As casas que o povo quis

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Fevereiro de 1975: ocupação de apartamentos devolutos de particulares enric vives-rubio

Não foi o mais impressionante dos fenómenos sociais que se incendiaram com o rastilho do 25 de Abril de 1974. Mas mantém-se vivo hoje: mais de três décadas depois, ainda há quem viva nas casas ocupadas nos primeiros anos de liberdade. E quem tente repetir a estratégia em tempos de crise.

Esta não é a imagem que fazemos de um revolucionário, um militante e activista da esquerda mais à esquerda, um homem que enfrentou o fascismo, subiu às nuvens com a revolução de Abril de 1974 e lutou sempre pelos seus ideais. Um camionista. Não é a imagem que fazemos, mas é a que temos à frente. Álvaro Guerra, 57 anos, está a chorar. Emociona-se ao recordar os tempos em que o povo saiu à rua... para se meter dentro de casa.

Nas lágrimas de Álvaro, primeiro discretas, depois assumidas, silenciosas sempre, estão todos os sinais da alma efervescente deste antigo habitante de um bairro de barracas que um dia apontou aos vizinhos o caminho para uma habitação melhor. A 1 de Maio de 1974, milhares de pessoas ocuparam os prédios da então chamada Zona I de Chelas, Lisboa. Foi um dos mais maciços processos de ocupação em Portugal, porque em causa estavam torres de nove andares, muitas delas ainda em construção.

"Uma vez, em Trás-os-Montes, houve uma pessoa que disse: "Se nós temos uma casa, é graças a este homem"..." Hesita, volta a limpar as lágrimas, prolonga o silêncio. "Não ponha isto, não ponha isto", completa, embora sem grande convicção. Álvaro não tem vergonha do que fez, tem muito orgulho. E, por isso, a sua discrição (a mesma que o leva a não querer ser fotografado) não se deve ao arrependimento ou ao pudor que tolhe tantos dos seus pares na altura, agora que passaram mais de três décadas e o país está tão diferente. "Para pior."

Para este militante de extrema-esquerda, que conseguiu iludir a tropa até acontecer a revolução e participou em acções de luta contra o regime de Marcello Caetano, aparecer nas páginas de um jornal representa um protagonismo que dispensa. "Só apareci uma vez, ao lado do Spínola... Mas foi sem querer, apanharam-me ali..." Álvaro Guerra estava na primeira fila dos que foram recebidos pelo então presidente da Junta de Salvação Nacional, o organismo que dirigiu o país até à formação dos primeiros governos provisórios.

Conhecendo agora o pensamento político de António de Spínola, não é difícil imaginar que o velho general não estivesse propriamente feliz por se ver rodeado de revolucionários barbudos que procuravam legitimar o movimento de ocupação de casas em vários bairros lisboetas. Custou-lhe, certamente, mas recebeu-os em Belém. Que um grupo de populares entre em catadupa pelo gabinete do mais alto responsável da nação dá-nos uma boa noção dos tempos especiais que se viviam.

"Vivia-se um clima de subversão geral, que sustentava um movimento fortíssimo pelo direito à habitação", avalia Helena Roseta, arquitecta e vereadora da Habitação na Câmara Municipal de Lisboa. "Em termos de generosidade e esperança, viveu-se nesta época algo de extraordinário, que só consigo comparar com duas outras ocasiões: a queda do Muro de Berlim, em 1989, e Timor, dez anos depois. São momentos únicos, onde tudo parece possível."

Esta euforia geral, canalizada pelos activistas políticos nas direcções que consideravam estrategicamente mais importantes, levou a incríveis movimentos de massas. Indústrias geridas pelos trabalhadores, propriedades agrícolas tomadas aos proprietários, movimentos estudantis a condicionar as avaliações escolares, casas ocupadas. O cenário é de anarquia, mas a anarquia não é um ideal muito confortável para o pacato povo português...

