeram?
Juntaram o melhor dos dois mundos anteriores.
Mais importante que tudo: "High Violet", vai fazer deles a melhor banda do mundo?

Na mente de Berninger

Retrato do artista neste momento da sua vida: "Tenho uma filha de 16 meses e isso mudou-me bastante. Quando se tem filhos o mundo deixa de ser sobre nós - bem, infelizmente continuo obsessivo comigo próprio. Começa-se a tentar perceber como melhorar o mundo só que isso traz ainda mais raiva porque não só não conseguimos resolver nada como ainda por cima não podemos fugir da responsabilidade. Não podemos mais querer que tudo se foda. Antes podíamos simplesmente ir para uma barraca longe de tudo e mandar tudo e todos - problemas, responsabilidades, mulheres, dignidade - para o caralho. Agora tem de se querer saber, temos de nos importar. E para ser honesto, agora nós importamo-nos com muita coisa. Mas não é fácil".

Este é um tratado sobre a mente de Berninger. A oscilação entre o "eu" e o "nós" é representativa da confusão entre o caso particular e a generalização, confusão que o leva a tantos labirintos lógicos, mas, simultaneamente, dá às suas canções uma universalidade nada negligenciável (ele tem um talento imenso em transformar um problema seu numa canção em que todos se possam rever).

A assumpção de um mar de diferença entre o que é certo, o que nos dizem que é certo, o que nós queremos fazer e o que nós achamos que devemos fazer está representada naquele parágrafo - e é destas múltiplas hipóteses que nascem as canções dos National, é esta complexidade que atrai a multidão simultaneamente bibliófila e beberrona que os segue.

(É curioso reparar como os fãs dos National são parecidos com os National: gente de classe média, média alta, angustiada com as suas banalidades, fechada sobre a sua cabeça, gente tímida capaz de irrupções psicóticas ou de manifestações de exibicionismo ou decadência a milhas do seu comportamento normal. Frígidos emocionais capazes de um grande coração. Não há como não gostar deles - isto é, de todos nós)

O parágrafo citado vinha a propósito de "Afraid of everyone", uma das novas canções, particularmente emblemática da viragem temática que "High Violet" encerra. Berninger está convencido de que este disco é radicalmente diferente dos anteriores. Mas Berninger não toca um único instrumento.

"Para mim, vistos agora, 'Boxer' e 'Alligator' são mundos de fantasia e 'High Violet' é um disco de alguém que se importa. É um disco em que se diz: 'Afinal tudo importa'. Tudo importa, o que torna tudo mais assustador. Mas também mais recompensador", diz, antes de lançar: "É um disco com o real lá dentro".

Este é o facto fundamental: Berninger é pai e um solipsista - e um solipsista perante a paternidade, leva um nó, um "angustiante" nó no seu esquema de sobrevivência. Esse esquema de sobrevivência (fugir) deixa de ser eficaz quando há um ser que não sai do mesmo lugar (a filha), pelo que a angústia retorna e tem de ser canalizada para fora de casa. De onde: "Eu tive de começar a olhar para o mundo outra vez". De onde: os outros discos são de fantasia e este é sobre o real.

Toda a mudança pessoal implica uma revisão do passado, mas aqui é notório que Berninger tenta ver a obra anterior com olhos mais positivos. Recordando "Alligator": "Aquelas afirmações grandiloquentes como 'I used to be carried in the arms of cheerleaders', muito disso é fantasia ou ilusão - alguém que em desespero se imagina melhor do que é, de forma mais ou menos patética. Mas isso também pode ser comovente. Se o nosso passado não é glorioso, qual o problema? Porque não havemos de inventar que fomos carregados em ombros por 'cheerleaders'?"

Faz o mesmo exercício com "Boxer": "'Boxer' não era sobre casais a esgadanharem-se. Era sobre as pessoas fecharem as portas, desligarem-se do mundo exterior, procurarem uma zona de conforto. Era uma rejeição do mundo exterior, mas eles apreciavam a solidão. Eles não vão matar-se um ao outro, eles escolheram estar sozinhos".

"'High Violet' é o oposto. É a escolha da abertura ao mundo como fuga ao sufoco. É um disco que confronta o que há por aí. Lide com o que lidar - tomar decisões como viver em Nova Iorque ou no campo ou como gerir o que os outros pensam de nós, ou a paranóia informativa -, é um disco sobre o impacto do exterior". Só mais uma frase: "Este é um disco de alguém que esteve fechado sobre si mesmo e está de novo a tentar entrar no mundo - não porque queira, mas porque a isso foi obrigado - e a tentar resolver problemas. Obviamente, não é um caminho cheio de felicidade". Isto lembra-vos alguém?

A chatice da classe média

O método de trabalho dos National é simples: os gémeos Dessner mandam a Berninger malhas de guitarras por e-mail, e às que o barítono diz que sim toda a banda se junta para recriar o material. Como Berninger reescreve obsessivamente as letras as canções acabam por levar milhentas voltas.

Os gémeos Bryce a Aaron Dessner são os mais musicais da banda, no sentido em que são os que têm mais preparação académica. Bryce estudou na Yale School of Music e, segundo o "New York Times", Steve Reich - com quem já colaborou - é fã da banda.
"O que trabalha mais é o Bryce. O Bryan é o mais emocional. Eu sou o mais chato", dizia Berninger no Sudoeste.

Para "High Violet" excederam-se na sua obsessão com fazerem algo novo. Berninger recusou uma vintena de esquissos de canções porque eram dedilhadas. Queria guitarras eléctricas e deu como definição do som: "alcatrão quente".

