Um caso de política

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Aconteceu em França no fim dos anos 90. Ficou conhecido como o caso do sangue contaminado. Centenas de hemofílicos contraíram o vírus da sida depois de terem recebido transfusões de sangue. O escândalo assumiu enormes proporções políticas e mediáticas e gerou um processo-crime contra duas personalidades públicas: o antigo primeiro-ministro Laurent Fabius e a ministra dos Assuntos Sociais, Georgina Dufoix.

Foi esta mesma Georgina que à época soletrou uma frase que fez História: "Responsável mas não culpável". O que é precisamente igual a dizer: assumo a responsabilidade pelo que aconteceu, mas não me podem imputar a culpa de qualquer crime. (Se bem se lembram, Jorge Coelho disse algo parecido, após a queda da ponte em Entre-os-Rios).

Em Portugal também tivemos um caso semelhante, que implicou hemofílicos, plasma assassino e um processo estapafúrdio contra a ministra da Saúde de Cavaco Silva, Leonor Beleza, e o seu secretário de Estado. Foi quase idêntico, uma vez que tanto em França como em Portugal se tentou punir um erro político e técnico do ministério mediante uma acusação criminal dirigida contra responsáveis políticos que, não tendo qualquer intervenção concreta no sangue contaminado, ocupavam ainda assim o topo do Governo ou do ministério.

Sempre que se fala de judicialização da política, são casos como este do sangue contaminado que se tem em vista. Casos em que a via criminal é abusivamente escolhida para trazer um governante à responsabilidade por aquilo que fez ou deixou de fazer. Casos em que são os juízes e os procuradores públicos a fazerem o que, numa democracia, deve ser prerrogativa das oposições e dos parlamentares.

A serem responsáveis, aqueles políticos eram-no politicamente, nunca criminalmente. No entanto, a fuga para a responsabilidade criminal tinha uma explicação: responder ao que o jurista francês, Olivier Beaud, designou por "regressão da responsabilidade política". Quando os instrumentos de responsabilização dos políticos estão em crise ou não funcionam, a tentação de usar os tribunais dispara. Esta é a verdadeira judicialização da política.

Ora, muito se tem falado entre nós dessa judicialização da política, a respeito da comissão de inquérito ao negócio PT/TVI. Já o li em textos de Pedro Adão e Silva ou da politóloga Marina Costa Lobo. E não tem havido dia em que o PS não ameace bater com a porta, considerando que os deputados, sobretudo do Bloco e do PSD, actuam como juízes e justiceiros e acusando-os de quererem transformar o Parlamento numa instância de recurso judicial.

Há certamente aqui um equívoco. Quando surge um escândalo como o caso TVI, que tem óbvias ramificações políticas e também judiciais, por causa dos indícios extraídos das escutas do caso Face Oculta e entretanto já arquivados, o mundo da política e o mundo da justiça não podem ser vistos como estanques castamente separados.

É com esse pressuposto, por exemplo, que a lei permite aos membros duma comissão de inquérito solicitar documentos judiciais. Não se trata de misturar justiça com política, mas de garantir a eficácia de um processo de responsabilidade que, sem visar o apuramento de ilícitos criminais, procura determinar factos politicamente censuráveis, mesmo recorrendo a elementos nas mãos da justiça.

A comissão de inquérito não se destina a outra coisa que não seja verificar responsabilidades políticas dos intervenientes, entre eles José Sócrates. E tem de o fazer até ao fim.

Porque, conforme sucedeu em França ou em Itália, não foram os parlamentos nem as comissões de inquérito que conduziram à judicialização da política. Foi a ausência dessas comissões, foi a passividade dos seus parlamentos no escrutínio das figuras políticas. A comissão de inquérito PT/TVI não significa a judicialização, mas o antídoto contra a judicialização. Abafem-se os casos de política e teremos todos mais e mais casos de polícia. É um aviso. Jurista

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