O que fica da euforia

"Costumo dizer que os políticos portugueses não sabem o povo que têm! Temos um povo incrível na sua capacidade para aguentar e enfrentar a mudança sem acessos de violência", analisa Helena Roseta. Houve, claro, episódios de violência, num cenário global de tensão político-social. E com as instituições fragilizadas. "A relação do cidadão com a autoridade era completamente diferente da actual", explica Manuel Salgado, arquitecto, vereador do Urbanismo na CML e antigo membro de uma comissão de moradores.

"O MFA [Movimento das Forças Armadas] era o libertador, a GNR e a PSP eram conotadas com o antigo regime. Quando as pessoas ocupavam bairros sociais, quem é que ia defender aquilo?", interroga-se Luísa Tiago Oliveira, professora de História Contemporânea no ISCTE, em Lisboa. "Houve uma altura, em Setúbal, que a segurança das ruas era assegurada por elementos da LUAR", reforça Manuel Salgado.

Ora, a LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária, um movimento político fundado em 1967 para combater o regime fascista em Portugal) era um dos protagonistas mais activos no campo das ocupações. "Na verdade, houve muitos casos em que quem tomava a iniciativa de ocupar achava que se pusesse a bandeira da LUAR à frente era como se tivesse um guarda-chuva...", estima Camilo Mortágua, um dos históricos líderes do movimento liderado por Palma Inácio.

Como a sua área de intervenção era "mais rural", Camilo Mortágua não se recorda de ter participado em ocupações no meio urbano. Mas destaca o critério do seu movimento de ocupar "casas que pudessem ser postas ao serviço da população, enquanto equipamentos sociais". A 28 de Fevereiro de 1975, foi tomado pela LUAR um palacete na Cova da Piedade, margem sul do Tejo, que seria depois transformado em clínica, com sala de partos e cuidados materno-infantis. Este episódio é apontado como pioneiro na vaga de ocupações que se seguiu, mais viradas para o bem colectivo. "Havia, na LUAR, algum orgulho nessa iniciativa", relembra Camilo Mortágua.

Vinha aí o Verão Quente de 75 e uma nova onda de ocupações de casas. Mas terá o fenómeno sido assim tão significativo? Luísa Tiago Oliveira: "Numericamente, foi muito menos importante do que se pensa - o número de fogos ocupados, por comparação com o total nacional, é reduzido. Mas simbolicamente foi muito importante, porque pôs em causa o direito à propriedade."

Para os ideólogos dessa luta, foi também o único campo onde puderam reclamar vitória, embora parcial, em muitos casos. A reforma agrária revelou-se um fracasso, as empresas voltaram para a mão dos seus proprietários, a vida social normalizou-se. Mas as casas ocupadas continuaram a ser do povo. O que talvez se possa explicar pela forma como o espírito das comunidades locais "continua bem vivo". "Pelo menos em Lisboa, nos bairros sociais, ele está lá", constata Helena Roseta. "E é o que nos fica do espírito do 25 de Abril. Isso e a liberdade."

A vida em Chelas

O que nos leva de volta a Chelas, ao bairro de Álvaro Guerra e dos seus vizinhos Pedro Alves, 49 anos, e Maria de Lurdes Fernandes, 69, que se juntam à conversa na escadaria exterior do prédio, a claridade do sol a esconder-se por trás dos prédios, pardais chilreando intensamente, naquela irrequietude que lembra a dos miúdos quando antecipam o momento de ceder ao sono.

Pedro mudou-se para aqui em 1974, vindo de Sacavém, pela mão dos pais. Hoje, este funcionário do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica diz ter abandonado a militância partidária, mas continua a ser activista e um feroz entusiasta da preservação dos registos históricos da época pós-revolução. Em sua casa colecciona recortes de jornal, documentos, registos. E é por ele que ficamos a conhecer melhor a história da antiga Zona I, agora Bairro das Amendoeiras.

"O projecto para urbanizar esta parte da cidade vinha dos anos 60 e já havia alguns (poucos) prédios habitados. Havia outros acabados, destinados a habitação social e situados junto à grande mancha fabril que existia aqui, na zona Oriental de Lisboa. Havia, também, muitas barracas. Grandes extensões de bairros de lata, incluindo o mais antigo do país, o chamado Bairro Chinês, em Marvila."