"Tínhamos feito alguns dos melhores dedilhados que alguma vez ouvi", disse Bryce. "E ele atirou-os todos para o lixo". Todos não: um ou outro ouvem-se em fundo em duas ou três canções.
Para algumas canções gravaram 80 versões, para no fim acabarem por voltar ao som das demos iniciais.

"Acho que nos cansámos da perfeição sónica de 'Boxer'. Estava tudo demasiado perfeitinho. Queríamos um pouco mais da sujeira de 'Alligator'", explica-nos Berninger, sem reparar no paradoxo que é fazer 80 versões de uma canção porque não quer tudo perfeitinho.
"Houve uma grande procura da forma ideal das canções, mas no fim acabámos por voltar às demos, por achar que a base das canções estavam lá". Canções como "Terrible love" ou "Little faith" têm "grandes partes que foram retiradas das demos iniciais", mesmo que depois os arranjos de cordas ou os coros ou os metais tenham sido gravados em estúdio.

Na realidade, reconhece Berninger, "a maior parte das canções são as mais complexas que alguma vez escrevemos, têm coros, metais, cordas, mas queríamos manter o som sujo que tínhamos feito no início".
Isto é um eufemismo para a carga de trabalhos que tiveram. No fim acabaram por aproveitar "uma bateria daqui, uma guitarra dali" para conseguirem o tal som que ele imaginava: "Uma combinação do sujo primordial com meticulosas e sofisticadas harmonias posteriores".
O que é importante notar aqui é a obsessiva ética de trabalho dos rapazes: levam o perfeccionismo ao limite. Como se não bastasse, funcionam em democracia - isto é, uma canção só vai para a frente se todos estiverem satisfeitos. O que por vezes leva a que todos tenham vontade de se aniquilar mutuamente.

"Fomos educados a fazer o que está certo", diz Berninger. É filho de um advogado que, por alguma razão, cismou em viver nos piores bairros de Cincinnati. E é esta a diferença entre Matt e os restantes: nenhum deles teve uma infância difícil, mas Matt viu o que outros não viram.

Lê-se em todas as entrevistas e nota-se em conversa com eles: a cisão entre "ser normal" (ditame que qualquer filho de classe média conhece bem) e "fazer bem" (ditame que qualquer filho de classe média conhece bem) é neles levada ao expoente máximo. É essa ascensão de classe média que viu o lado sujo que os leva a querer manter as canções, por mais experimentais que sejam, sempre do lado mais directo possível.
Por exemplo: quando os manos se põem com experiências artísticas e as enviam por e-mail para Berninger, ele manda-os passear. Ao "New York Times" Aaron dizia que "para ele tem de ser sempre uma experiência emocional". Berninger não quer cá experiências artísticas só porque sim. É como se se vigiasse constantemente. É o dado mais importante acerca dele: a hiper-activa auto-consciência de Berninger. Longo monólogo de um vocalista quando mencionamos "auto-consciência":
"A auto-consciência é uma grande parte das canções dos National. A ansiedade existente em todas as situações vem da auto-consciência. De não se gostar de como se está nessas situações, de se desejar ser melhor, mais simpático, mais bem falante, mais à vontade. De não se saber como reagir - seja no trabalho ou na família. Essa auto-consciência da falha mói muito, está sempre presente. É acerca de, no fundo, não se ter muita auto-confiança. E é daí que vem a tristeza e a raiva que há nestas canções - das mesmas coisas que obcecam toda a gente: queremos ser mais românticos e agradar à nossa mulher, queremos ser mais simpáticos, queremos ser menos medrosos. E é muito difícil ser tudo isso. Por isso julgamo-nos constantemente. Tudo isto implica muito trabalho: não é fácil amarmos a nossa mulher, os nossos pais, os nossos filhos, os nossos amigos. Não é fácil sequer amarmo-nos. E isso acarreta ansiedade. Que, no fundo, pode ser muito positiva, porque funciona como um balanço dos prós e dos contras, como um alerta que nos impulsiona a fazer alguma coisa".

Este é o fio condutor dos discos dos National: a auto-consciência. Por mais aberto ao mundo que "High Violet" seja, é essa auto-consciência que traz grandiosidade à banda.

Sim, em "High Violet" há mais mundo. Mesmo numa canção como "Sorrow", "que é uma celebração da tristeza, que é sobre alguém que é triste desde sempre mas gosta da sua tristeza, que precisa dela", há um distanciamento maior.

Mesmo numa canção tremenda como "Afraid of everyone", que é sobre o medo da paternidade, esse medo é escudado num olhar mais frio, "uma espécie de estado de coisas entre as pessoas normais na América: de um lado temos os liberais, do outro os conservadores e vivemos bombardeados por esta dicotomia extremada, sem saber no que acreditar".

O medo da paternidade, revelado na frase "with my kid on my shoulders/ I'll try not to hurt anybody I love", é investido de uma outra grandeza: esta torna-se uma canção "sobre não magoar os outros estando disposto a tudo para defender a família. Põe-se a criança aos ombros para a proteger e tenta-se não ferir os que estão ao lado. Quando se tem filhos as prioridades mudam e há uma ideia de guerra contra tudo o que possa ferir ou separar-nos das crianças, mas tem-se de evitar essa guerra".

Mas isto são os National e a seguir a essa frase vem 'But I don't have the drugs to sort this out'. O que significa isto? "É simples. É que não faço a mínima ideia como resolver este dilema". Qual dilema? "Tudo isto".
"Nós só estamos a deitar champanhe para dentro das sombras", diz Berninger. "Isso revigora-nos".

Depois o agente corta a chamada. Nós cá em baixo abrimos a boca e engolimos o champanhe.