Garzón, o homem sem medo

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Exposição de fotografias de vítimas do franquismo ANDREA COMAS/REUTERS

Em todo este caso há um cruzamento de personagens, choque de personalidades e uma legião de ofendidos: os acusados pelos juiz mais popular de Espanha. O homem que queria a extradição de Pinochet "está em baixo, mas não se entrega", afirma quem diariamente priva com ele.Em todo este caso há um cruzamento de personagens, choque de personalidades e uma legião de ofendidos: os acusados pelo juiz mais popular de Espanha. O homem que queria a extradição de Pinochet "está em baixo, mas não se entrega", afirma quem diariamente priva com ele. Por Nuno Ribeiro, em Madrid

Está na ribalta desde 1988, quando chegou à Audiência Nacional de Madrid, o tribunal que investiga e instrui os processos contra o terrorismo. Teve um percurso fulgurante, contraditório e ímpar. Venerado e odiado. Agora, o juiz que quis extraditar Augusto Pinochet e emitiu um mandado de captura contra Bin Laden vive momentos amargos. No horizonte está o fim da sua carreira como magistrado, acusado de prevaricação por ter reivindicado competências que não tinha no processo das vítimas da repressão franquista. Este é o perfil de Baltasar Garzón, o mal-amado.

"Atrais a atenção e a partir daí és transformado em estrela, numa vedeta, em protagonista mediático." Nesta frase do seu livro Um Mundo Sem Medo, publicado em 2005, Garzón defende-se dos que lhe atribuem um excessivo desejo de protagonismo. Uma preocupação tardia. Na verdade, sempre esteve sob os holofotes. O que se deve à forma peculiar de dirigir os casos que investiga. "Ele é muito polícia, gosta de estar presente nas operações policiais, devia ser magistrado do Ministério Público", aponta um especialista de tribunais, um crítico do juiz, que prefere o anonimato. "A maioria dos amigos de Garzón não são juízes, são polícias", corrobora um apoiante do juiz. Que também pede discrição. Num campo e noutro existe a consciência de que nunca como agora a inimizade como a proximidade a Baltasar Garzón devem ser cuidadosamente administradas. No edifício da Audiência Nacional da Calle Génova, as amizades dos colegas são escassas. Não chegam aos dedos de uma mão: são os juízes Santiago Pedraz e Fernando Andreu e a magistrada antiterrorismo Lola Delgado. Por isso, foi natural que, no casamento da filha de Garzón, no Verão de 2008, nos montes do Pardo, oficiado pelo alcaide de Madrid, o conservador Alberto Ruiz Gallardón, fosse maciça a presença de polícias. "Estava lá a cúpula da polícia de investigação, os seguranças eram tantos que parecia uma cimeira europeia", ironiza um dos convidados.

Nas primeiras páginas

A forma própria de investigar, que é reconhecida a Baltasar Garzón, está na origem de que ao 5.º Juízo da Audiência Nacional de Madrid, de que é titular, cheguem os processos mais importantes. Não é por capricho do juiz, submetido, como todos os seus pares, ao sorteio dos processos. Mas por desejo dos agentes, que, por vezes, apenas tramitam os casos à Audiência Nacional quando Garzón é juiz de turno. Preferem a sua forma de trabalhar. Apesar das estritas normas por ele impostas. "Não tolera que se façam irregularidades", relata um seu defensor: "Os seus presos em regime de incomunicação em dependências policiais estão sempre a ser filmados para garantir que não são torturados."

A exposição pública foi, assim, ganha a pulso pela sua intervenção em casos de grande repercussão. Na memória está o acolhimento das associações galegas das mães contra a droga quando Baltasar Garzón, chegado de helicóptero, entrou num dos barcos dos narcotraficantes acusados na Operação Nécora, nos anos 90. "Garzón, vales um montón", gritaram-lhe no porto de Vigo. A Galiza vivia a evidência de que o crime compensa: os "narcos" acumulavam fortunas bem visíveis na compra de "paços" medievais, de hectares de boa vinha de alvarinho ou de espampanantes iates e carros desportivos. Era um segredo de polichinelo nas Rias Baixas que o dinheiro provinha da cocaína com origem na Colômbia. Crime, portanto. Mas sem castigo. Por isso, aquele aplauso a Garzón, que dirigiu a acção de 350 agentes a partir da esquadra de Villagarcia de Arosa. "É um juiz de garantias, que tem sempre presente as vítimas", assegura um amigo de décadas.