Foi daí que veio Álvaro Guerra, na altura um jovem ainda a caminho dos 20 anos, mas já com mulher e dois filhos. "As pessoas juntaram-se no ISEL, num plenário, e daí seguimos para a Carris, onde nos metemos em autocarros para irmos à concentração no Rossio. Depois, as pessoas dirigiram-se aos bairros e começaram a ocupar casas", relata. Apesar do enquadramento político e logístico do movimento, a organização não chegava ao ponto de destinar este ou aquele fogo a determinada família. "Quem chegava primeiro, instalava-se."

Maria de Lurdes Fernandes chegou dois dias depois de Álvaro Guerra, a 3 de Maio de 1974. "Vivia na Paiva Couceiro, numa barraca que era uma autêntica casa. Tenho muitas saudades do meu quintal!" Ela, o marido e a filha, então quase a completar 15 anos, instalam-se numa casa que está vaga. Mas os primeiros tempos são complicados: "A minha casa já tinha porta. Havia muitas que não tinham... Mas não havia fechadura. À noite, encostávamos um barrote, para ninguém entrar. O pessoal vinha à noite, batia à porta, "Esta casa está ocupada?", e depois seguiam quando percebiam que já havia lá gente."

Sim, porque no aparente caos da febre das ocupações, havia sempre uma ética subjacente. Não se tirava casa a quem a tinha ocupado. Pelo menos de forma violenta. Excepto, às vezes, quando se detectava algum caso de oportunismo, gente que ocupava dois e três fogos para depois poder vir a alugá-los... "Nos plenários eram logo denunciados e às vezes ainda levavam umas "bolachas"", recorda Álvaro Guerra.

É claro que esta lógica do cada um por si levou a situações pouco "justas", como famílias pequenas terem casas grandes e vice-versa. Ou a enganos, como o de Maria de Lurdes - "Gostava de ter escolhido um prédio com escadas interiores." O que não variava era a dificuldade do dia-a-dia para quem, como a família de Paulo Alves, se mudou "só com uns cobertores". No caso dele, um nono andar. Ainda sem água canalizada. "Era uma mangueira que vinha desde lá em baixo, toda a gente a usava à vez, para encher bidões. Apesar de tudo, existia uma grande fraternidade."

Ocupações de hoje

Foi esse sentimento que inspirou um estudante na altura. Perante as cenas de júbilo popular no então Bairro Salazar, à Ajuda (Lisboa) - passou a chamar-se Bairro 2 de Maio em homenagem à data da ocupação -, Jorge Falcato Simões, agora arquitecto, escreveu uma frase marcante: "O futuro era agora." Misto de tempos verbais, é nessa incerteza que assenta o raciocínio de alguém que, no lapso de cinco minutos, se comoveu com a emoção do povo ("Eu tenho uma casa!") e viu a utopia ruir ("Não queremos cá os ciganos!").

O sentimento de rejeição mantém-se. Fica expresso no desagrado com que alguns dos moradores do Bairro das Amendoeiras comentam o facto de haver fogos a serem ocupados por membros da comunidade cigana. Sim, porque continua a haver ocupações. Não em massa, como nos primeiros dias da liberdade, nem tendo como alvo propriedades privadas deixadas vazias, como veio depois a suceder em 1975. Mas há um registo contínuo de ocupações ilegais de casas camarárias.

Helena Roseta fala de "umas largas dezenas" de casos pendentes, num fluxo que diminuiu desde que a CML começou a reagir rapidamente a ocupações ilegais com ordens de despejo. Podem até parecer muitos, mas é preciso situar estas dezenas num parque habitacional vasto: a Câmara de Lisboa detém 26 mil fogos, cerca de 23 mil dos quais em bairros sociais.

