Ética das virtudes

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Um comportamento desonesto isolado pode não ter grandes efeitos, mas se é replicado os efeitos são terríveis

Segundo a teoria política tradicional, a política liga-se ao poder mas não à ética; a política é a luta pelo acesso ao poder e pela manutenção no poder, e, dentro de determinados limites, os fins justificam os meios. Não é censurável, por exemplo, que um político não cumpra a palavra dada ou que minta, se isso for vantajoso para si. Foi o que brilhantemente ensinou Maquiavel. O tempo passou e a civilização acrescentou que aqueles comportamentos não são censuráveis, se não violarem a lei.

As preocupações com a ética na política são recentes e, sendo verdade que influenciaram, nem sempre de modo explícito, a construção social da política, não foram muito longe. Por exemplo, existem em Portugal, tal como nas outras democracias ocidentais, mecanismos de prevenção e controlo da acção política, num quadro de negociação permanente entre os políticos e os cidadãos e em que estes têm a última palavra através do voto; mas se não é censurável recorrer à mentira ou à desonestidade, desde que se respeite a lei e se tenha o apoio político legítimo baseado no voto popular, como é que se prevê e controla a acção política? Se a democracia é apenas uma negociação entre os políticos e os cidadãos, basta que aqueles dêem a estes o necessário para que não mudem o seu sentido de voto. Os políticos têm muitas vezes a percepção de que o poder é ético apenas na medida em que sejam capazes de gerir bem o interesse público, o que, sendo verdade, porque a política implica resultados, não é fácil de prever nem de saber pelos cidadãos. É por isso que o poder político deve ser controlado por outros poderes, designadamente pelos tribunais. Mas isso também não é suficiente, se os poderes do Estado não forem realmente autónomos e, em última instância, se as pessoas não forem capazes de os controlar. Isto é que faz com que uma sociedade seja democrática, porque se baseia num direito que se aplica igualmente a todos e é fonte de confiança. Nesta matéria é irrelevante discutir se o homem é bom ou mau por natureza; o que é necessário é tornar evidente para todos, de acordo com um conjunto mínimo de regras por todos conhecidas, quais são as coisas boas e más que se fazem, de modo a premiá-las diferentemente. Quem falta à palavra dada ou mente ou não faz o que lhe é pedido, por falta de preparação ou de cuidado, pode prejudicar todos. Já quem se prepara e esforça no seu trabalho pode beneficiar todos. E é isso que normalmente acontece, porque em sociedade os comportamentos individuais tendem a ser semelhantes. Um comportamento desonesto isolado pode não ter grandes efeitos, mas, se esse comportamento é replicado, os efeitos são terríveis. Só com esta percepção temos consciência de que o fundamento do sistema político é ético.

Não há razão para considerar de maneira diferente os políticos e as pessoas comuns, porque é o mérito que justifica a posição relativa de todos em sociedade, independentemente do que façam. O mérito é, etimologicamente, o salário ou o preço devido por um trabalho equivalente; é uma conduta em relação a uma ou mais pessoas e é o que justifica a política. Esta justificação é ética porque não é justo privilegiar os vícios mas apenas as virtudes.

O que é a ética das virtudes e de que modo se relaciona ela com o poder? A ética das virtudes estabelece o que é bem e o que é mal numa sociedade em função do mérito ou das qualidades das pessoas. Uma pessoa é eticamente virtuosa ao orientar ou ao deixar-se orientar pelo que é humanamente valioso, como, por exemplo, a coragem ou o amor aos outros ou à verdade. O poder é, neste sentido, uma atitude orientada para o que se ganha agindo bem, sabendo que agir bem comporta sempre o risco de perder e, portanto, o sentido do risco. Só quem sabe que pode perder uma eleição tem mérito ao tentar ganhá-la, e é isso que justifica as eleições livres em democracia, porque só assim se respeitam os adversários e os concidadãos. Não é diferente do que se passa num concurso académico ou numa relação laboral normal. Quem age assim tem uma boa formação técnica, moral e cultural, que é o que faz a diferença em sociedade e está na base do nível de vida e de governação dos países. Não basta obedecer à lei, se ela não for justa, o que depende da sua aplicação. Mas a aplicação não é justa, se a lei não for conhecida por todos.

A política está relacionada com o poder, mas com um poder que é relativo, porque se dirige e depende da apreciação dos outros. E que se traduz no poder ganhar, não no ganhar a qualquer custo. Neste sentido, a política (ou pelo menos a boa política) está ligada ao poder mas também à ética. Professor universitário (relvaocaetano@gmail.com)

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