As Misses não têm idade

Na madrugada de 11 de Abril de 1970, a televisão levou as misses à casa dos portugueses. Ana Maria Lucas era coroada Miss Portugal e a imprensa elogiava-lhe a tez morena, a elegância e o seu tipo de beleza "bem português". Nos anos 70, as misses transfomaram-se num caso sério de popularidade e também de política. Por Helena de Matos

"Estou contente de mais para poder falar" - foi assim que os jornais fixaram a reacção de Ana Maria Lucas após ter sido eleita Miss Portugal 1970. Era já muito tarde no Teatro da Trindade, em Lisboa, quando se conheceu o nome da vencedora. Antes, Gilbert Bécaud cantara. E quando uma das espectadoras resolveu trautear com ele o estribilho do L"important c"est la rose, as 19 candidatas que entretanto estavam a ser penteadas por Odete e António talvez tenham temido que se tivessem esquecido delas, tal era o entusiasmo da assistência que resolvera fazer coro com aquele inesperado dueto entre Amália - era ela a espectadora! - e Bécaud. Mas, na segunda parte do espectáculo, as estrelas ficaram em silêncio e as vozes que mais se ouviram foram as de Maria Leonor e Fialho Gouveia fazendo desfilar as candidatas ao efémero trono de Miss Portugal.

Havia gente de pé a assistir ao desfile, meteram-se cunhas para se conseguir um bilhete e houve quem tivesse de ficar à porta e esperar pela noite seguinte, quando a RTP transmitisse o desfile, para ver o que tinha acontecido dentro do Teatro da Trindade.

A eleição de Miss Portugal em 1970 confirmava a televisão como produtora de factos com dimensão nacional. Antes de Ana Maria Lucas já tinham existido outras rainhas de beleza e misses. Quarenta anos antes, a eleição de uma Miss Portugal, Fernanda Gonçalves, gerara paixões e polémicas: a eleita conseguiu ficar em segundo no concurso de Miss Universo, que teve lugar no Brasil, mas uma das preteridas recorreu para os tribunais tentando anular a sua eleição porque, segundo a acusação, Fernanda teria ultrapassado o limite de idade para poder ser candidata, 24 anos, e teria gozado de tratamento especial no jornal que patrocinava o concurso, o Diário de Lisboa. Fernanda Gonçalves terminaria o seu reinado como uma espécie de nova Cinderela: em Outubro de 1931 saía vestida de noiva da capela das Picoas e já transformada em senhora Calvet de Magalhães. Quanto ao processo, anos depois ainda aguardava decisão por parte dos juízes do Supremo.

Mas em 1930, para lá dos leitores dos jornais, sobretudo dos ilustrados como o ABC, poucos portugueses terão realmente podido discutir se a "tez de moreno leve, cílios negros, cabelo escuríssimo" de Fernanda Gonçalves correspondiam ou não ao "tipo de beleza característico da mulher portuguesa" que os jornais dessa época tão afanosamente procuravam fixar e para cuja definição pediam ajuda aos intelectuais e, sobretudo, a artistas como Roque Gameiro.

O artista declara que as ovarinas, apesar de "contaminadas com sangue fenício", eram as mulheres que melhor representavam a beleza das portuguesas, pese reconhecer que as morenas, e sobretudo os olhos escuros, eram muito gabados pelos ingleses.

Quarenta anos depois de Fernanda Gonçalves ter conseguido aquele excelente segundo lugar no concurso de Miss Universo, encontramos a mesma preocupação com o conceito de beleza da mulher portuguesa: "Alta, elegante, morena, com um tipo de beleza bem português, sem dúvida, mas também perfeitamente enquadrado nas características da mulher que é bela em qualquer parte do mundo" - lê-se no texto de apresentação de Ana Maria Lucas aos leitores do Diário Popular.

Pelos jornais fica-se também a saber que Miss Portugal 1970 é "noiva de Fernando Tordo, um dos jovens mais qualificados da nova música portuguesa", que trabalhava como manequim e estudara línguas.

A participação de Ana Maria Lucas nos certames internacionais é seguida a par e passo pelos jornais, sobretudo pelo Diário Popular, onde a jornalista Vera Lagoa faz uns pitorescos diários destas deslocações.

O sucesso do concurso de 1970 leva não só à decisão de o repetir em 1971 como a transferi-lo do Teatro da Trindade para o Casino Estoril. Mas seria a decisão de o alargar à participação de jovens provenientes das então colónias que maior agitação traria a este universo oficialmente de beleza e sorrisos mas onde a política se iria instalar.