Nestes, há "centenas de casas vazias, devido a situações diversas" que podem ir desde questões jurídicas até ao facto de os ocupantes estarem a cumprir penas de prisão. Ou terem morrido recentemente. "A informação corre rapidamente no bairro e chega aos ouvidos dos habitantes mais depressa do que à entidade que gere o parque habitacional [na maioria dos fogos, a empresa municipal Gebalis]. Isso leva a que alguém se mude imediatamente para lá, obrigando-nos depois a proceder ao despejo. Acontece principalmente com casais jovens, que precisam de casa e querem ficar junto da família", relata Helena Roseta.

Existe uma lista, extensa, na CML de candidatos a habitação social, mas as comunidades reagem mal quando um determinado fogo é atribuído a pessoas de fora do bairro, havendo gente de lá com necessidade. "Mas isto não faz sentido. E vamos fazer reuniões em todos os 78 bairros municipais [a primeira foi na passada quarta-feira] para explicar às pessoas o processo e os critérios. Nós não somos o adversário...", avança a vereadora.

Existem, portanto, ocupações nos dias que correm. A grande maioria ocorre em bairros sociais, até porque, fora deles, os edifícios que se encontram vazios estão, na maior parte dos casos, em péssimo estado de conservação. E são esses os palcos da face mais visível deste fenómeno das ocupações nos dias de hoje - os sem-abrigo e toxicodependentes instalam-se nestes edifícios devolutos, num misto de criminalidade e falta de higiene que provoca, normalmente, a reacção das comunidades locais.

Com as ocupações de casas em bairros sociais remetidas para o anonimato de quem as pratica e a discrição dos proprietários, que preferem evitar grandes publicidades ao tema, sobram para a opinião pública os casos de marginalidade e uma ou outra iniciativa de jovens, muitas vezes ligados a movimentos estéticos ou artísticos. São os "okupas", herdeiros de uma longa tradição europeia que encontra as suas raízes em cidades como Amesterdão, Berlim, Paris ou Barcelona, palcos de ocupações do género que já acontecem desde os anos 70 do século XX.

Antes do 25 de Abril

Em Portugal, também houve ocupações antes do 25 de Abril de 1974. A mais relevante de todas aconteceu em Odivelas, no Bairro do Bom Sucesso, de 11 para 12 de Maio de 1970. Moradores de um bairro de barracas ocuparam um conjunto de casas pré-fabricadas que estavam vazias há três meses. Naturalmente, e num contexto de regime autoritário, a lei não lhes deu hipóteses: foram condenados. Mas conseguiram sensibilizar o ministro Baltasar Rebelo de Sousa para a sua causa e tudo acabou por se resolver a seu favor: os ocupantes ficaram mesmo nas casas.

Com os exemplos que vinham de fora, não espanta que a ideia das ocupações fervilhasse nas mentes dos activistas políticos. Afinal, a eles cabe o papel de canalizar as aspirações mais imediatas do povo para servir os seus objectivos estratégicos. E o desejo de ter uma casa - na década de 70 havia muitos bairros de lata em Portugal - não deixava ninguém indiferente. Nem mesmo as estruturas do Estado Novo...

Com a revolução, a maré avançou, sem obstáculos imediatos. Mas cresceu de tal forma que a Junta de Salvação Nacional (JSN), ainda em 1974, tentou impor regras no que ameaçava tornar-se um caos. Havia motivações políticas, claro, por trás de todo o processo. "Foi um assunto muito agitado pelas forças que se opunham ao movimento. Nomeadamente interpelando os emigrantes: "As vossas casas em Portugal vão ser ocupadas..."", relembra Luísa Tiago Oliveira. E a verdade é que, se as ocupações maciças de bairros sociais passaram para segundo plano, a agitação do chamado Verão Quente de 75 haveria de trazer novos desenvolvimentos à história.

A JSN legalizara as ocupações anteriores ao seu decreto (191A-75), mas punha fora da lei quaisquer outras que viessem a acontecer. É verdade que, como recorda Helena Roseta, "a legalidade democrática mudava de dia para dia", mas agora começava a haver restrições. E, por isso, a vaga de ocupações que se seguiu foi mais pensada, planeada, defensável do ponto de vista ético. Camilo Mortágua: "Enquanto cidadão desse tempo, espectador, sempre tive a noção de que, quando a acção era levada a cabo, já estava planeada, não se improvisava em demasia. Sabia-se quem ocuparia, quando e como."