Tem sempre a mesma forma de actuar. Na noite de domingo 13 de Dezembro de 1992, pelas 23 horas, apresentou-se na sede da Direcção-Geral da Guardia Civil em busca de provas contra responsáveis da Unidade Central de Investigação Fiscal e Antidroga. Permaneceu nas instalações até às cinco da manhã do dia seguinte e abriu o Caso UCIFA, que levou à condenação de um coronel, um tenente-coronel e vários sargentos por indução ao narcotráfico. A espectacularidade da acção e a notoriedade dos afectados, dirigentes de um corpo de segurança, deram-lhe as primeiras páginas dos jornais. "É um homem independente, faz o que acha que deve fazer, não é um tipo que venere o poder", acentua um seu apoiante. Mas esta forma de agir provocou-lhe a distância de muitos colegas. Em causa, diferenças de procedimentos e, já então, acusações de protagonismo. Vindas mesmo dos que, como ele, estiveram na progressista Associação Juízes para a Democracia.

As divergências surgem, também, pela forma como instrui processos e despacha os procedimentos. Em Portugal, houve queixas pela forma como estava redigido o pedido de extradição de Teletxea Maia, o basco acusado pela justiça espanhola de ser membro do aparelho de "mugas", encarregue de facilitar aos "comandos" a passagem da fronteira hispano-francesa. Teletxea não foi extraditado e continua no nosso país. "A má fama que tem como instrutor de processos não corresponde à realidade", afirma um seu defensor. "As suas investigações acabam sempre em macroprocessos, com grandes dimensões e algo desordenados", justifica. Os críticos, no entanto, referem o recurso excessivo às prisões preventivas. "Garzón não era metódico, ganhou o método com o tempo e tem grande capacidade de trabalho", contrapõe um amigo. No seu livro Um Mundo Sem Medo, ao estilo de confissão autobiográfica, o juiz defende-se: "Sou consciente de que, em muitas ocasiões, os ataques são parte de uma estratégia de provocação dos afectados para me inutilizarem como juiz instrutor."

Os anjos de Charlie

Tudo se precipitou em 1993. Em véspera das eleições de 6 de Junho, com os socialistas submersos em casos de corrupção - do Banco de Espanha à Guardia Civil -, Felipe González é seduzido por uma ideia. José Bono, então presidente do Governo regional de Castela-La Mancha, reúne uma série de notáveis da sociedade civil num almoço na quinta Quintos de Moura, em Toledo. No repasto desse sábado 15 de Abril está Garzón. González convida-o para as listas, e o juiz é o "número dois" pelo círculo de Madrid, a seguir ao dirigente socialista e à frente de um peso-pesado do partido do punho e da rosa, Javier Solana. Os socialistas ganham as eleições e, em 30 de Julho, Baltasar Garzón é nomeado delegado do Governo para o Plano Nacional sobre Droga, com a categoria de secretário de Estado. As mães galegas rejubilam, mas o juiz não está contente. Não tem o controlo sobre a investigação policial ao narcotráfico. A saída de Antoni Asunción de ministro do Interior e a chegada de Juan Alberto Belloch, que acumula as pastas do Interior e da Justiça, devolvem Garzón ao confronto entre pares. Belloch, que passou para a história política espanhola como "ministro duplex", é magistrado de profissão. E um dos críticos dos métodos do juiz. O choque está garantido.

Apesar do melindre da situação e de um Executivo sobre pressão que pretendia recuperar a confiança dos cidadãos no Estado, as desavenças são públicas. Com o novo "biministro" chegam três mulheres conhecidas como "os anjos de Charlie" de Belloch, numa apropriação espanhola da série televisiva da cadeia ABC norte-americana: a advogada Paz Fernandéz Felguerosa, a então secretária judicial Maria Teresa Fernández de la Vega, hoje vice-presidente do Governo de Rodríguez Zapatero, e a juíza Margarita Robles. As três são distantes de Baltasar Garzón.