Ao som do merengue

Desde os anos 60 que os portugueses chamavam rei a um negro nascido em Moçambique, Eusébio de seu nome. Contudo, em 1971, mal as delegações angolana e moçambicana chegaram a Lisboa, tornou-se evidente que de África não vinham apenas mulheres atraentemente exóticas mas também uma desenvoltura e um marketing muitíssimo eficazes. Em 1971, organizaram-se em Lisboa festas em honra das candidatas angolanas e moçambicanas com centenas de convidados.

A animação que os jornais dizem avançar noite fora ficava por conta do merengue, da marrabenta e da kuela. E durante o dia, a agenda das jovens candidatas africanas marcava também pela diferença: visitas aos hospitais militares onde estavam internados os militares feridos em combate ou recepções por parte do ministro do Ultramar eram incluídas nas suas deslocações. Em 1971, Moçambique fica com os segundo e terceiro lugares e a angolana Celmira Bauleth, conhecida por Riquita, é eleita Miss Portugal. Regressada a Angola, é recebida em apoteose. Rapidamente a percepção da importância deste concurso no jogo de interesses entre os diversos territórios que então constituíam Portugal levou à formação de lobbies político-militares, onde se cruzam os nomes do general Spínola e do empresário Jorge Jardim, para uns agente secreto, para outros o enviado especial de Salazar a África e o homem que, por esta fase, congeminava um plano para a independência de Moçambique.

Na verdade, se para lá das eleitas como rainhas de beleza se escolhessem também os reis dos jogos políticos de bastidores desse concurso, o prémio iria inevitavelmente para Moçambique, onde Jorge Jardim, apostado em afirmar a presença de Moçambique onde fosse possível, decide que os concursos de beleza não iriam ser excepção. Ao saber que a moçambicana Ana Paula iria substituir a angolana Celmira, que no último momento resolve não participar no concurso de Miss Mundo 1971, Jorge Jardim envia João Maria Tudela para Londres, onde iria decorrer o certame. Tudela, que muitos recordarão como intérprete de Kanimambo, tinha outros dotes além da voz, como explica Freire Antunes na biografia Jorge Jardim, agente secreto: "A partir da sua integração no mundo musical e artístico e da sua facilidade de acesso à imprensa, mexeu-se num afã produtivo e não deixou quase nada ao acaso."

Mal chega a Londres, João Maria Tudela percebe que os 500 contos disponibilizados por Jardim para a promoção de Ana Paula não seriam suficientes, caso não conseguisse convencer o júri de que valia a pena olhar duas vezes para aquela rapariga. Afinal, como um neto de Charles Dickens responsável por uma agência de relações públicas explica a Tudela, existem 76 concorrentes. Como poderia o júri em tão pouco tempo olhar atentamente para cada uma delas e decidir quem deveria ganhar? A resposta, ou melhor dizendo, a inspiração, veio mais uma vez de África: fazendo Ana Paula vestir uma saia curtíssima e um top de missangas.

É claro que Tudela e Vera Lagoa colocaram muito convencionalmente Ana Paula a angariar brinquedos para hospitais pediátricos e mobilizaram mundos e fundos para que, por mala diplomática, seguissem de Lisboa para Londres presentes de filigrana que Ana Paula ofereceu a todas as outras concorrentes. Mas também é verdade que foi num jantar que precedeu o concurso que tanto o júri como a imprensa perceberam que havia razões de peso para olhar duas vezes para Ana Paula. Afinal, não fora o próprio Lord Mountbatten, almirante histórico da II Guerra e tio do príncipe Phillip, convidado de honra desse jantar, que, após ver desfilar a moçambicana com o seu top de missangas, pediu: "Miss Portugal, can we have another look, please?" Freire Antunes garante no seu livro que no dia seguinte Ana Paula e Lord Mountbatten enchiam os tablóides. Fosse como fosse e pelo que fosse, a verdade é que Ana Paula foi segunda dama de honor no concurso de Miss Mundo 1971.

Beleza não chega

O momento de glória do lobby moçambicano chegaria finalmente em 1972 quando a natural de Porto Amélia, Íris Maria, se tornou Miss Portugal, sob uma chuva de cravos vermelhos que os presentes no Casino Estoril lhe atiraram rendidos aos seus imensos olhos verdes. E não fosse uma madeirense, Gilda d"Abreu, ter conseguido a faixa de segunda dama de honor e de Miss Angola ser na verdade natural de Carrazeda de Ansiães, a hegemonia africana seria total. Desta vez, não é apenas Jorge Jardim a movimentar-se para que as moçambicanas ganhem tudo o que for possível ou os angolanos a inundarem de cartas o Diário Popular protestando sempre que as suas candidatas não tinham o destaque que eles consideravam merecido. Em 1972, a Guiné entrou também em cena com duas misses, Maria do Rosário e Zaida Nogueira. Mas como em matéria de misses a beleza não chega, o próprio general Spínola terá usado a sua muita influência para que as candidatas guineenses saíssem vencedoras. Provavelmente com alguma injustiça - a avaliar pelas fotografias - não foi nenhum título para a Guiné, mas em matéria de festas ninguém ultrapassou a tabanca animada por Maria do Rosário e Zaida Nogueira no restaurante A Varanda do Chanceler.