José Falcão, dirigente da associação SOS-Racismo e membro da Assembleia Municipal de Odivelas, confirma esta versão. "A Comissão de Moradores do Bairro do Outeiro da Vela [Cascais] tinha gente de várias sensibilidades partidárias e, talvez por isso, aguentou-se sempre. As pessoas ou ficaram nas casas ou resolveram os processos. Não houve desocupações." Havia muita gente a precisar de casa e muitos fogos vazios, segundas e terceiras habitações de famílias que não moravam em Cascais. A decisão de ocupar era feita pela população e definia-se, à partida, quem iria ficar em cada casa.

Também aqui não há registo de confrontos físicos, até porque as casas não estavam, de todo, a ser utilizadas. Tal como acontece hoje nos bairros sociais, ninguém melhor do que os vizinhos sabia quais eram as casas desocupadas. "Nunca estava lá ninguém. Nós arrombávamos fechaduras, trepávamos muros, mas as ocupações eram publicitadas, toda a gente sabia porquê e para quem", relata o então membro da comissão de moradores. Que recorda como acção mais gratificante a ocupação da Parada, onde hoje se localiza o Museu do Mar. "Houve várias comissões e mais gente a participar. E deu frutos: ficou para serviço público."

A casa d"A Comuna

Talvez o caso mais significativo das ocupações com intuito de utilização pública tenha mesmo sido a levada a cabo pela companhia de teatro A Comuna, que em Março de 1975 ocupou o palacete cor-de-rosa da Praça de Espanha, em Lisboa, antigo Colégio Alemão e abandonado havia vários anos. A forma como o fez simboliza bem os tempos que viveram nesse Portugal pós-revolucionário: "Estávamos na Avenida Almirante Reis, numas instalações emprestadas pela Sociedade Central de Cervejas, e uma noite, no final do espectáculo Era Uma Vez, do autor brasileiro Alfredo Nery Paiva, anunciámos ao público que íamos ocupar as nossas futuras instalações", recorda João Mota, director de A Comuna.

Estava tudo planeado, há muito que João Mota e alguns companheiros procuravam a localização e o edifício ideais. "Este era óptimo, embora muito degradado, e ficava junto de vários bairros pobres, o que queria dizer que havia gente a precisar da nossa ajuda." No projecto d"A Comuna, o teatro não era tudo, havia que dar ênfase a uma componente social que ainda hoje enforma as acções da companhia.

Entre muros trepados e casas arrombadas, a escolha tinha recaído naquele belo edifício propriedade da Câmara de Lisboa. Devido à construção do viaduto que agora lhe passa por cima, estava abandonado há vários anos. Os espectadores, mais de uma centena, que passaram pela Avenida Almirante Reis naquela noite foram informados sobre a estação de metro e as paragens de autocarro que serviam a Praça de Espanha e foi uma multidão heterogénea a que baptizou a nova casa da companhia de teatro.

Que, num caso emblemático de ocupação bem sucedida, ainda hoje se encontra naquelas instalações. Alguns anos mais tarde, a situação foi legalizada com a Câmara de Lisboa - "Pagamos uma renda simbólica", diz João Mota, "mas há outras companhias que nem renda pagam e ainda recebem subsídios..." E mais: o edifício de A Comuna é "a única casa ocupada para a cultura que foi legalizada".

Os primeiros tempos foram épicos. Dezenas de pessoas passaram pelas instalações, para garantirem, em jeito de piquete, a ocupação de um imóvel muito cobiçado e para trabalharem nos melhoramentos necessários à sua utilização com espaço público. "Não havia janelas, os fios da instalação eléctrica tinham sido roubados, havia lixo por todo o lado", lembra João Mota. Trabalhou-se no duro. Para limpar e arranjar o edifício e para contrariar a ideia de que se estava em presença de um grupo de marginais, "hippies e drogados antes do 25 de Abril, comunistas depois".