Poder x 3

O juiz não está cómodo. Pergunta ao novo ministro qual é a sua situação. Indaga sobre as suas competências. Alega que tem que administrar os seus tempos. "Quem administra os tempos neste ministério sou eu", responde-lhe Juan Alberto Belloch. Em 6 de Maio, Garzón anuncia a sua demissão. Três dias depois entrega a acta de deputado e abandona o Parlamento. Passam duas semanas e regressa ao 5.º Juízo da Audiência Nacional. Em menos de um ano alucinante, Baltasar Garzón passou pelos três poderes do Estado democrático: legislativo, como deputado; executivo, como membro do Governo; judicial, no regresso ao seu juízo no edifício da Calle Génova.

Garzón retoma as investigações aos Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL), a rede de terrorismo de Estado contra a ETA. Há surpresa nos socialistas. Mas a sociedade espanhola, refém da sua tendência bipolarizadora, não questiona o passagem imediata, sem período de nojo, de um político à sua função originária de juiz. Os que hoje o criticam, aplaudiram. Os que agora o defendem, então censuraram. No final das investigações aos GAL, José Barrionuevo, antigo ministro do Interior de Felipe González, e Rafael Vera, ex-secretário de Estado, são condenados a dez anos de prisão por envolvimento no sequestro do cidadão francês Segundo Marey, que foi confundido com um etarra. Razão pela qual, comentando a actual situação do juiz e a possibilidade do fim da sua carreira, Barrionuevo não teve reparos. Acusou-o de golpista. "Surpreende-me que pessoas próximas ao PSOE apoiem Garzón", lamentou. A atribuição, no organigrama reconstruído por Baltasar Garzón, da paternidade dos GAL a um "senhor X", apontando ao chefe do governo González, provocou nos socialistas uma quebra de credibilidade que favoreceu a vitória de José María Aznar em 1996. Só recentemente, num encontro de muitas horas, fortuito e num espaço limitado, Felipe González e Garzón quebraram o gelo. Foi em 2003, num voo de regresso de Nova Iorque a Madrid.

Apesar destas vicissitudes, o juiz sempre contou com a estima dos responsáveis do Ministério do Interior. Com Aznar no poder, Baltasar Garzón manteve uma boa relação com o ministro Jaime Mayor Oreja. Insuficiente para que o Governo dos conservadores o apoiasse para chegar ao Tribunal Penal Internacional. Ou que presidisse à Audiência Nacional. As críticas públicas à presença de Espanha no "trio dos Açores" e a sua oposição à guerra do Iraque irritaram José María Aznar. Agora, as suas investigações à "rede Gurtel", a corrupção de dirigentes conservadores, colocaram-no na mira do Partido Popular. "Zapatero respeita-o mas não o apoia, o único apoio que tem no Governo é do ministro do Interior, Alfredo Pérez Rubalcaba", afirma um amigo.

Na base da estima de Oreja e Rubalcaba estão as investigações do titular do 5.º Juízo da Audiência Nacional sobre a ETA. Não, apenas, por Garzón ter sido, em 1989, o primeiro juiz espanhol a ir a França interrogar etarras. Mas por uma investigação inédita: a ETA e o braço político Batasuna formavam parte de uma estrutura comum, a coordenadora KAS, que era dirigida pela ETA. Seguindo esta pista, o juiz chegou a toda a complexa rede da organização terrorista: das juventudes ao aparelho internacional, das finanças ao sector político, que acabou por ser ilegalizado. O cerco aos etarras apertou-se drasticamente, muito para além da estrutura militar, dos "comandos". Nas paredes do País Basco surgiu a resposta: o nome de Garzón começou então a aparecer no centro de um alvo. A ETA confessava-se tocada.

