Quando a literatura é turismo

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Istambul Mustafa Ozer /afp

Quantas pessoas atravessaram (e atravessam) os EUA inspiradas por Jack Kerouac? Quantos não buscam ainda na Patagónia os passos de Chatwin, Paul Theroux ou, até, Francisco Coloane? Pode não ser possível quantificar, mas a verdade é que a literatura de viagens - e a literatura em geral - está inextrincavelmente interligada ao turismo. É essa a convicção de Mário Matos, director do Departamento de Estudos Germanístico e Eslavos da Universidade do Minho (UM). "É inquestionável que o caminho da literatura de viagens através dos tempos é co-determinado, senão mesmo indelevelmente cunhado, pela crescente mobilidade e, consequentemente, pelo desenvolvimento do turismo".

De tal forma que aconteceu uma pequena perversão: o surgimento do chamado turismo literário, resultado da procura deliberada pelo turista das imagens interculturais veiculadas pela literatura, seja a de viagens seja a romanesca, antiga ou recente. E a perversão surge do facto de, "nos últimos duzentos anos, a literatura de viagens produzida por escritores profissionais definir-se principalmente por tentar representar um "contra-programa" cultural ao galopante desenvolvimento do turismo", constata Mário Matos. Era o "maldito turista", alegadamente, "banal, insensível e inculto", em oposição ao "poeta viajante", um verdadeiro esteta e de sensibilidade apurada. Agora, somos todos turistas e a literatura é ela própria parte integrante da indústria turística. De uma forma ou de outra.

É verdade que há quem chegue a Lisboa com o Livro do Desassossego debaixo do braço, da mesma forma que em Istambul entram pela mão de Orhan Pamuk, se perdem nas ruas do Cairo com Naguib Mahfouz ou descobrem a Nova Iorque de Paul Auster. Mário Matos refere-se a esse fenómeno como o "uso individual e eclético" que cada turista faz do arquivo colectivo da história da literatura - o roteiro é o turista que o faz de acordo com a sua sensibilidade. Mas não é menos verdade que há "pacotes" prontos. O turista em Lisboa pode não ter qualquer ligação especial com a obra de Fernando Pessoa, mas pode viajar com um computador portátil em cujo ecrã passa o DVD, recentemente editado, do Lisbon Guide by Fernando Pessoa: What the Tourist Should See.

Este é um novo "fenómeno editorial", em que "os guias turísticos propõem ao viajante explorar certa cidade, região ou país "nos trilhos" de determinado autor", explica Mário Matos, com a passagem (quase) obrigatória pelas casas-museus dedicadas aos autores que tem proliferado um pouco por todo o lado. Isto vem juntar-se ao "marketing cultural" que começa a ser desenvolvido pelas entidades a um nível local, regional ou mesmo nacional, onde as referências literárias de cada um são promovidas, por exemplo, de forma mais ou menos explícita, nas brochuras turísticas.

O resultado é que Paris nunca mais voltou a ser a mesma depois de O Código Da Vinci e, em Inglaterra, a saga Harry Potter é cartaz turístico nacional - ambos os casos ampliados devidamente pela passagem ao grande ecrã das obras. Nas livrarias abundam obras de "índole turístico-poética" que sugerem ao viajante conhecer a Praga de Kafka, a Dublin de Joyce, a Paris de Baudelaire, de Proust, da "geração perdida", a Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, a Grã-Bretanha de Agatha Christie, a Tânger de Paul Bowles, ou a perseguir as paisagens do sonhador (e fictício) Dom Quixote ou a árida Patagónia descrita por Bruce Chatwin e Paul Theroux. E assim se transformam certos locais e percursos em ícones - literários e turísticos.

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