O nome pesava. Mas o que as pessoas não sabiam era que a companhia se chamava assim em função de um passatempo realizado na Rádio Renascença, em 1972. Os ouvintes foram chamados a escolher entre três nomes: Comuna, Cómicos ou Comediantes. Ganhou o primeiro. "Hoje, já toda a gente percebeu que não somos de partido nenhum", sentencia o director d"A Comuna. "Na antiga Grécia, o teatro era educação cívica, é essa a sua raiz. E agora, mais do que nunca, é preciso que às pessoas, às crianças, seja mostrado o mundo sensível. O mundo racional, esse, dá-se na escola."

Golpes de sorte

Mas também houve quem beneficiasse de todo este processo sem estar directamente envolvido nos processos de ocupação. Que o diga o cineasta João Botelho: "Devo às ocupações a casa que tenho há 30 e tal anos." Uma bela e vasta residência no Príncipe Real, em Lisboa, que, em 1976, pertencia a António Quadros, escritor e filho do intelectual e antigo ministro do Estado Novo António Ferro.

A herança estava à vista. João Botelho e um amigo arquitecto são contactados por António Quadros no sentido de lhe alugarem a casa, que o proprietário receava poder vir a ser ocupada e onde ainda morava uma velhota. "Era barata, mas cara para mim", confessa o então estudante da escola de cinema. Que depois de consumado o acordo se entreteve a pintar por cima das frases, "de direita", da autoria de António Ferro espalhadas pela habitação.

Como o seu amigo tinha actividade política e a casa se prolonga por um jardim interior, depressa se tornou ponto de encontro de grupos de activistas. "Chamávamos-lhe Pagode Chinês e foi no meu quintal que se pintaram muitas faixas de campanha do Arnaldo Matos (líder do PCTP-MRPP). Depois, com um trabalho que fiz para a GALP e uma ajuda do Carlos Pinhão [pai da sua companheira na altura, a jornalista Leonor Pinhão], comprámos a casa em 1989. Passou a chamar-se Casa GALPinhão..."

Seriam, provavelmente, exagerados os receios de António Quadros. Em 1976, a vaga de ocupações já estava a refluir. Manuel Salgado lembra-se do ano de 1975 como o mais complicado, nomeadamente em Setúbal, onde dirigia o gabinete de planeamento arquitectónico, um órgão consultivo da Câmara Municipal. "Em Março desse ano, houve mil e tal fogos que foram ocupados em Setúbal. Fogos que estavam à venda e que se destinavam aos trabalhadores que iriam trabalhar nos projectos de construção civil aprovados para o concelho."

Mais outro episódio para a história daqueles tempos: "De repente, uma enorme contradição dentro do movimento operário... havia trabalhadores a manifestar-se ao lado dos patrões contra as ocupações, porque assim ficava em causa o seu ganha-pão." O gabinete de planeamento é encarregado de mediar o conflito e Manuel Salgado vê-se "entre dois fogos". Tempos difíceis, comparados com os quais a acção na comissão de moradores no bairro lisboeta das Mercês, no ano seguinte, foi isenta de sobressaltos: "Houve ocupações, mas dispersas, sem grande conflitualidade."

A aposta no processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) tirou gás às ocupações. De repente, as pessoas encontravam um veículo para tentarem melhorar as suas vidas sem o peso moral do atentado à propriedade, através dos apoios a obras de melhoramento e à autoconstrução. "Foi muito importante. As energias canalizaram-se noutra direcção e ocupar casas deixou de ser o objectivo imediato de quem procurava melhores condições de alojamento", sintetiza Helena Roseta.

Ou seja, as ocupações passaram à história. Mas continuam bem vivas, nos locais que ainda hoje preservam a marca desses tempos, na memória de todos aqueles que não esquecem o dia em que mudaram de vida. E nas lágrimas nostálgicas de Álvaro Guerra. Porque, por mais que falemos de propriedade, as pessoas são o que realmente importa. a

lfrancisco@publico.pt

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