Um homem de confronto

Não é por acaso que Baltasar Garzón é o juiz da Audiência Nacional com mais medidas de segurança. Cada trajecto da sua residência de classe média nos arredores, em Pozuelo de Alarcón, à Calle Génova, de Madrid, envolve muitos meios. A vida deste homem de 54 anos, casado e com três filhos, é "acompanhada" por uma legião de seguranças. Na sua moradia há vigilância permanente da Guardia Civil, com guarida incluída. Insuficiente, no entanto. Há anos, o seu cão, um dissuasor pastor-alemão, apareceu drogado. E, na cama do juiz, alguém deixou uma casca de banana.

O reconhecimento internacional surgiu, em 1998, com o pedido de extradição de Augusto Pinochet, então de visita a Londres. Um caso que desconcertou os britânicos, embaraçou a diplomacia espanhola de Aznar e arrasou a credibilidade de Margaret Thatcher: a "dama-de-ferro" da democracia-farol da Europa era amiga de um ditador. Esta dimensão popularizou-o. Mas ele já seguia um exemplo. "Sempre considerei Falcone um grande profissional e um modelo", confessa no seu livro. Admirador, portanto, de Giovanni Falcone, o magistrado antimáfia, assassinado em 23 de Maio de 1992 num brutal atentado com mil quilos de explosivos na auto-estrada entre o aeroporto e a cidade de Palermo, na Sicília. Garzón tem em comum com Falcone a frontalidade. Como o italiano, é um homem de confronto.

Esta característica do juiz espanhol, tão evidente, é colocada em segundo plano. Criticam-lhe o protagonismo, a vaidade mesmo. "Depois de pôr Pinochet de joelhos, como é que isso não sobe à cabeça?", justifica um amigo. Mas não foi por auto-suficiência que Baltasar Garzón aceitou o requerimento dos familiares das vítimas da repressão franquista. No seu livro apresenta-se como um homem que interpreta um papel e aceita o sacrifício que tal exige. Na versão popular, um justiceiro. E a lei da memória histórica, com a qual o Governo de Zapatero quis reparar os vencidos da Guerra Civil e de décadas de repressão, foi insuficiente. Daí a iniciativa do juiz, agora considerada prevaricação, por ter assumido competências que não tinha.

Neste caso há um cruzamento de personagens adversas ao juiz. "O Governo está contra ele porque, ao levar para foro criminal tudo o que está relacionado com a memória histórica, rebentou com a lei que foi obra de Fernandez de la Vega", assinala um apoiante. De la Vega, vice-presidente de Zapatero, é um "anjo de Charlie" de Juan Alberto Belloch, o "ministro duplex" de 1993, com o qual Garzón chocou. Outro membro daquele trio de mulheres é Margarita Robles, actual juiz do Tribunal Supremo, cuja objectividade foi posta em causa por Baltasar Garzón. E Luciano Varela, que instrui o processo por prevaricação, foi colaborador de Belloch e fundador da AssociaçãoJuízes para a Democracia, que sempre criticaram o protagonismo do titular do 5.º Juízo da Audiência Nacional. Apesar de Varela ter colaborado na Galiza com Garzón na Operação Nécora e de então ser conhecido como "guerrilheiro da justiça".

Sempre quis ser juiz

"Ele, que está sempre acima de tudo, está em baixo", reconhece quem priva diariamente com o juiz. "Mas não se vai entregar", assegura. Para além do processo da memória histórica, contra Baltasar Garzón foram admitidos outros dois. O Supremo terá de decidir sobre as escutas mandadas efectuar pelo juiz às conversas entre advogados de defesa e acusados do Caso Gurtel. Ainda tem de responder pelos delitos de suborno e prevaricação por ter arquivado um processo contra Emilio Botin, presidente do Banco de Santander, entidade que patrocinara umas suas conferências no Centro Rei Juan Carlos da Universidade de Nova Iorque. Neste episódio, por não ter preferido inibir-se, dado o antecedente do patrocinador. Em causa está o seu futuro como juiz. Uma opção de jovem. A de um filho de um trabalhador do posto de gasolina O Cerro do Fantasma, em Torres, no centro da província andaluza de Jaén, que passou pelo seminário. E que, no dia 25 de Abril de 1974, na Universidade de Sevilha, resistiu à polícia que lhe queria apreender um cravo vermelho que levava entre as folhas do manual de Direito Civil.

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