Perante as minúsculas sainhas de palha de arroz das misses guineenses que tocavam tambores e dançavam freneticamente os ritmos dos Bijagós, devidamente secundadas pelas candidatas de Cabo Verde dançando coladeras, as angolanas com o merengue e as misses de Moçambique ondulando na marrabenta, a então metrópole, com as suas concorrentes vestidas de noivas minhotas e castas ceifeiras, dando pulinhos nos viras e corridinhos, estava derrotada à partida.

E como perante factos não há argumentos sobraram as lágrimas e as discussões: a fazer fé no jornal Notícias da Amadora de 25 de Março de 1972, uma candidata continental "não se conteve e proferiu determinadas palavras que Ana Paula (Miss Jovem Angola) e Lídia Ferreira (angolana e Miss Jovem Informação) não puderam encaixar".

Ironicamente, o conflito que estalou nos bastidores não era aquele que as autoridades e os organizadores do concurso esperavam nessa noite de 14 de Março de 1972: à porta do Casino Estoril era evidente o aparato policial que procurava preservar os convidados da eleição de Miss Portugal dos protestos de um pequeno grupo de mulheres que ostentavam faixas onde se lia: "Respeito pela mulher" e "Não queremos este tipo de promoção".

Chegou a temer-se que as manifestantes tentassem boicotar o concurso libertando ratos ou pulgas, mas nada disso aconteceu, tendo afinal sido muito mais tranquilo o ambiente à porta do casino do que lá dentro, onde as próprias misses e candidatas a tal se travavam de razões sobre quem devia representar a beleza da mulher portuguesa. O caso teve tal impacto que no ano seguinte, 1973, Angola e Moçambique não enviaram concorrentes, embora Angola tenha servido a vingança fria pois a eleita, Carla Barros, afinal nascera em Luanda.

Cinco anos sem misses

De 1974 não reza a história das misses, o que é uma injustiça para Anna Paula Freitas, Miss Portugal 1974, cuja eleição a 16 de Maio passou praticamente incógnita pois não sobrava espaço para a escolha de rainhas de beleza quando o povo e o MFA começavam a discutir as eleições na República. Anna Paula foi uma miss verdadeiramente do tempo político que então se vivia: foi escolhida por um júri mais ou menos popular, constituído pelos turistas alojados no Sheraton, pois não só a gala no Casino Estoril fora cancelada como os membros oficiais do júri tinham outras preocupações. E numa espécie de antecipação das futuras opções europeias do país, Anna Paula foi escolhida para dama de honor no concurso Miss Europa 1974.

Depois, Portugal esteve cinco anos sem misses. Talvez também por isso falar de misses para muitos portugueses é ainda voltar aos anos 70. Mais precisamente regressar a esse Abril de 1970 em que a RTP levou as misses à casa dos 387.512 portugueses que, segundo as estatísticas, possuíam televisor e colocou uma parte significativa do país a discutir se aquelas jovens que desfilavam em fato de banho eram as mulheres mais belas que já tinha visto. E sendo o efémero um dos traços do reinado das misses - terminados os 365 dias novas misses alimentam novos sonhos e novas capas de revista -, Ana Maria Lucas e Celmira (Riquita) ficaram eternamente misses, como se nunca se tivesse interrompido aquela emissão a preto e branco que as deu a conhecer, nos anos 70.1.Ana Maria Lucas e as suas damas de honor;

2. Celmira, conhecida como Riquita, desfila no Casino do Estoril;

3.Ana Maria Lucas, de cabelo cortado, coroa Celmira, que meses mais tarde desiste da sua participação na eleição de Miss Mundo;

4. A angolana Ana Paula Carvalho tinha 17 anos quando foi eleita Miss Jovem 1972;

5. Chamava-se Íria Maria e a sua eleição chegou a Moçambique como Miss Portugal 1972 via rádio;

6. e 7.Neste desfile do concurso de 1972 tornava-se evidente que a metrópole, pelo menos na versão traje regional, ficava invariavelmente a perder.

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